quinta-feira, 19 de abril de 2018

A poética torguiana

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga.


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Índice    

I. Miguel Torga e o Segundo Modernismo (grupo da Presença)

II. Miguel Torga - vida e obra

1. Notas biográficas

2. A dimensão poética torguiana: perfil literário e estilístico
    - o sentimento telúrico
    - a problemática religiosa
    - o desespero humanista
    - o drama da criação poética 



Miguel
TorGA

  Segundo Modernismo (Grupo da Presença)

Em 1927, nasce, em Coimbra, a revista Presença, associando-se este evento ao segundo Modernismo.
Foi, sem dúvida, a revista Presença que serviu de veículo transmissor dos ideais modernistas, não sendo, por isso, de estranhar que nela fossem publicados poemas de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos.
Mas Casais Monteiro insiste nas diferenças existentes entre Orpheu e Presença, destacando o facto de esta segunda geração se preocupar em revelar a literatura anterior"... e, em vez de reivindicar louros para si, pede-os, exige-os para as grandes figuras que tinham criado, por altura da Primeira Guerra Mundial, uma nova visão da literatura, e aberto novos horizontes aos seus meios de expressão". Escolhe a originalidade, a sinceridade e a personalidade e rejeita o lado excêntrico e intelectual do primeiro Modernismo, considerando-o uma arte independente de modas e flutuações de gosto.
A sensibilidade presencista liga-se à afirmação pessoal do poeta e percorre autores muito diversos.
Esta revista assume uma vertente crítica e disciplinadora (sobrepondo-se esta à inovadora), sob a pena de José Régio, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, e muitos outros colaboradores, com especial destaque para Branquinho da Fonseca e Miguel Torga.
Convém salientar que Torga rompe cedo com o movimento presencista por considerar que os seus companheiros viviam afastados da realidade, por se acharem diferentes do homem comum.
Após o rompimento com a Presença, onde contribui literariamente com o seu nome verdadeiro – Adolfo Correia da Rocha –, começa a assinar os seus poemas com o pseudónimo Miguel Torga, justificando o primeiro nome como homenagem ao poeta espanhol Miguel de Unamuno e o segundo (Torga) como forma de estabelecer ligação com a sua terra natal, dado que este é o nome de um arbusto abundante em Trás-os-Montes. (Peixoto: 2001, 94)


Notas biográficas
Miguel Torga é o pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta (Trás-os-Montes), em 1907. Tem uma infância dura, durante a qual recebe do pai, pobre caseiro, um carácter rígido e inflexível, e da mãe, criada de servir, a sensibilidade que o tornará poeta.
Após a instrução primária, vai servir para o Porto. Como não se adapta, ingressa, em 1918, no seminário de Lamego, aconselhado pelo prior de Paradela.
Dado o seu carácter rebelde e a sua ânsia de liberdade, sai desse estabelecimento eclesiástico ao fim de dois anos e embarca para o Brasil, em 1920, onde é acolhido por um tio e onde trabalha arduamente como capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras. teve uma vida muito difícil até aos 16 anos.
Entretanto, o tio apercebe-se das capacidades do jovem e prontifica-se a custear-lhe os estudos, primeiro no colégio do Ribeirão e, mais tarde, em Portugal, aonde regressa em 1925. Completa em três anos o curso liceal (que normalmente levava sete) e aos 20 anos é admitido na Universidade de Coimbra, onde inicia o curso de medicina, que termina aos 24 anos.
Começa a exercer como médico rural em S. Martinho de Anta. Transfere-se para Leiria em 1937. Para poder ter acesso às tipografias e livrarias, fixa-se em Coimbra, depois de se ter especializado em otorrinolaringologia.
Casa com a lusófila Andrée Crabbé, professora da Faculdade de letras da Universidade Clássica de Lisboa, de quem tem uma filha, Clara Crabbé Rocha, também professora universitária.
Entre Dezembro de 1939 e Fevereiro de 1940, esteve preso nas cadeias de Leiria e no Aljube e, embora tivesse pensado abandonar o país, não o fez devido ao amor que sentia pela terra-mãe, aliás bem visível na sua obra.
Reparte a sua vida entre a medicina e a escrita, sendo esta última a sua paixão, e morre em Coimbra a 17 de Janeiro de 1995. (Peixoto: 2001, 95)


A dimensão poética torguiana: perfil literário e estilístico
Torga é um escritor que se situa no concreto e que está ligado ao húmus[1] natal. A sua obra é ele e a natureza, ele e Portugal.
O seu estilo poético é de uma eloquência sóbria[2], viril[3], que ou aquece de entusiasmo, ou fustiga[4]. Pela escolha das palavras, manifesta uma inspiração genesíaca[5]: sexo, cio, sémen, seiva, fecundar, germinar, parir, etc., juntando-lhe o delírio sensual das invocações[6] báquicas[7]: o vinho, o mosto, o cacho. Em contraponto, existe outra zona de inspiração, que ele traduz por termos como sonho, ilusão, aventura, Deus, mito, lua, estrela, astral. O culto da liberdade, a ânsia de liberdade surge como permanente traço de união. É um lírico que fala de si, se exibe e reabilita Narciso[8] como o homem que se busca numa imagem inteira. No entanto, a presença dos outros é condição de plenitude, mas também de incompreensão, de isolamento forçado, motivo de ressentimento e de amargura, visíveis nos onze volumes do Diário. Em Torga temos a sede de fraternidade, o lamento por não ter sabido amar ou por o amigo se lhe haver negado. É o impulso afectivo para o outro que faz dele o poeta da comunidade. Torga é simultaneamente o poeta da angústia e o poeta da esperança. Angústia provocada pela ausência de Deus ou do divino nos homens, pelas mortes. A esperança é a resposta da vida que em nós continua a latejar. Por isso, o humanismo[9] de Torga consiste numa lição de juventude. O poeta denuncia, ilumina, constrói.
O que há de invulgar em Miguel Torga é o facto de ele se apresentar, quer como poeta quer como prosador, como um ser inconfundível, um telúrico[10] padrão e um expoente da Pátria, um artista da língua em que se exprime, um legatário[11] de valores culturais, um receptor atento e um transmissor dos inúmeros problemas do Homem. Torga tem todo o seu ser e toda a sua obra firmados no solo onde se consubstanciam.
Torga é considerado a voz de Trás-os-Montes e a voz de um povo rude e melancólico, mas de carácter firme e nobre. Mostra-se preocupado com a autenticidade criadora, projectando na sua escrita as suas preocupações com o ser humano, a sua necessidade de transcendência. É visível, na sua obra, um sofrimento magoado, que se transforma em desassossego, e que tanto permite a esperança como conduz ao desespero. (Peixoto: 2001, 95-96)

A poesia de Miguel Torga apresenta essencialmente quatro linhas orientadoras: um sentimento telúrico; uma problemática religiosa; um desespero humanista; o drama da criação poética. Convém ter presente que estas linhas temáticas podem coexistir num texto. O importante é conhecê-las na sua globalidade para que se possam compreender muitos dos textos poéticos torguianos.

A nível estilístico, Torga opta pelo uso de estrofes irregulares e deita mão a uma diversidade de recursos, que passam pela escolha criteriosa de verbos e tempos verbais, por figuras de estilo como a antítese, a metáfora, a adjectivação, e um conjunto diversificado de estratégias que lhe permitem expressar o que realmente lhe vai na alma.



[1] produto que resulta da decomposição dos vegetais e animais que se acumula no solo e constitui fonte de matéria orgânica. Em Torga, é aquilo que diz respeito à terra.
[2] simples e correcta.
[3] enérgico, vigoroso.
[4] castiga, maltrata.
[5] que está na génese, na origem, neste caso na terra-mãe, onde tudo se gera.
[6] chamamento para se fazer um ou mais pedidos; súplica. No contexto, significa que são chamadas, invocadas para a sua poesia.
[7] que diz respeito a Baco, deus do vinho.
[8] deus da antiguidade que era extremamente vaidoso e que se enamorou de si próprio.
[9] Humanismo - no contexto torguiano, significa que se preocupa com as injustiças e visa eliminá-las.
[10] Telúrico/telurismo - relativo à terra, ao solo. Influência do solo de uma região nos costumes, no carácter.
[11] Aquele a quem se deixou um legado, isto é, um valor, que pode ser uma qualquer herança.



O sentimento telúrico
Segundo Torga, o Homem deve ser capaz de realizar-se no mundo. Deve unir-se à terra, ser-lhe fiel, para que a vida tenha sentido e o sagrado se exprima.
É na terra que a vida acontece e é que se deve cumprir. É nela que está a origem da vida e dos tempos. Por isso, a terra surge, em Torga, como um ventre materno e a tarefa do Homem é orientar-se para esse sentido criador, genesíaco.
O telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade ao povo, na sua consciência de ser português. Mas o poeta não se contenta em elogiar a terra, na medida em que sente a condição humana cheia de limitações.
De qualquer modo, o sentimento telúrico presente na sua obra revela bem a ligação entre o espírito genesíaco e o sentido do sagrado. O seu apego à terra-mãe surge em vários poemas, nomeadamente em "Terra", onde esta é personificada numa mulher disposta à fecundação, ou em "S. Leonardo de Galafura", testemunho perfeito do amor telúrico do poeta que em Diário II afirma: "[...] devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens me deram tristezas [...] a terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. [...] Vivo a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo mesemelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno".
E o seu apego à terra fá-lo evocar o mito de Anteu[1] e declarar, em Diário XI, que: "De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de deduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica[2] ao chão natural de Trás-os-Montes. [...] Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão também na certeza da sede de quem bebe".
Note-se que no período final desta declaração torguiana está patenteada a crença de alguém que muito ama a terra e nela a cura para os seus males, principalmente porque acredita no seu poder terapêutico. (Peixoto: 2001, 97)



[1] Figura da mitologia grega e romana, filho da deusa Terra, onde ia buscar forças para derrotar todos quantos se aproximassem da costa líbia. Foi derrotado por Hércules, que, tendo descoberto a origem da sua valentia, o ergueu do chão, durante uma luta, impedindo, deste modo, que este sugasse a energia que o alimentava.
[2] relativo a Olimpo, local onde habitam as divindades pagãs.


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S. Martinho da Anta, Natal de 1951

 

REGRESSO

 

Regresso às fragas de onde me roubaram.

Ah! Minha serra, minha dura infância!

Como os rijos carvalhos me acenaram,

Mal eu surgi, cansado, na distância!

