José Afonso, Álbum: Venham Mais Cinco
Gravado em Paris de 10 a 20 de Outubro de 1973
Gravado em Paris de 10 a 20 de Outubro de 1973
Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá
Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá
Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei
"Venham Mais Cinco" é gravado em Paris, sob a direção de José Mário Branco.
Foi o último disco de José Afonso antes da revolução de Abril.
Análise de “Venham mais cinco”
Esta canção faz apelos à unidade, pois era necessária para lutar contra os males provocados pelo regime e para derrubar o regime que deveria «embalar a trouxa e zarpar».
No poema, o vocábulo vinho simboliza a transformação, pois o sumo da uva tem o poder misterioso de se transformar e de transformar aqueles que o bebem, em algo mais potente.
O número cinco anda associado, entre outras coisas, à análise, à crítica, à força, à integração, ao crescimento orgânico e ao coração. Neste aspecto, é sinal de união, de harmonia e de equilíbrio e um convite à confraternização (dá cá mais cinco).
Nos versos: «De uma assentada que eu...»; «o que eu levantei», nota-se que, em princípio, aquele que diz “eu” não tem nome, mas, de facto, torna-se imediatamente um nome activo. “Eu” deixa de ser um pronome, torna-se num nome, o melhor dos nomes. Dizer “eu” é, infalivelmente, atribuir-se significados, como objecto de um destino, de uma acção concreta e real.
Nos versos do poema: «se o velho estica», «dá-lhe um apito; «tem má pinta», «crê que é rei...», o pronome pessoal ele aponta, mas não revela.
Há até um nítida oposição entre o eu e o ele que provoca o desejo de mudança e a afronta.
O convite à confraternização, à união e à luta conjunta pelo mesmo ideal está sintetizado na expressão Venham mais cinco. Esta luta pressupõe que outros se unam aoeu num mesmo desejo de libertação e com vinho o povo celebraria a vitória e festejaria.
As razões para a mudança são apresentadas: se o velho estica: se Salazar morre – alusão aos dois últimos anos de vida deste estadista, após a queda, em 1968, em que foi substituído por Marcelo Caetano. Salazar é comparado a um “velho” que “estica”, mas ainda acredita que é “rei d’aquém e d’além mar”, isto é, que ainda governa; se tem má pinta: se é austero, autoritário, gélido, duro e dirigista; dá-lhe um apito e põe-no a andar: livra-te dele e destitui-o do poder; de espada à cinta: apoderou-se do poder; é a imagem personificada do poder; crê que é rei d’aquém e d’além mar: é o senhor de Portugal e das colónias (política que insistiu em manter, apesar de nela terem morrido cerca de 8 000 portugueses, para além dos muitos que ficaram feridos, física e psicologicamente); na minha terra quem trepa no coqueiro é o rei: coqueiro simboliza o poder, alto, de onde se avista a terra, o país, e o rei é o ditador que trepa no poder e avista tudo à sua frente; já é tempo de embalar a trouxa e zarpar: já é tempo de se pôr a andar, pois está há muito tempo a governar o país.
A prefiguração da mudança torna-se visível nos seguintes vocábulos: gritar, quetraduz a ânsia de liberdade e de clamar vitória; tiririri: o som dos apitos a festejar a vitória; a gente ajuda: sentido de unidade na luta; havemos de ser mais: o descontentamento aumenta.
No fundo, a tarefa era difícil (A bucha é dura), mas mais importante era a razão de ser dessa luta (Mais dura é a razão que a sustém) e nessa luta (rusga) não haveria lugar para os que defendiam o regime (os filhos da mãe).
“A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
Texto de apoio
O canto de intervenção concretizou um importante papel – social, político e cultural –, no contexto da História nacional, e contribuiu, em certa medida, para preparar as camadas populares para a mudança que se avizinhava:
‑ uniu e consciencializou os portugueses, sobre a situação repressiva exercida pelo regime.
‑ «os poemas antes de serem cantados já eram conhecidos (…), assim como a poesia, a par da música, e terão tido um papel importante na consciencialização das pessoas, e até dos militares».
‑ agitou o povo, através dos apelos: à luta, ao combate, à união, à agitação e à revolta.
‑ «uma tentativa de infiltração na marcha social, ou melhor, na luta das classes» (Correia, Mário, Música popular portuguesa – um ponto de partida, Coimbra, Centelha, 1984, p. 87).
A letra mobilizadora das canções e os sentidos dialógicos e simbólicos que nelas foram utilizados constituíram um mote para lançar uma estratégia de combate silencioso contra o regime, tendo acabado por cumprir as suas funções. Muitas pessoas estiveram atentas à evolução da situação, pelo que as canções de intervenção foram catapultadoras de sentidos, tendo-as ajudado a lutar e a resistir.
Foi ousado enfrentar o regime, foi ousado subsistir num clima de paz relativa, levantando a voz, sempre com uma forte esperança de mudança.