 

Cantava cada fonte à sua porta:

O poeta voltou!

Atrás ia ficando a terra morta

Dos versos que o desterro esfarelou.

 

Depois o céu abriu-se num sorriso,

E eu deitei-me no colo dos penedos

A contar aventuras e segredos

Aos deuses do meu velho paraíso.

 

Miguel Torga, Diário X, [1968], in Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 6.ª edição, 2001

 

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desterro – expulsão da pátria ou da terra onde reside; expatriação.

esfarelou – reduziu a pó.

 

Linhas de leitura:

Sentimentos dominantes do sujeito poético:

  • Cansado (v.4)
  • Alegre, feliz, satisfeito, eufórico.

 

Relação entre poeta e natureza é de intimidade e de afectividade.

 

Donde a importância do campo lexical que se refere à terra:

A quantidade e variedade de vocábulos e expressões que descravem a terra tornam esse o campo lexical mais importante do texto, quase saturando o discurso poético. Assim:

  • as referências directas são "fragas", "minha serra", "terra morta", «colo dos penedos";
  • há outras referências: metonímica – "minha dura infância"; metafórica – «meu velho paraíso";
  • as referências "rijos carvalhos" e "cada fonte" indicam, por sua vez, realidades indissociáveis da terra.

Donde o simbolismo metafórico dos elementos naturais, como:

  • o carvalho (Dic. dos Símbolos), instrumento de comunicação entre a terra (os homens) e o céu (Deus);
  • a fonte, símbolo de maternidade, nas culturas tradicionais é a origem da vida, do renascimento, do poder e da felicidade.

 

Assim sendo, o regresso à terra-mãe equivale à recuperação de forças, fazendo-o feliz, satisfeito como se estivesse no paraíso. A sua terra é o seu céu (terra como expressão de céu).

 

Tal como Anteu que recebia energia e forças da sua mãe terra, assim é o poeta que ao contactar com a sua terra restabelece a sua força anímica.

 

Modos pelos quais o Eu alude à sua infância:

  • As fragas "de onde me roubaram" (v.1) são metonímias da infância do Eu, como o segundo verso confirma "Ah! minha serra, minha dura infância";
  • o aceno dos carvalhos metaforiza o reviver da infância que este regresso proporciona ao Eu;
  • o sorriso aberto do céu (cf. v. 9) e o "colo doa penedos" (v. 10), por sua vez, metaforizam a dimensão maternal da terradimensão que se harmoniza com a temática da infância;
  • "dura infância" (v. 2), no entanto, remete para um aspecto menos agradável da rememoração.

 

Traços que definem esse Eu como poeta

Este Eu que regressa é caracterizado como poeta:

  • primeiro, por intermédio da personificação de "cada fonte", que canta "O poeta voltou" (v. 6);
  • depois, também na segunda estrofe (vv. 8-9), pela referência aos "versos" esfarelados sobre "a terra morta", assim definida como aquela que, não sendo a terra natal, é, pois, o "desterro";
  • finalmente, a própria actividade a que o Eu se entrega quando regressa ao seu "paraíso" (v. 12), o "contar aventuras e segredos" (v. 11), é uma actividade que envolve palavras, comunicação verbal, o que vem amplificar a imagem de poeta que nele a serra reconhece.

 

Reflexos no plano morfossintáctico:

  • adjectivação utilizada (rijos, cansado, morta, velho) serve para reforçar a ideia de austeridade da vida;
  • tipo de frase exclamativo nos versos 2-6 a demonstrar o gosto na chegada do sujeito poético à sua terra;
  • tipo de frase declarativo no resto do poema a demonstrar com mais calma o que foi fazer.
  • Reflexos no plano semântico:
  • personificação dos carvalhos e das fontes para dar conta do bem estar do sujeito poético na sua terra (vv. 3 e 5);
  • repetição do pronome possessivo «minha» a reforçar o apego do sujeito poético à sua terra de origem e o facto de não se importar de dizer que aquele espaço é seu por natureza.

Reflexos no plano fónico:

  • assonância do som nasal nos primeiros cinco versos condizente com um primeiro momento ainda cansado;
  • aliteração fonema /t/ (vv. 5-8) a cadenciar a frase ao gozo e entusiasmo que a visão da terra proporciona;
  • assonância de sons semi-abertos /i/ e /e/ em harmonia com o som fechado /o/ a traduzir uma relaxação feliz no acto de invocar coisas da terra.

Integração no universo poético de Miguel Torga:

A poesia da Miguel Torga está ligada ao canto da terra dura e bravia (que, aliás, se associa, na biografia do autor, a Trás-os-Montes) e dos seus valores de Integridade, sobriedade e grandeza.

Assim, este poema remete para veios temáticos importantes em Miguel Torga, como:

  • o canto das coisas elementares;
  • a religiosidade própria do sentimento telúrico;
  • a apologia da terra firme e das raízes que nela se cravam;
  • o canto do mundo agrário, da experiência da pobreza e do esforço.

(Veríssimo: 1999b, 57; GAVE: 1999, 134 – 1ªf. 2ªch.)

Questionário sobre o poema "Regresso", de Miguel Torga.

Para responderes a cada item, seleciona a opção mais adequada ao conteúdo do texto.

1. No primeiro verso do poema, o poeta diz que o roubaram à sua terra devido

a) à sua dura infância.

b) a ter partido sem que fosse sua vontade.

c) à terra morta que nada produzia.

d) a ser um poeta que ninguém queria ler.

 

2. A reação da natureza ao regresso do poeta documenta o emprego da

a) personificação.

b) enumeração.

c) hipérbole.

d) comparação.

 

3. Pela forma como o poema está construído, poder-se-á afirmar que ele tem

a) uma componente narrativa e uma componente descritiva.

b) uma componente expositiva e uma componente narrativa.

c) uma componente expositiva e uma componente descritiva.

d) uma componente apenas descritiva.

 

4. Da leitura da última estrofe pode inferir-se que

a) o poeta fica magoado com a rispidez da natureza.

b) a reação da natureza é indiferente ao poeta.

c) o poeta tem uma relação de cumplicidade com a natureza.

d) a natureza responde com hostilidade ao regresso do poeta.

 

Chave de resposta: 1.b; 2.a; 3.a; 4.c.

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa Ensino Básico 1.ª Fase 2018. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 


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S. LEONARDO DE GALAFURA1


A proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto2,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

não terá socalcos3
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo4 avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo5 a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho6!

Diário IX, 1964.

1 S. Leonardo de Galafura é uma capelinha que existe no alto da montanha, na freguesia com o mesmo nome, no concelho da Régua (Vila Real). Vista do sopé da montanha, dá a imagem de navegar no espaço.

2  mostosumo da uva antes de se completar a fermentação.

3 socalco – espécie de degrau nas encostas, suportado por um muro, para se cultivar. Na região do Alto Douro é em socalcos que se cultiva a vinha.

4  rabelo – embarcação típica, usada no rio Douro para transporte do vinho do Porto, que tem por leme um remo muito comprido e grosso.

5 sorvogole; trago; sorverabsorver; aspirar.

6 rosmaninho – planta aromática, de flores violáceas designada por alecrim.



Questionário sobre o poema "S. Leonardo de Galafura", de Miguel Torga.
1. S. Leonardo navega em direcção ao cais divino.
1.1. Que meio de transporte utiliza?
1.2. Como é caracterizado o espaço que tem de percorrer?
1.3. Porque é que não vai muito satisfeito, sendo santo?

2. O poema revela uma estrutura circular. Distinga as partes lógicas em que está estruturado e indique o assunto de cada uma.

3. Para exprimir de forma artística a viagem, foram utilizados muitos recursos expressivos

Destaque:

3.1. a forma como a construção das estrofes sugere a irregularidade do espaço a percorrer;

3.2. a expressividade da alternância de vogais abertas e fechadas, bem como das aliterações;

3.3. o valor do aspeto verbal;

3.4. o domínio da coordenação;

3.5. a importância das metáforas «navio de penedos», «doce mar de mosto», «ondas/Da eternidade», «cais humano», «cais divino», «charcos de luz», «Rasos, todos os montes».

4. O texto é uma alegoria.

4.1. Que se pretende enaltecer?

4.2. É este um texto telúrico? Justifique.
(Guerra: 1999, 398)


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A problemática religiosa
A revolta da inocência humana contra a transcendência
Esta problemática assume em Torga uma dinâmica especial e revela-se, por vezes, ambígua e contraditória. Com efeito, Torga parte da sua experiência para interrogar Deus, palavra onde reside a ambiguidade da sua poesia. É que Torga revolta-se contra Deus, mas não se assume como ateu[1]. A negação surge porque lhe perturba a razão e porque pretende afirmar o homem. Frequentemente, negar Deus é negar a representação que Dele fazemos, como aliás o próprio poeta confirma, ao declarar em Diário III: " por mim concebo Deus dos aflitos, à porta de quem se bate com a angústia de alguém que chama o médico".
A ausência de um Deus mais humano e imanente[2] é o que realmente perturba o poeta. Por isso, prefere questionar a verdade de Deus para afirmar o Homem e a necessidade de este procurar a verdade na Terra.
Como médico, sofre, muitas vezes, por não salvar o paciente que morre, mas que procurara a esperança do milagre que Deus lhe poderia ter concedido.
Por sentir constantemente as provações da vida, própria e alheia, é que Torga entra em conflito interior, causando-lhe o desespero religioso que o leva a um constante monólogo[3] com Deus, palavra que assume como obsessão[4]. Sente que precisa de Deus, mas as suas conclusões racionalistas tornam-no inatingível.
Esperança e desesperança surgem como expressão de um conflito íntimo, bem patente no poema "Desfecho", onde o poeta tenta negar a divindade, mas sente a sua existência. A descrença e a revolta contra um Deus transcendente reflectem a angústia do poeta que tenta valorizar o Homem e a Terra e, simultaneamente, a revolta da inocência humana contra a divindade transcendente. (Peixoto: 2001, 98)




[1] aquele que não acredita em Deus.
[2] que é inseparável, existe dentro dele e está sempre presente.
[3] acto de fala consigo próprio.
[4] preocupação com determinada ideia que domina o espírito; ideia fixa.

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LIVRO DE HORAS


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.




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Me confesso de ser charco
E luar de charco, é mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

                                   O Outro Livro de Job, 1936



Referências bíblico-religiosoas:

Abel – Segundo filho de Adão e Eva (Antigo Testamento). Como era pastor, decidiu oferecer a Deus as primeiras crias do seu rebanho e as suas respectivas gorduras, oferta que foi melhor aceite por Ele do que os frutos da terra oferecidos pelo seu irmão Caim. Dominado pela inveja, Caim matou Abel...

Caim – Primeiro filho de Adão e Eva (Antigo Testamento). Movido pelo ciúme, assassinou o irmão, Abel, pelo facto do sacrifício deste ter sido melhor aceite por Deus do que o seu.

Job – (c. século V a.C) No Antigo Testamento, líder hebreu que, no Livro de Job, questionou o sofrimento que Deus infligia aos justos enquanto ele próprio era sujeito a grandes padecimentos.

Livro de Horaslivro de devoções privadas segundo um esquema: começam com um calendário elaborado exclusivamente em função das festas religiosas. Seguem-se numerosas preces. Estas, compostas em grande parte de salmos, seguem o ritmo quotidiano — as matinas, laudas, prima, tércia, sexta e noa, as vésperas e as completas escalonam o dia.

Estrutura externa: poema constituído por 7 estrofes de tamanho irregular, métrica muito variável e, no aspecto vocálico, alternando o verso livre com rimas consoante e vocálica. É um texto com um ritmo interior vigoroso e um hábil aproveitamento  das sonoridades que conduzem a uma fortíssima afirmação da subjectividade.

Tema: reconhecimento da divisão interior do Eu.
É um tema dilacerante para os homens do Orpheu e muito recorrente na poesia da Presença, movimento que Torga esteve ligado até 1930.


Questionário sobre o poema "Livro de Horas", de Miguel Torga.

1. Atente no conteúdo do poema.
1.1. Estabeleça uma relação entre o título do poema, o da obra em que foi publicado e o tipo de discurso utilizado.

2. Focalize a sua atenção na linguagem.
2.1. Justifique o tempo verbal predominante.
2.2. Demonstre a expressividade da progressão textual quanto aos tipos de frases utilizados.

3. Atente nos versos 2 e 3: «Eu, pecador, me confesso / De ser assim como sou.»
3.1. Indique a razão para a utilização das vírgulas no verso 2.
3.2. Demonstre a funcionalidade do termo «assim» na construção do poema.

4. Faça o levantamento de marcas textuais próprias de um tom confessional.

5. A composição poéticaconta da expressão de um «eu» onde coexistem duas dimensões: uma positiva e outra negativa.
5.1. Proceda ao levantamento de exemplos textuais reveladores dessa oposição.

(Cardoso: 2003, 216)

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DESFECHO


Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
( a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

                                                     Câmara Ardente (1962)


Linhas de leitura sobre o poema "Desfecho", de Miguel Torga.
Poema constituído por quatro quintilhas, sendo as duas primeiras de métrica muito irregular e a terceira e quarta decassilábicas, com excepção do penúltimo verso que é um hexassílabo

     No aspecto rimático há, em todas as estrofes, um primeiro verso solto, embora, no caso da primeira e segunda estrofes, se possa falar de rima toante em "a" com o segundo verso. Os restantes versos são emparelhados, cruzados ou interpolados, segundo o esquema rimático ABCCB / DEFEF / GHIIH / JKLLK.
O título do poema indicia claramente uma luta de que se prevê um desenlace.

Os dois contendores (adversários) são:
O sujeito líricocaracterizado como combativo (v. 3), ruidoso (v. 14), aborrecido com a presença do «tu» (v. 12).
O «tu» – omnipresente, importuno (v. 8) e silencioso (v. 9).

Nesse combate (vv. 3, 11) o «eu» usa como arma a palavra (v. 1) enquanto o «tu» utiliza o silêncio (vv. 9, 15).

O desenlace consiste na obstinação de ambos (v. 18); o «eu» acaba por seguir o método do «tu»: o silêncio (v. 19, «mudos»).

A luta é um processo, um percurso que se torna visível no poema, estruturado nas seguinte partes lógicas:

1.ª parte:
estrofes I e II
em que se definem uma temática religiosa
e uma situação de luta,
se identificam os contendores em situação de luta – o Eu, que passou a vida a negar Deus
e se antecipa o resultadodesfecho»): «não tenho mais palavras».
2.ª parte:
estrofe III
em que se apresentam os processos (instrumentos) de luta utilizados pelo Eu contra a presença «impertinente» (incómoda) e agressivamente calada de Deus: a recusa e o grito.
3.ª parte:
estrofe IV
Conclusão em que se descrevem os resultados desse combate: o tempo passou e digeriu a amargura dos gritos do Eu, reduziu-o ao silêncio, ficou mudo como o seu adversário. E agora são dois frustrados, ambos teimosos. Nenhum convenceu o outro.
Como que regressamos ao primeiro verso – «Não tenho mais palavras» – e compreendemos a propriedade do título.

As palavras («E», «Mas» – conjunções copulativa e adversativa) estabelecem a ligação entre as partes lógicas.

A nível do discurso, destaca-se:

        a riqueza das sonoridades:

Aliteração do fonema /t/ ao longo do texto: sugestão de intensidade da luta;

Aliteração do fonema /m/ nos versos  16-17 e 19: sugestão, respectivamente, de amargura da impotência do «eu» para vencer o «tu» e a frustração de que de ambos se apodera.

Os sucessivos transportes nas 1ª e 2ª estrofes: ritmo vivo.

A tonalidade nasal: tristeza da impossibilidade de vitória.


        A expressividade da adjectivação: os adjectivos revelam a atitude do «tu» e o malogro (frustração) de ambos (impertinente, calado, paciente, fechado, silencioso, amargo, obstinados, mudos, malogrados).

        O léxico ligado à intransigência (obstinados, teimosia), dureza (combater, lutei) e negatividade (negar-te, mudos, malogrados).

        Comparação: E lutei como luta um solitário / Quando alguém lhe perturba a solidão.

        Metáforas:
gastei-as (v. 5) (as palavras não se gastam);
o chão da caminhada (v. 6) = todos os locais;
soltei a voz = gritei;
arma (v. 14) = instrumento de combate.
agressão (v. 15)

        Imagens:
Fechado num ouriço de recusas (v. 13) = recusa total de ceder;
o tempo moeu na sua / O joio amargo = o tempo destruiu as suas palavras.

Em síntese, o sentido do título aponta para uma longa luta entre o imanente[1] e o transcendente com o desenlace do silêncio. Miguel Torga recusa-se a aceitar o Deus tradicional, numa atitude de rebeldia que caracteriza toda a sua obra literária.

(Guerra: 1999, 393-394; O Movimento «Presença» – Miguel Torga e José Régio, Ed. Sebenta)

«[...] Deus não nos , Deus não nos ouve. Deus não nos conhece. Deus é o silêncio, Deus é a ausência, Deus é a solidão dos homens. O homem está sozinho. E é sozinho que decide o mal ou inventa o bem. Não existe autoridade superior ou absoluto algum perante os quais o homem deva ou possa justificar-se. Que ganha o homem em troco da negação de Deus? A sua identidade e autonomia, mas de maneira nenhuma uma vida mais fácil. A partir de agora tem de assumir a responsabilidade de tudo. O homem não pode esperar mais pontos de apoio situados fora da sua própria pessoa. A sua existência não depende de ninguém. Resta-lhe o imperativo da liberdade para a construir.» (Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e Ler Torga)




[1] que não desaparece; que existe sempre; inerente; perdurável; fixo; privativo de um  sujeito ou de um objecto; o que é interior a um ser ou a um objecto do pensamento; diz-se da descrição e da análise de um objecto ou de um fenómeno que não utilizam  factores transcendentes a esse objecto ou a esse fenómeno.



O desespero humanista

Um dos aspectos mais significativos da temática torguiana é o desespero humanista, que o poeta apresenta, algumas vezes, sob a forma de protesto, de revolta e de inconformismo.
Na sua condição de artista, Torga vive inquieto com a vida humana, a existência, o destino, o sentido da morte, a condição terrena. Verdadeiramente humanista, problematiza a criação, as limitações do homem, que o existencialismo desenvolverá.
É frequente verificar-se que o desesperolugar à esperança, principalmente porque Torga, como poeta, é chamado a gritar a sua solidariedade humanista com todos os que são abandonados, competindo-lhe, a ele, lan­çar-lhes na alma a chama da esperança, uma espécie de luz que se acende na imensa noite.
Tal como se disse, a revolta e o inconformismo traduzem o desespero humanista torguiano, mas a liberdade e a esperança são valores que articulam o seu humanismo.
É nesta perspectiva que surge o aproveitamento do mito de Orfeu[1]. Torga compara a descida de Orfeu aos Infernos, para ir buscar Eurídice[2], com a descida que o próprio faz ao mais fundo de si, ao inferno do seu ser, onde enfrentou o medo, a vergonha e o assombro. Veja-se a propósito desta comparação o esquema que se segue:




    Expressa, por vezes, o seu drama interior, todavia também revela a tristeza de não conseguir iluminar a sua poesia. Mas, quer numa quer noutra situação, Torga assume uma atitude de protesto, de rebeldia.
Em Orfeu Rebelde, por exemplo, a rebeldia do poeta é diferente da de Orfeu, pois não se trata da perda da amada, mas da revolta em "fúria", "como um possesso", contra a morte e a passagem inexorável[3] do tempo. Torga recusa a poesia lamecha[4] dos românticos ("rouxinóis") e recorre a uma expressão violenta, agressiva, para vencer aquilo que o instinto adivinha e o sujeito recusa. Não lhe interessa se o canto é "de terror ou de beleza"; ele assume-se, como os clássicos, como alguém que se defende e procura encontrar a eternidade na realização poética ("Canto, a ver se o meu canto compromete / A eternidade do meu sofrimento"),
Em A Criação do Mundo ("Sexto Dia"), Torga declara: "O contacto profissional com o sofrimento humano como que dava corpo físico à minha dolorosa consciência da grandeza trágica da nossa condição; a intimidade lúdica com a natureza restaurava, por sua vez, na acuidade activa dos sentidos, a certeza de que há na vida uma tenacidade intrínseca que, contrariando os desesperos da razão, é um permanente acto de na graça lustral da esperança."
O humanismo torguiano é um humanismo revolucionário, próprio de um revoltado, de um rebelde, e articula-se em dois valores importantíssimos: a liberdade e a esperança.
O poema Orfeu Rebelde exemplifica este humanismo de um revolucionário. Aliás, o mito de Orfeu é muito querido a Torga, por retratar a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.
Como poeta, Torga considera-se chamado a gritar a sua solidariedade humanista com todos os que são abandonados, competindo-lhe a ele lançar-lhes na alma a chama da esperança. O desespero surge para fazer nascer a esperança. (Peixoto: 2001, 98-100)




[1] Mito de Orfeu - está relacionado com a descida aos Infernos para recupe­rar Eurídice. Este deus da antiguidade era um excepcional poeta e músico que conseguiu com o seu canto obter autorização para ir buscar a sua amada, sob a condição de não olhar para ela enquanto não estivessem fora do reino dos mortos. Orfeu não resistiu e, por isso, esta desapareceu sem que tivessem chegado ao portão. Então, a mágoa de Orfeu era traduzida pelas melodias tristes que este tocava quando passeava pelas florestas. Um dia, um grupo de Bacantes pediu-lhe que se lhes juntasse. Como este recusou, estas desfizeram-no e lançaram-no em pedaços ao rio. A sua cabeça, sempre a suspirar por Eurídice, foi levada para o mar e depois sepultada pelas musas. A lira de Orfeu, depois da sua morte, subiu aos céus e transformou-se numa constelação.
[2] amada de Orfeu que na noite de núpcias morreu por ter sido picada por uma cobra, tendo sido sepultada no reino dos mortos, de onde Orfeu a vai tentar libertar.
[3] implacável, inabalável, que não se comove com rogos ou pre­ces; é intransigente.
[4] ridícula, exageradamente sentimental.