[…]
Zeca Afonso tentou comunicar valores e ideais, utopias e mensagens libertadoras, ansiou por um Portugal sem tabus, sem ter de calar o valor da liberdade, pelo que se tornou num vulto histórico, num modelo de afronta na luta contra o regime. As suas canções premeiam uma veia criadora, intensamente preocupada com causas humanas e sociais e são exemplo de ação e de luta constante, objetivando provocar a agitação e a mudança, contra o marasmo fomentado por um regime que necessitava de ser questionado e, por fim, substituído.
“A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
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► A“Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como
arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
Poeta, cantor e compositor, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de agosto de 1929, em Aveiro, e faleceu a 23 de fevereiro de 1987, em Setúbal.
Viveu até aos três anos na cidade onde nasceu, tendo, em 1932, viajado para Angola onde passou a viver com os pais e irmãos que aí já se encontravam. Terá sido aqui que o poeta criou uma relação estreita com a Natureza e sobretudo com África que, mais tarde, se refletiria em muitos dos seus trabalhos.
Regressado a Portugal, depois de uma breve passagem também por Moçambique, José Afonso foi viver para casa de familiares em Belmonte, onde completou o Ensino Primário. Estudou, já em Coimbra, no liceu D. João III e ingressou, depois, no curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras daquela cidade, tornando-se notado pelas suas interpretações do fado típico coimbrão - não apenas pela qualidade da sua voz mas pela originalidade que emprestava às interpretações.
Em 1955, iniciou uma pequena carreira como professor do Ensino Secundário e lecionou em liceus e colégios de locais tão variados como Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro e Alcobaça. Seis anos mais tarde, partiu para Moçambique onde voltaria a dar aulas. De volta ao seu país, em 1967, conseguiu uma colocação como professor mas, ao ser expulso do Ensino por incompatilidades ideológicas face ao regime ditatorial vigente, começou a dedicar-se mais à música e, consequentemente, a gravações mais regulares.
A sua formação musical integrou um processo global de atualização temática e musical da canção e fado de Coimbra. Foi assim que o cancioneiro de Zeca Afonso recriou temas folclóricos e até infantis, reescrevendo formas tradicionais como a "Canção de Embalar", evocando mesmo, neste retomar das mais puras raízes culturais portuguesas, o ambiente lírico dos cancioneiros primitivos (cf. "Cantiga do Monte"), ao mesmo tempo que introduziu no texto temas resultantes de um compromisso histórico, denunciando situações de miséria social e moral (os meninos pobres, a fome no Alentejo, a ausência de liberdade) e cimentando a crença numa utopia concentrada no anseio de "Um novo dia" ("Menino do Bairro Negro").
Reagindo contra a inutilidade de "cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação", partiu da convicção de que "Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja atualização poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair." ("Notas" de José Afonso in Cantares, p. 82).
Canções decoradas por várias gerações de portugueses, filhas da tradição e incorporando, por seu turno, a tradição cultural portuguesa, a maior parte dos temas de Zeca Afonso integram, como voz de resistência mas também como voz pura brotando das raízes do ser português, o imaginário de um povo que durante a ditadura decorou e entoou intimamente os versos de revolta de "Vampiros" ou de "A Morte Saiu à Rua", ou que fez de "Grândola, Vila Morena" o seu hino de utopia e libertação.
Menos equívoca, no pós-25 de abril, mas animada pelo mesmo ímpeto de reivindicação de justiça e de apelo à fraternidade, a sua canção, no que perde por vezes de subtil metaforização imposta pela escrita sob censura, ganha em força e engagement, na batalha contra novos fantasmas da alienação humana como o imperialismo, a CIA, o fascismo brasileiro, o novo colonialismo de África, o individualismo europeu. Neste alento, as Quadras Populares (1980) constituem uma verdadeira miscelânea sobre os novos desconcertos do mundo, as suas novas e renovadas formas de opressão, enumerando uma por uma as iniquidades, disparates e esperanças frustradas da sociedade saída da revolução de abril, aspirando, em conclusão, a uma revolução ainda não cumprida ou ainda por fazer.
Apesar de galardoado por três vezes consecutivas (1969, 1970 e 1971) com um prémio oficial, a sua produção viria a ser banida dos meios de comunicação, dado o seu conteúdo indesejável para o regime; por essa mesma ordem de razões - talvez mais do que pela inovação musical -, a sua popularidade viria a crescer após a reimplantação da democracia.
De toda a sua discografia, destacam-se os seguintes álbuns: Balada do outono(1960), Baladas de Coimbra (1962), Baladas e Canções (1964), Cantares de Andarilho (1968), Traz outro Amigo Também (1970), Venham mais Cinco (1973),Coro dos Tribunais (1974), Grândola, Vila Morena (1974), Enquanto há Força(1978), Como se fora seu Filho (1983) e Galinhas do Mato (1985).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/14/venham-mais-cinco.aspx]