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ORFEU REBELDE


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha gritos comonortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar a Musa
Se o canto
É de terror ou de beleza.
Orfeu Rebelde (1958)



Linhas de leitura sobre o poema "Orfeu Rebelde", de Miguel Torga.

Após a leitura atenta, analise o poema com base nos seguintes tópicos:

1)      Tema/assunto.

2)     Desenvolvimento do tema / momentos em que está estruturado.

3)     Oposição sujeito poético / os outros poetas.

4)     Concepção da poesia defendida.

5)     A poesia assume-se como uma arma em legítima defesa, de modo que são seguintes as marcas de agressividade, revolta e rebeldia a nível do vocabuláriorebelde» (v.1), «possesso» (v. 2), «canivete» (v. 3), «fúria» (v. 4), «compromete» (v. 5), «sofrimento» (v. 6), «desafio» (v. 7), «cruel» (v. 10), «gritos» (v. 11), «nortadas» (v. 11), «violências» (v. 12), «recusa» (v. 13), «defesa» (v. 16).

Note-te ainda que a rebeldia que perpassa todo o discurso está realizada com notável mestria, donde se destacam:

a) os valores do nível fónico:
-          aliteração do fonema /c/ ao longo do poema conjugada com a aliteração do fonema /t/ =
-          os vários transportes =
-          domínio do verso decassílabo =

b) a expressividade da adjectivação onde:
-          é sugestiva a rebeldia, ex.:
-          e há também o adjectivo irónico, ex.:

c) o valor dos verbos:
-          domínio do presente (canto, sou, ergo) =
-          o presente do conjuntivo (sejam, saibam) =
-          o imperfeito do conjuntivo (gravasse) =

d) a importância das figuras de estilo – a personificação casa-se com as metáforas e as imagens:
        comparação:
«como um possesso» (v.2) =
«gritos comonortadas» (v. 11) =
«canto como quem usa / os versos em legítima defesa» (vv. 15-16) =

        Personificação:
«que o céu e a terra, pedras conjugadas/.../ saibam quegritos comonortadas» (vv. 9,11)=
«violências famintas de ternura» (v. 12) =

        Repetição: «canto» =

        metáforas e imagens:
gravação na «casca do tempo» (v. 3) =
      «rouxinóis» (v. 7) =
      «pedras conjugadas» (v. 9) =
      «moinho cruel que me tritura» (v. 10) =


6)     Metáforas da poesia.

7)     Estrutura formal.

8)    Explicação do título.


Em síntese: «Torga é simultaneamente [] o poeta da angústia e o poeta da esperança []. Angústia provocada pela ausência do absoluto, ausência de Deus ou do divino nos homens, pelas mortes em vida, pela morte final»


Drama interior do sujeito poético:
-          consciência da passagem inexorável (implacável) do tempo e tentativa da recusa, usando os versos «em legítima defesa»;
-          obstinação do sujeito poético, que recusa a poesia lírica romântica simbolizada pelos «rouxinóis»;
-          a imagem órfica (do Orfeu que perdeu a sua amada Eurídice) ao ligar-se a perda da vida exprime a atitude de sujeito poético perante a poesia e a angústia face à morte ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Note-se as marcas «presencistas» patentes na superlativação do Eu, na emotividade da linguagem e aguda consciência da função do Poeta. Quando se afirma «canto como sou», reconhece-se a sinceridade presencista, porque o homem e o poeta não são indissociáveis, cabendo à poesia revelar o Ser, ou seja, apresentar sincera e autenticamente o homem.

(Veríssimo: 1999, 55; Guerra: 1999, 402; Pimenta: 2004., 172)


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DESCIDA AOS INFERNOS


Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.

Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do mito.

                                            Orfeu Rebelde (1958)


O poeta procura descer ao mais fundo de si mesmo, sentindo «um medo triste, de vergonha e assombro» (v. 30), em contraste com o céu que se reflecte, do alto, «inútil como a paz que me promete» (v. 33). Há assim uma catábase contínua ao procurar  descer à interioridade de si mesmo, para de trazer à luz a poesia, o amor e a esperança. Mas, tal como Orfeu em demanda de Euridice, tudo exprime o desalento, a solidão, a tristeza indefinida, o além. E, neste drama íntimo, Torga afirma a sua rebeldia contra os limites da sua condição humana.
     Note-se que, na 3.ª estrofe, o medo, a vergonha e o assombro pelo que lhe é dado a observar no seu próprio íntimo gelam-lhe «o sangue, no seu nascente» (v. 31), onde ainda se reflecte o céu, cuja paz não aceita.
Aqui o motivo do efeito apaziguador e fascinante do canto de Orfeu no Hades foi anulado, para dar lugar ao vazio do som, ao negativo das sensações. (Mª Helena da Rocha Pereira, «Os mitos clássicos em MT» in Colóquio, nº 43.)

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Miguel Torga (in JN)



O drama da criação poética

Embora esta temática não seja recorrente na poesia torguiana, parecem não restar dúvidas quanto à sua inserção em muitos dos seus poemas. Aliás, anteriormente se disse que, com frequência, Torga se sente triste por não conseguir iluminar a sua poesia. Mas a sua reflexão é bem mais profunda e é o próprio que reconhece que "De quantos ofícios há no mundo, o mais belo e o mais trágico é o de criar arte. É ele o único onde um dia não pode ser igual ao que se passou. O artista tem a con­denação e o dom de nunca poder automatizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido", Diário I (1941). Para Torga, a poesia é um dom inato que compromete o homem integral no dever de não o trair, pois, ao fazê-lo, pode trair o seu semelhante. Torga acredita na literatura, na poesia como emanadoras e reveladoras de uma ordem cósmica que funciona como salvação terrena para o homem que escolheu a perdição divina. Para ele, o acto poético é indissociável de um certo comportamento místico que aproxima o homem dessa ordem cósmica em que se integra a sua animalidade.
A título exemplificativo, veja-se o poema "Maceração" e relembre-se, neste contexto, o mito de Sísifo, rei de Corinto, temido pelas suas crueldades; este, depois de morrer, foi condenado a rolar uma pedra até ao cimo de um monte. Quando deste ponto a pedra se aproximava, voltava a cair e Sísifo era obrigado a recomeçar. Em literatura, esta figura mítica é usada para caracterizar um trabalho extenuante, que exige esforços sem­pre continuados, um trabalho sem fim que tão bem serve o dramatismo[1] da criação poética que Torga incute em muitos dos seus textos. (Peixoto: 2001, 100-101) Mas, diz ele, no Diário XII (1977): «Escrever é um acto ontológico».




[1] próprio de quem se comove com o sofrimento.

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MACERAÇÃO


Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece,
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
Que responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas contadas,
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás de si as impressões marcadas.
E corta-me de vez as asas que me deste.
Mandaste-me voar;
E eu tinha um corpo inteiro a recusar
Esse ímpeto celeste.
Penas do Purgatório (1954)



Este é um poema com a seguinte estrutura externa: três estrofes desiguais (uma sextilha, uma sétima e uma quadra) e de metro irregular. Esquema rimático: abbcbc/deefgfg/hiih, logo, dois versos soltos e os restantes emparelhados, cruzados e interpolados.

  1. Qual o tema do texto?
  2. Divida o poema em partes lógicas, pondo em evidência que o assunto se desenvolve de forma circular.
  3. O sujeito poético apostrofa a Musa. Estaremos perante um poeta romântico que acredita na inspiração vinda do alto ou a palavra «Musa» tem outro significado? Justifique a sua resposta.
  4. O sujeito poético não gosta do trabalho que faz, não gosta da sua poesia porque esta não atinge a perfeição que julga dever ter. Transcreva as palavras que revelam o seu desalento.
  5. Complete a seguinte análise:
5.1. A nível morfossintáctico, notamos que
os verbos no imperativo estão ao serviço da função .......................................... da linguagem;
-          o predomínio da coordenação é justificado porque o poema contém uma sequência de ..........................................;
-          de forma geral os adjectivos ..........................................e os nomes tédio e nojo apontam a insatisfação do poeta.
5.2.                       A nível estilístico são de salientar a expressividade das metáforas:
-          «frutos acres» = ..........................................;
-          «Falta-lhes génio, o sol amadurece» = ..........................................;
-          «estas sílabas contadas, vestígios digitais de evadido» = ..........................................;
-          «corta-me as asas que me deste» = ...........................................

(Guerra: 1999, 405-406)

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MUDEZ 

Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força desse grito.

Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que ficasse
Toda a vida criança
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e pranto que chorasse.

Orfeu Rebelde (1962)


Poema semelhante a «Maceração» no que diz respeito à apresentação do drama da criação poética, da dificuldade de atingir a perfeição. Portanto, revolta contra os limites humanos.

O sujeito, confrontado com o símbolo arquetípico da poesia ocidental, a Ilíada, não se coíbe de focalizar o embaraço da falta de inspiração, relativizando a «memória» (v.3) dos versos feitos e a «vontade de gritar» (v. 12), a partir da dúvida sobre a «exactidão e a força desse grito» (v. 14). No processo de catábase ou descida aos infernos do ser, do pensar e do ver «dentro de mim» (v. 8), as imagens desconfortantes da «mudez» e do «mar de silêncio» (v.17), desaguando na metáfora da «íntima noite/ sem madrugada» (vv. 17-18) ou da situação deficiente da «criança que ficasse / toda a vida criança» (vv. 19-20), perturba o leitor solidário com o trágico desejo de quem se dilacera com o escrúpulo «de dar outra expressão ao que foi dito» (v. 11). (in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, p.92)

Recursos estilísticos:
-          Conjunção copulativa com valor adversativo nos vv. 5 e 10 usada para opor a grandeza de uma obra como a Ilíada ou a profundidade interior do poeta com a incapacidade do poeta em abarcar essas realidades através da sua escrita.
-          Hipérbole no v. 5 que reforça  a insatisfação.
-          Anáfora da expressão «tenho» na 1ª estrofe acentua a angústia do poeta.
-          Enumeração gradativa  no v. 7 dos objectos da procura responsáveis pela sua inquietação.

-          Imagem e metáfora: «mar de silêncio» e «noite / Sem madrugada» para transmitir a mesma incapacidade humana em conseguir a palavra certa sempre que se quer.

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Miguel Torga | Poesia

Chave de correção dos questionários



«S. LEONARDO DE GALAFURA» (Guerra: 1999, 398)

1.1. O barco rabelo.

1.2. Viagem através do Douro, donde contempla um espaço de rara beleza.

1.3. Ama os valores terrestres.

2. Três partes, correspondentes a cada estrofe: o santo navega devagar em direcção à eternidade; razão por que vai devagar; retorno à imagem inicial da viagem lenta em direcção à eternidade.

3.1. Estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos); métrica irregular (versos de 2 a 22 sílabas); versos soltos e rimados. Todos estes factores se conjugam para dar uma ideia da irregularidade do espaço observado.

3.2. Alternância de sons abertos e de sons fechados = alegria pelas coisas terrestres e tristeza por ter de as deixar; aliterações: /p/= viagem, / m/ = apelo à terra...

3.3. Presente do indicativo no seu aspecto durativo = permanência, lento desenrolar da viagem;
conjugação perifrástica = permanência, lento desenrolar da viagem.

3.4. Coordenação, processo dominante ( há uma oração relativa = que gasta no caminho) = o processo da viagem, lento e sequente.

3.5. Conjunto das metáforas destacadas = a imagem do santo navegando em direcção ao céu, sabendo que não encontrará as belezas terrenas.

4.1. O apego à terra.

4.2. Todos as expressões intensificam esse apego numa manifestação de telurismo.



«LIVRO DE HORAS» (Cardoso: 2003, 216)

1.1.Livro de horaslivro de orações

Tipo de discurso utilizado: confessional.
Confissão a si próprio – o Eu do poeta impõe-se; confessa-se, diante de si próprio, «De ser assim como [é]». Ou seja, de ser «Homem». É, pois, o retrato contraditório do Eu que aqui se apresenta, o retrato de alguém para quem a liberdade é algo adquirido: «me confesso / o dono das minhas horas». É este, sem dúvida, um poema de afirmação do humano, da condição humana, mas a nível de linguagem entra no domínio da religião.

"O Outro Livro de Job é, com efeito, a primeira obra que corporiza em toda a sua grandeza o drama fáustico de Torga. Ele reflecte, cm toda a plenitude, a busca do homem do seu próprio ser – e este itinerário passa por um conflito aberro com o Absoluto e com os outros. Guiam-no neste itinerário os sentimentos da liberdade e da culpabilidade, as duas metades de si mesmo que se não adequam nem ajustam. Segundo o princípio da liberdade, a pessoa está obrigada a fazer-se, a realizar a sua existênciatarefa que depende única e exclusivamente ao indivíduo, sendo que para isso lhe está vedado partir de apoios ou de modelos estranhos". (Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e Ler Torga, pp. 52-53)

2.1. Predomina o presente do indicativo que contribui para conferir ao texto toda a força, evidência e vivacidade.

2.2. Todas as frases são do tipo declarativo à excepção da última, que é exclamativa.
Os três primeiros versos da primeira estrofe, em que o Eu se nos apresenta como pecador disposto à confissão;
os versos 4-36, em que o autor se nos confessa dividido entre o "bom e o mau"; a última estrofe, em que se regressa à síntese inicial do Eu – note que há uma semelhança entre o que se diz na primeira parte e o que se diz nesta última estrofe. Na última estrofe, o poeta assume-se, corajosameme, como um "eu'' que, embora dividido como se confessou, permanece diante de si, autodesafiando-se "nesta deriva" (que é a vida), e em que, apesar dos abismos e das tempestades, não acredita no naufrágio.

3.1. As vírgulas estão a isolar a palavra «pecador» que desempenha a função sintáctica de aposto, caracterizando ou determinando melhor o pronome antecendente «Eu».

3.2. Foneticamente, o termo «assim» surge em rima interna, harmonizando com «mim». Também funciona como um deíctico[1], reenviando para o momento da escrita. Um encontro entre o eu que escreve («Aqui ... eu ...  me confesso») e aquilo que é escrito (referenciado como «assim»), espacialmente situado num «aqui»/«assim», que não tem qualquer sentido fora do texto em que é produzido. O Eu assume claramente a autoria do texto/ da confissão. (cf. Veríssimo: 2003, 101)

4. Marcas textuais ao serviço de um estilo confessional: abundância de utilização da primeira pessoa verbal, de pronomes pessoais e possessivos da primeira pessoa (eu, me, mim, minha, minhas) e alguns deícticos (aqui, diante, desta, nesta, acima, abaixo) que fazem convergir centripetamente toda a problemática abordada.

5.1.
«Eu, pecador, me confesso / De ser assim...»
Dimensão positiva
Dimensão negativa
«o bom» (v. 4)
«o mau» (v. 4)
« o possesso de virtude teologais»
«e dos pecados mortais»
« o das facadas cegas e raivosas»
« o das ternuras lúcidas e mansas»
« charco»
«luar de charco»
« corda do arco que atira setas acima»
« e abaixo da minha altura»
Abel
Caim
« anjo caído do céu»
«monstro saído do buraco mais fundo da caverna»



[1] Deíctico: é todo o elemento linguístico que, num enunciado, faz referência: 1) à situação em que esse enunciado é produzido; 2) ao momento do enunciado (tempo e aspecto do verbo); 3) ao falante. Assim, os demonstrativos, os advérbios de lugar e de tempo […], os pronomes pessoais […] são deíciticos, constituem os aspectos indiciais da linguagem. (in Dic. Linguística, Jean Dubois et alli, São Paulo, Cultrix, 1978.)





«ORFEU REBELDE» (Veríssimo: 1999, 55; Guerra: 1999, 402; Acesso..., 172)

1) Tema/assunto: Rebelde, o sujeito lírico pretende gravar, através do canto (poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à invevitabilidade da morte.

2) Desenvolvimento do tema / momentos em que está estruturado: três momentos correspondentes às três estrofes: Orfeu rebelde, os outros e o Eu, bicho instintivo.

3) Oposição sujeito poético / os outros poetas = rouxinóis = românticos.
O sujeito lírico não pretende exprimir emoções mas um grito de revolta; poesia romântica versus poesia de revolta.

4) Concepção da poesia defendida: poesia como arma de combate; poesia de desespero humanista.

5) Marcas de rebeldia, donde se destacam:
a) os valores do nível fónico:
-          aliteração do fonema /c/ ao longo do poema conjugada com a aliteração do fonema /t/ = luta e rebeldia;
-          os vários transportes = ritmo agitado;
-          sugestão de luta;
-          domínio do verso decassílabo = luta sem tréguas.

b) a expressividade da adjectivação: é sugestiva a rebeldia (rebelde, cruel, famintas, instintivo, legítima); há também o adjectivo irónico:  felizes.

c) o valor dos verbos:
-          domínio do presente (canto, sou, ergo) = permanência da luta;
-          o presente do conjuntivo (sejam, saibam) = desdém;
-          o imperfeito do conjuntivo (gravasse) = hipótese.

d) a importância das figuras de estilo – a personificação casa-se com as metáforas e as imagens:
        comparação:
«como um possesso» (v.2) = decisão completa; fúria do seu canto, desafio;
«gritos comonortadas» = violência da revolta, comparação resultante da aproximação da sua revolta à revolta dos elementos da natureza;
«canto como quem usa / os versos em legítima defesa» (vv. 15-16) = poema como legítima defesa.

        Personificação:
«que o céu e a terra, pedras conjugadas/.../ saibam quegritos comonortadas» (vv. 9,11) = exprimir a violência dos elementos da natureza contra o tempo;
«violências famintas de ternura» = exprimir a força e a necessidade do amor;

        Repetição: «canto» = exprimir a ideia que a sua arma é a poesia.

        metáforas e imagens:
gravação na «casca do tempo» = a gravação exprime a revolta contra a passagem do tempo. A imagem da «casca do tempo» surge como sinal da perenidade (duração) contraditoriamente efémera e aparente por ser apenas casca; a gravação é «a canivete» (v. 3), para que a própria evolução da casca torne mais duradoira e viva a sua revolta.
      «rouxinóis» = românticos.
      «pedras conjugadas» (v. 9) = união de todas as forças.
      «moinho cruel que me tritura» (v. 10) = imagem que evoca a passagem do tempo não apenas como um moinho, mas entende-a, também, como agressiva e dilacerante.

6) Metáforas da poesia: «canto» é a palavra chave que denuncia a obsessão do sujeito da enunciação: ser poeta.

7) estrutura formal: três sextilhas de rima branca, interpolada e emparelhada segundo o esquema: abcdcd/efghgh/ijjljl. Variedade também na medida dos versos: de 6 sílabas a 12, predominando o verso decassílabo.

8) Título: no mito de Orfeu, esta figura mitológica  perdeu a sua amada Eurídice e recorreu ao cântico como arma  de revolta. Os versos surgem aqui «em legítima defesa» do sujeito poético, que se revolta contra os limites de ser humano, nomeadamente, contra a transitoriedade da vida e a inexorabilidade (implacabilidade) do tempo.



«MACERAÇÃO» (Guerra: 1999, 405-406)

1. Tema: o drama de criar (o suplício de escrever).

2. Três partes que correspondem às três estrofes, sendo que a estruturação do tema faz-se em forma circular: pedido à Musa para que destrua os seus versos (plano geral); indicação das imperfeições (plano particular); retorno ao sentido inicial (plano geral).

3. O sujeito poético apostrofa a Musa não porque acredite na inspiração vinda do alto mas porque Musa é no contexto do poema sinónimo de perfeição. Assim sendo, na expressão «Musa insatisfeita» há uma hipálage, pois que a insatisfação é do poeta.

4. O sujeito poético não gosta do trabalho que faz, não gosta da sua poesia porque esta não atinge a perfeição que julga dever ter. Eis, então, as palavras que revelam o seu desalento: Pisa (v.1), insatisfeita (v.1), frutos acres (v.3), Falta-lhes génio (v.5), Cospe (v.7), Corta-me (v.14)...

5.1. A nível morfossintáctico, note-se que:
-          os verbos no imperativo estão ao serviço da função apelativa da linguagem;
-          o predomínio da coordenação é justificado porque o poema contém uma sequência de apelos;
-          de forma geral quer os adjectivos (Musa) insatisfeita, (frutos) acres, (rima) impura, (ímpeto) celeste, (corpo) inteiro e os nomes tédio e nojo apontam a insatisfação do poeta.

5.2. A nível estilístico é de salientar a expressividade das metáforas:
- «frutos acres» = rudeza dos versos;
- «Falta-lhes génio, o sol amadurece» = versos irregulares;
- «estas sílabas contadas, vestígios digitais de evadido» = poesia moderna, irregular, transgressão da lírica tradicional, e artificialismo;
- «corta-me as asas que me deste» = o poeta não cumpre a missão para que foi incumbido e por isso não é digno dela.


Numa autocrítica severa, o sujeito desdenha dos seus versos através da metáfora dos «frutos acres» (v.3), aos quais faltou o «sol» do «génio» (v. 5). São, na sua óptica autodisplicente [de autodesprezo], uma desfiguração da musa, «Em cada imagem» (v. 8), na «rima impura» (v. 9), nas «sílabas contadas» (v. 11), avaliadas como «vestígios digitais do evadido / Que deixa atrás de si as impressões marcadas» (vv. 12-13). Por isso o sujeito desafia a Musa a pisá-los , cuspindo de «tédio e nojo» (v. 7), e a cortar-lhe «as asas» (v. 14) do voo poético, numa recusa de «corpo inteiro» (v. 16) a «Esse ímpeto celeste» (v. 17) da inspiração. (in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, p.92)



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  • Leitura orientada e sugestões para análise literária de poemas de Miguel Torga:

Título

Incipit

A Esfinge

Sei a resposta inútil

A um Negrilho

Na terra onde nasci há um só poeta.

Ar livre

Ar livre, que não respiro!

Auto-retrato

É por detrás do espelho que me vejo,

Claro-escuro

Dia da vida

Depoimento

Foi na vida real como nos sonhos:

Descida aos Infernos

Desço aos infernos, a descer em mim.

Lago turvo

Angústia marginada,

Lamento

Pátria sem rumo

Mar

Mar!

Memorando

Senhor, / Se o meu tempo é de campos de concentração,

Pedagogia

Brinca enquanto souberes!

Prospeção

Não são pepitas de oiro que procuro.

Retrato

O meu perfil é duro como o perfil do mundo.

Sagres

Vinha de longe o mar...

Sísifo

Recomeça…

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

Visita

Fui ver o mar.

 

 


 

 



“A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-poetica-torguiana.html> (última atualização: 2022-09-29)


quarta-feira, 18 de abril de 2018

A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível | RETRATO DE MÓNICA, Sophia Andresen


Cecília Supico Pinto no seu gabinete


RETRATO DE MÓNICA 

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstrata.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distração pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distração. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é ótima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Contos Exemplares, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962



       AUDIO

       Clique aqui para escutar o conto (locução: Regina Brasil. Gravação efetuada nas instalações do Centro Naval de Ensino a Distância. © Instituto Camões, 2002).






QUESTIONÁRIO

1. Leia o início do conto:
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis»...
Qual lhe parece ser a atitude do narrador em relação a Mónica?
O narrador demonstra:
- simpatia
- condescendência
- ironia
- admiração
http://cvc.instituto-camoes.pt/contomes/19/entrada.html
2. Vamos interpretar.
2.1. Ao enumerar todas as tarefas de Mónica, o narrador pretende demonstrar que a personagem:
- tem os dias ocupados com muitas atividades importantes.
- tem muito tempo livre e poucas atividades.
- é desorganizada nas suas atividades diárias.
- tem os dias preenchidos com muitas atividades sem valor.

2.2. «Tenho conhecido muitas pessoas parecidas com Mónica».
A personagem é aqui apresentada como modelo relativamente a:
- características físicas, como cor de olhos e cabelo.
- maneira de ser e de viver.
- mau relacionamento com as pessoas.
- incapacidade de atingir o sucesso.

2.3. «Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade».
Fez tudo para:
- dedicar o seu tempo aos outros.
- ter um emprego estável.
- ser bem recebida pela sociedade.
- ter os dias menos ocupados.

2.4. «Como um instrumento de precisão ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas».
A frase revela que Mónica é uma pessoa:
- que escolhe as companhias consoante precisa delas.
- que não gosta de ter amigos importantes.
- que gosta de perder tempo com os amigos.
- que gosta de ter muitos amigos.

2.5. Em relação ao marido, «quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada».
Esta frase significa que:
- Mónica se preocupa tanto com o marido que lhe resolve muitos assuntos.
- ele é tão incompetente que tem que ser Mónica a decidir.
- ele só é nomeado porque ela já não tem tempo disponível.
- Mónica decide tudo por ele porque é ela que quer mandar.

2.6. Qual é a frase que melhor resume a vida da personagem?
Para Mónica:
- a família está em primeiro lugar.
- a solidariedade ocupa-lhe todo o tempo.
- o trabalho é o fator mais importante.
- a vida é um negócio.
http://cvc.instituto-camoes.pt/contomes/19/compreender.html


“Retrato de Mónica” no Exame Nacional de Português

 

Leia o texto desde “Mónica é uma pessoa tão extraordinária” até “Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.”

 

1. O retrato de Mónica adquire contornos de caricatura ao serviço da crítica social.

Explicite dois aspetos significativos da construção desse retrato.

 

2. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação.

Com a expressão «qualquer distração pode causar a morte do artista», o narrador pretende evidenciar que a perfeição perseguida por Mónica a obriga a uma

(A) autovigilância constante para se afastar do materialismo.

(B) tomada de decisão irreversível para combater a sua vulnerabilidade.

(C) autovigilância constante que a mantém focada no seu propósito.

(D) tomada de decisão irreversível que decorre de uma constante autocensura.

 

3. «Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio.»

Explique as afirmações do narrador acima transcritas.

 

 

CENÁRIO DE RESPOSTAS:

 

Nota prévia: Nos tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas  à exceção das utilizadas no interior de cada uma das citações  correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa. As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.

 

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

  • Mónica é caracterizada como «uma pessoa tão extraordinária» que consegue realizar múltiplas tarefas, ser bem sucedida e possuir riqueza («gloriosos bens» – l. 13), o que a torna aparentemente perfeita; porém, essa perfeição esconde uma mulher fútil («dirigente da “Liga Internacional das Mulheres Inúteis”» – l. 2), hipócrita e calculista, que «mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas» (l. 22);


  • a acumulação exagerada e inverosímil de qualidades (por exemplo, «ser sócia de todas as sociedades musicais» – l. 7; «dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela» – l. 5; «estar sempre divertida [...] e ser muito séria» – ll. 7-8) produz um efeito negativo, mostrando que o objetivo do narrador é ridicularizar e não elogiar Mónica;


  • a colocação em plano de igualdade de qualidades valorizadas socialmente, como «ser boa mãe de família» (ll. 1-2), e de atividades do quotidiano e insignificantes, como «comer iogurte» (l. 6), é reveladora da intenção satírica do narrador;


  • a caricatura está patente em diversas passagens do texto, por exemplo, quando o narrador afirma que Mónica trabalha de sol a sol e que teve de renunciar à poesia, ao amor e à santidade, realçando o elevado grau de sacrifício e de calculismo que a personagem tem de impor a si mesma diariamente para obter prestígio social.

 

2. (C) Com a expressão «qualquer distração pode causar a morte do artista», o narrador pretende evidenciar que a perfeição perseguida por Mónica a obriga a uma autovigilância constante que a mantém focada no seu propósito.

 

3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

  • Mónica sabe sempre como agir para alcançar os seus objetivos, utilizando a sua inteligência para criar de si mesma uma imagem que ela considera perfeita e que vai ao encontro dos padrões da sociedade;


  • a oposição inteligência/estupidez enfatiza a hipocrisia de Mónica, que, no fundo, se aproveita da ignorância/estupidez dos outros para os manipular.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)

Prova – versão 1: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-V1_net.pdf

Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-CC-VT_net.pdf

 

 

Poderá também gostar de saber que...


Há uma narrativa breve nos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner que sempre me impressionou. Chama-se “Retrato de Mónica” e é uma sátira feroz da alta burguesia dominante sob a ditadura de Salazar. Como o regime da sátira não é habitual em Sophia, este conto coloca-se em manifesta dissonância em relação aos outros contos e à restante obra da autora.
Horácio, na sua Ars Poetica, define a sátira como um género ao serviço da morigeração cívica, em nome de determinados princípios e valores morais. “Ridendo castigat mores" é a conhecida síntese que traduz esta conceção. É diferente o ponto de vista de Juvenal, que considera a indignação como fonte de inspiração do poeta satírico e faz da sátira um meio de condenar vícios ou defeitos pessoais, de forma violenta e crítica.
O conto “Retrato de Mónica” situa-se entre estas duas conceções da sátira. O ataque é pessoal e a indignação é sem dúvida o estímulo da criação, mas o alcance da crítica é social e político, em consonância com o propósito de intervenção que preside à maior parte dos contos da coletânea, assinalado aliás na dedicatória a Francisco Sousa Tavares: “Para o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual”.
Mónica é, ao que parece, um retrato de Cecília Supico Pinto, a famosa “Cilinha”, como era conhecida na época. Mulher de Luís Supico Pinto, que ocupou importantes cargos políticos e administrativos e foi um dos homens de confiança de Salazar, Cecília Supico Pinto criou o Movimento Nacional Feminino, de que foi presidente entre 1961 e 1974. O Movimento destinava-se a prestar apoio na guerra colonial e tornou-se um dos instrumentos de propaganda da política ultramarina nos anos 60, graças sobretudo à visibilidade pública da sua presidente, que, além de privar com o ditador e com as altas patentes militares, era figura indispensável nas festas do “Natal dos Soldados e das Famílias” e noutros eventos similares, e se deslocou várias vezes a África em missões de ação psicológica.

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Destacamento de Carenque > 1973 > A Cilinha a "cantar o fado"... perante um grupo de soldados... (Carenque ficava a norte da ilha de Pecixe, na margem direita do Rio Mansoa.)
Disponível em: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/10/guine-6174-p21464-decaras-130-cecilia.html


Em “Retrato de Mónica”, Sophia mobiliza todos os recursos irónicos para traçar a caricatura da mulher de sociedade que “faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome”1, íntima de poderosos e esteio fiel do ditador, numa relação de implicação que o final do conto torna explícita:
“Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima e toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio, o mais firme fundamento do seu poder”.
Este final torna evidente a estratégia metonímica do conto: a metonímia, enquanto tropo de deslocação ou implicação, é aqui uma forma indireta de representação do poder. O ponto de mira não é propriamente o ditador – apesar de ele aparecer nomeado como o “Príncipe deste Mundo” – mas sim as extensões da autoridade, na figura emblemática de Mónica.
Não menos conseguido é o modo de estigmatizar a figura em questão, através da litotes. Em vez dos vícios ou defeitos da personagem satirizada, à maneira convencional, são as qualidades que são postas em realce:
“Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da “Liga Internacional das Mulheres Inúteis”, ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria”.
Esta é talvez a frase mais longa da prosa narrativa de Sophia, prosa essa que, como veremos, obedece normalmente a outras cadências e a outros metros. A acumulação, mais ou menos caótica e levada até ao absurdo, é um recurso eficaz ao serviço da sátira. Acaba por tornar inverosímil o retrato, produzindo um efeito de negação dentro da própria afirmação. Ajudam à função demolidora outros tropos do pensamento, como a hipérbole, a ironia, o “nonsense” e até o humor negro:
“A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma.(...)
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também(...)”.
O retrato é, de facto, notável. Mas se pelo tom satírico e corrosivo ele se nos afigura dissonante dos restantes contos, tem de comum com eles o carácter exemplar. A exemplaridade é, de facto, um traço fundamental da coletânea, como o próprio título indica. Decalcado do de Cervantes, Novelas Ejemplares, é um indicador incontornável, que sublinha a determinação axiológica do texto. O prefácio de D. António Ferreira Gomes à 3.ª edição dos Contos Exemplares, de 1970, começa por destacar precisamente este aspeto: “Contos Exemplares – Provocação, desde o próprio título!... Contar histórias, e histórias exemplares, nestes tempos de literatura - romance, novela, filme ou poema – sem herói, sem personagens, sem enredo, sem objeto, sem desfecho? Fazer exemplares estes contos, quando certa literatura up to date se quer situar fora da moral e dos valores (...), fora também da coerência e do bom senso, para instalar-se comodamente (ou angustiada e nauseadamente, tanto vale!) na dispersão, na confusão, no Absurdo, Angústia e Náusea?!”. Destacando a obra do contexto histórico-literário dominante, o prefaciador louva a sã exemplaridade dos contos de Sophia no plano humano e moral. Recorde-se que D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto a partir de 1952, foi uma das vozes mais desassombradas da hierarquia eclesiástica durante a ditadura. A sua famosa carta de 13 de julho de 1958 ao Presidente do Conselho, criticando o regime corporativo e defendendo os valores da doutrina social cristã, causou polémica e valeu-lhe o exílio durante dez anos.

Clara Rocha, “Para uma leitura dos Contos Exemplares”, MÁTHESIS n.º 10, Viseu, Universidade Católica Portuguesa. Faculdade de Letras, 2001

***



Cecília Supico Pinto

Quebrou um silêncio com mais de três décadas e autorizou a publicação de uma biografia que evoca sobretudo os anos da guerra colonial. Líder do Movimento Nacional Feminino, Cilinha foi a mulher que, entre 1961 e 74, tentou servir a propaganda da política colonial do regime
a Foi o primeiro momento de visibilidade. Em 1949, quando o general Norton de Matos lançou a sua candidatura à Presidência da República, o país assistiu a uma inédita mobilização feminina conservadora. A iniciação na política de um vasto grupo de mulheres, maioritariamente católicas, fez-se através do Movimento Nacional Feminino (MNF), então liderado por Maria Teresa Andrade Santos. O MNF servia, então, dois propósitos: apelava à participação ativa na campanha eleitoral do marechal Carmona e assumia-se como uma espécie de movimento de resistência contra as ideias propagadas pela Comissão Feminina do Movimento de Unidade Democrática. 
Depois das eleições, a palavra de ordem que as mulheres do MNF exclamavam nos comícios de Carmona - "ao serviço de Deus, da pátria e da família, o vosso grito de mulher será sempre apenas este: presente!" - não se fez ouvir com tanto estrépito. O MNF entrou em hibernação. Até 1961. 
Para quem acreditava, como Cecília Supico Pinto, que Portugal ia "do Minho a Timor", o início da guerra nas "províncias ultramarinas", como ainda hoje designa Moçambique, Angola e Guiné, não era o momento para recuos ou hesitações. Cecília, educada numa família da alta burguesia lisboeta e assumidamente monárquica, fez despertar o MNF e, na qualidade de sua presidente, apelou à mobilização das mulheres para o apoio moral e assistencial aos soldados que partiam para a guerra. 
Em 1963, já António de Oliveira Salazar, que então proibira todas as associações de mulheres que não fossem agregadas ao regime, reconhecia publicamente os efeitos das ações do MNF junto das tropas que combatiam no Ultramar. "Elas servem de apoio aos que são tentados a descrer e hesitam e perturbam com dificuldades que vós não receais e nós estamos seguros de vencer", disse o então Presidente do Conselho, recolhendo uma ovação de centenas de mulheres.
Na frente de combate
Há mais de três décadas que o nome de Cecília Supico Pinto desapareceu da esfera pública (com a exceção da referência que Pedro Abrunhosa lhe fez numa entrevista ao Ípsilon, no ano passado, a propósito da "caridadezinha" que abomina). Depois dos anos de silêncio, Supico Pinto decidiu aceitar o desafio da historiadora Sílvia Espírito Santo e contar um pouco da sua vida, centrando as recordações nos 13 anos da guerra colonial. 
O resultado dessas conversas que se alongaram por quatro anos é o livro Cecília Supico Pinto - O rosto do Movimento Nacional Feminino (Esfera dos Livros), hoje apresentado por Anne Cova e Fernando Dacosta na Sociedade de Geografia, em Lisboa, às 18h30. Com a exceção do Expresso (ao qual deu uma entrevista), a antiga líder do MNF, hoje com 86 anos, manteve a sua recusa em falar com a comunicação social. 
A obra de Sílvia Espírito Santo não é uma biografia no sentido clássico do género. Não se limita a transformar o livro num longo depoimento, nem faz dele um repositório de memórias. Rejeitando a ideia de escrever uma biografia laudatória ou hagiográfica, a investigadora do Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais procurou "o rigor", cruzando as recordações de Cecília com factos históricos, depoimentos de mulheres do MNF, historiadores e antigos combatentes, e também com a literatura sobre a guerra colonial. 
Durante os anos da guerra, Cilinha, como era conhecida, foi mais do que o rosto do MNF. Pertencente ao topo da hierarquia do regime, era ela quem personificava todas as actividades do movimento feminino - com um curso de Enfermagem na bagagem, viajou incessantemente pela Guiné, Angola e Moçambique, entrou pelo mato dentro, vestiu um camuflado para acompanhar os soldados na linha da frente dos combates (o "baptismo de fogo" aconteceu nos arredores de Mueda, Moçambique), aprendeu a disparar, dormiu ao lado de uma G-3, foi ferida pelos estilhaços provocados pelo rebentamento de uma mina, na Guiné. Escreve a autora do livro que Cecília "trabalhou para e entre homens", um acto "socialmente reprovável" no Portugal da segunda metade do século XX. 
Ao P2, Sílvia Espírito Santo define-a como uma mulher "paradoxal": porque "tem posições avançadas na defesa do empenhamento social das mulheres, mas é uma antifeminista primária". As causas para as quais ela apelava estão longe de traduzirem a emancipação das mulheres portuguesas. Até porque, sob a capa do apoio prestado pelo MNF, o movimento operava a doutrinação ideológica e moral junto das mulheres e dos combatentes. 
Em finais de 60, Cecília não poupou as mulheres que se organizaram contra a política colonial. Por isso, considerou como um ato de "guerrilha internacional" a reunião, em Helsínquia, da Federação Democrática Internacional das Mulheres, na qual participou uma comitiva portuguesa do Movimento Democrático das Mulheres. 
Vigiada pela PIDE
Quando Cecília iniciou a sua "missão" no MNF, uma organização "patriótica" de apoio aos militares e às suas famílias, não descurou nunca os seus "deveres" enquanto "dama" do regime. Era casada com Luís Supico Pinto, que começou por ser subsecretário de Estado das Finanças, foi ministro da Economia, presidente da Câmara Corporativa e membro do Conselho de Estado. 
As importantes funções que o marido foi exercendo aproximaram-na do Presidente do Conselho. O historiador José Freire Antunes, citado no livro, designa-a como o "duplo feminino" de Salazar. Ao P2, a historiadora explica: "Ela tem a personalidade que ele gostaria de ter: é culta, desinibida, bem-nascida. Por isso, ele sublimava-a". 
Salazar gostava de ouvir as anedotas que ela contava. Mas a relação não se alimentava apenas de uma admiração mútua. Cilinha fazia-lhe relatórios sobre o que via e ouvia quando regressava dos teatros de guerra e, para o chefe do Governo, esta mulher era o perfeito meio de propaganda no terreno militar e junto da opinião pública. A recompensa que ela recebeu foi esta: dentro e fora do regime, houve quem a visse como a "primeira-dama" (foi o caso de Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1962, conforme se pode ler no livro). 
 ima que mantinha com Salazar não impediu que o seu telefone estivesse sob escuta e que todos os seus passos fossem vigiados pela PIDE, conforme se pode constatar no arquivo da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. Questionada sobre o assunto, Cecília explicou que tinha conhecimento destas acções de "vigilância" e que nada tinha a esconder. "Acho que, a certa altura, ela pensou que estava acima da PIDE", nota a investigadora, "porque não evitava certo tipo de conversas e chegava mesmo a chamar este e aquele de fascista. Ela não tinha medo, é certo. Mas acho que a PIDE a vigiava para a proteger." 
Cecília parecia conhecer de cor as malhas do salazarismo e sabia quais as regras para uma boa convivência, o que lhe garantia um chorudo subsídio do Ministério da Defesa e do Ministério do Interior. Entre essas regras estava a ausência de qualquer tipo de reclamações. Só assim se justifica o facto de o Ministério de Defesa se ter apropriado, sem burburinhos, de várias propostas idealizadas pelo MNF. A saber: a gratificação de isolamentos dos militares em serviço nas fronteiras, nova legislação para militares universitários, subvenções para as famílias, deslocação e pagamento dos funerais dos militares mortos em combate. 
Para o MNF, e para a sua presidente, restavam os "louros" do envio de tabaco e de revistas e da iniciativa das "madrinhas de guerra", uma cópia do trabalho realizado pela Cruzada das Mulheres Portuguesas, liderada por Ana de Castro Osório, durante a I Guerra Mundial. 
Até 1974, a edição de revistas foi uma das faces mais visíveis do trabalho do MNF: primeiro surgiu a Presença, depois a Guerrilha e, finalmente, a Movimento. Na sede, na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, um pequeno estúdio de rádio emitia para Angola, Moçambique e Guiné o programa Espaço e foi nesse mesmo estúdio que o MNF gravou o disco Natal 71, uma coletânea que provocou polémica porque foi distribuída nos campos de guerra, onde, como se podia imaginar, não existiam gira-discos. 
"Exibicionismo" em África
As reações dos combatentes às atividades do MNF e às visitas a África de Supico Pinto foram as mais diversas, constatou Sílvia Espírito Santo. "A partir da segunda metade da década de 60, os militares mais politizados atacam o MNF como forma de atacar o regime. Há outro tipo de militares que dizem os maiores insultos sobre ela e há ainda uma faixa que vive dessas memórias e que enaltece o trabalho do movimento", explica a investigadora, que recorreu ao romance Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, para olhar o MNF pelos olhos dos que partiam: "Reencontrei-as [as senhoras do MNF] no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-os com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão." Mas, fora dos territórios da guerra, houve também ferozes ataques a Supico Pinto. Vinham sobretudo da Rádio Portugal Livre, emitida em Argel pela Frente Patriótica de Libertação Nacional, que a acusava de "exibicionismo" nas incursões a África. 
A isto somou-se a fria e distante relação que Cilinha mantinha com Marcelo Caetano, nomeado Presidente do Conselho em 1968. Ela temeu que ele pusesse cobro à guerra, considerava-o "desconfiado", dizia que lhe chamavam "o pisca". Sílvia Espírito Santo nota que a animosidade já tinha muitos anos: "Ele tomou posições sobre a monarquia que desagradaram a Cecília e ao marido. E quando Luís Supico Pinto estava no Ministério da Economia, Marcelo foi uma das pessoas que mais o criticaram por não saber resolver os problemas económicos do pós-guerra". 
Olhando para as atrocidades da guerra, para o crescente número de mortos e estropiados e para as péssimas condições de vida dos combatentes, Cecília nunca vacilou na sua crença por uma nação "pluricontinental e plurirracial"? "Ela sempre acreditou que o regime resolveria qualquer problema. E só nas vésperas do 25 de Abril é que alertou para a necessidade de se fazer alguma coisa, pois considerava que a contestação no meio militar estava fora de controlo", diz a autora. 
A 25 de Abril de 1974, Cecília rumou para a sede do MNF. "Tinha a presunção de que, como eram os militares que faziam a revolução, ela estaria protegida." Ditado o fim da guerra colonial, o MNF tinha os dias contados. E a sua sede também, que foi depois ocupada pela famosa 5.ª Divisão, comandada pelo coronel Varela Gomes. Em Junho de 74, o movimento foi oficialmente extinto e Cecília Supico Pinto remeteu-se a um silêncio de décadas. 
Quando Sílvia Espírito Santo visitou a Rua das Janelas Verdes, em busca de recordações sobre o trabalho do MNF, alguém lhe perguntou se era da PIDE. "Respondi que a PIDE já não existia e a pessoa disse-me: "Isso é o que a senhora pensa"." 

Maria José Oliveira, Público, 12-02-2008


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     A guerra colonial e o Movimento Nacional Feminino (MNF)

 Crónica de Carlos Esperança

Mais de cinquenta anos volvidos sobre o regresso à Pátria, ainda é doloroso voltar aos sítios onde o crime de ser português levou uma geração a sobreviver em condições precárias, de armas na mão, para fazer uma guerra inútil, injusta e antecipadamente perdida.

Recordo o embarque no cais de Alcântara num qualquer dia de outubro de 1967, rumo a Moçambique, com mulheres e meninas bem vestidas a ostentarem braçadeiras do MNF para a coreografia do adeus aos mancebos que a sorte destinara a Moçambique.

Não assisti à pungência da despedida, num misto de nojo e raiva. Preferi o camarote ao convés inclinado do Vera Cruz, o silêncio do navio ao clamor do cais, a solidão ao ruído coletivo e à cumplicidade com a coreografia das damas do MNF a saltitar na amurada.

Nutria pelo exército de saias da D. Cecília Supico Pinto o mais profundo asco, o rancor de quem sabia inútil a guerra e inglório o sacrifício. Aquelas braçadeiras lembravam-me as suásticas do nazismo. Eram a versão aparentemente casta das prostitutas que os exércitos toleram ou alugam. A D. Cecília usava os apelidos do Dr. Clotário, seu marido e destacado fascista, que fez a vida nos governos de Salazar e na Câmara Corporativa de que foi presidente durante 16 anos. Era uma salazarista beata com especial devoção aos alferes da Guiné.

Ouvi o ronco da partida e senti deslizar o navio gigante, puxado pelo rebocador, rumo à costa africana. Quis esquecer as lágrimas dos meus camaradas e dos seus familiares e aquela tropa de saias que estava ali para estimular o patrioteirismo dos que partiam, indiferente a quem morresse.

A PIDE tinha-me impedido a ida para Macau e, seguidamente, para Timor, em rendição individual, motivo por que ocultei aos meus pais a data da partida e o destino. Aliás, só soube do destino quando, em Viana do Castelo, o 1.º sargento quis pagar-me dois meses de vencimento, habituais antes da partida, o que recusei por ter recebido a importância devida, embora menor, por Macau.

As peripécias que rodearam o embarque e o destino que me coube levaram-me a decidir só vir a Portugal se, nas segundas férias, já não estivesse em zona de guerra. Não queria aumentar a ansiedade dos meus pais.

Como a Companhia esteve toda a comissão em zona de guerra, embora de perigosidade moderada, passei as férias em Nampula com idas à deliciosa Ilha de Moçambique, hoje património da Humanidade.

Foi nas segundas férias que um dia senti dores intensas, logo tornadas lancinantes. Fui atendido à porta de armas por um psiquiatra conhecido através de um amigo, Cachucho Rodrigues, médico do meu batalhão e colega dele de curso e que, por motivos de saúde, não concluíra ainda a especialidade.

Chamava-se Adriano Vaz Serra e viria a ser catedrático de Psiquiatria da Universidade de Coimbra. De pistola à cinta, vestido de alferes e de oficial-dia ao Hospital, disse-me que tinha um cálculo renal e ordenou que me acompanhassem ao serviço de Urologia.

Esqueci mais facilmente as dores pungentes do cálculo de oxalato de cálcio, que acabou por sair, do que a visita de personagens do MNF à enfermaria, tia e sobrinha, de cerca de 50 e 20 anos respetivamente, e uma figura menor que segurava as ofertas.

Entrou à frente a mais velha e exuberante, acompanhada da de 20 anos, muito apetitosa, sobretudo para quem tinha muitos meses em zona de guerra. Era a coronela Canelhas, mulher do coronel do mesmo nome, dirigente do MNF, em visita aos internados na única enfermaria onde não perguntava a cada um pela doença ou acidente que sofrera, quase sempre moléstias de contágio, resistentes aos antibióticos, e que não era prudente indagar.

Entrou na enfermaria a gritar «então estão melhores (?), curem-se depressa que a Pátria precisa de vós», «hoje, trago um bolo muito bom, que aqui a minha sobrinha faz anos e vai casar no domingo (?)», e começou pela minha cama, a primeira das 3 do lado direito da enfermaria, a perguntar, com um sorriso que lhe aproximava as orelhas da comissura dos lábios, ou vice-versa, se queria um maço de cigarros:

- Obrigado, fumo cachimbo.

- Ah!..., mas quer uma fatia de bolo…

- Obrigado, sofro de diabetes juvenil,

e o sorriso esvaiu-se, tornou-se-lhe agreste a voz,

- Quer aerogramas?

- Obrigado, escrevo cartas,

e a sobrinha, pasmada, a olhar-me, enquanto a tia se apressava a despachar as prendas ao serviço da Pátria, imóvel, a ouvir-me dizer-lhe, de forma rude, uma grosseria saída do ódio visceral, com raiva incontida:

- Tão nova e bonita e já nesta vida…

…e o rubor a tomar conta dela, presa ao chão, até à despedida da tia, de costas para nós, depois de ter aviado uma fatia de bolo, um maço de cigarros e uns tantos aerogramas a cada um dos outros 5 camaradas que ocupavam a enfermaria, a sair apressada pela porta por onde entrara, a gritar de novo, já de costas, «curem-se depressa que a Pátria precisa de vós», e a sobrinha, desnorteada e muda, a recuperar o atraso e, talvez, a perceber que o desprezo que merecera era superior ao desejo masculino que julgaria despertar.

Foi o primeiro e último encontro com a fauna do MNF, sem consequências ou saudade.


Crónica de Carlos Esperança, Coimbra, 4 de julho de 2020

Disponível em: https://www.facebook.com/carlos.esperanca.1/posts/pfbid0Siw2EkDWB7ru6y3XD4UfKGbcy5ifHfbff7qonuq3YQcbJBRKk5WyaCwSTeTfQGekl, 26-02-2023

 



A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível | RETRATO DE MÓNICA, Sophia Andresen” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 18-04-2018 (última atualização: 26-02-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/a-poesia-e-oferecida-cada-pessoa-so-uma.html