CEGARREGA
PARA CRIANÇAS
A
Velha dormindo
o
rato roendo
a
Velha zumbindo
o
rato correndo
a
Velha rosnando
o
rato rapando
a
Velha acordando
o
rato calando
a
Velha em sentido
o
rato escondido
a
Velha marchando
o
rato mirando
a
Velha dizendo
o
rato escutando
a
Velha ordenando
o
rato fazendo
a
Velha correndo
o
rato fugindo
a
Velha caindo
o
rato parando
a
Velha olhando
o
rato esperando
a
Velha tremendo
o
rato avançando
a
Velha gritando
o
rato comendo
Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tonic,
Lisboa, Edições Estampa,
6.ª ed., 2007, p. 129.
Considere-se preambularmente o jogo de linguagem que se estabelece entre
o termo cegarrega, que remete
para uma «melodia […] aborrecida por ser repetida muitas vezes no mesmo tom»24 e a presença efetiva de um texto caracterizado pela repetição e alternância
dos sons [ando] e [endo], que pode exprimir um quotidiano marcado por uma
continuidade monótona de ações. A predominância dos sons [v] e [r] conduz a
sucessivas aliterações e a incidência neste tipo de consoantes evoca a
onomatopeia correspondente ao som das cigarras, estando de acordo com outro dos
significados de cegarrega que pode ser o
«instrumento que faz um ruído parecido ao fretenir da cigarra».25 As cegarregas, tal como as lengalengas e as canções de infância
constituem meios de aquisição de conhecimentos da linguagem essenciais para as
crianças que, desta forma, vão aprendendo os sons, associando-os às imagens,
facilitando assim a compreensão do conteúdo e o uso de cada palavra.
No presente texto, assiste-se a uma recriação do jogo infantil do Gato
e do Rato, em que a Velha assume a função de Gato, perpetuando o movimento de
perseguição do elemento mais fraco, representando-se, em jeito de fábula, um
exemplo de um jogo de forças existente em determinada sociedade. A Velha
afigura-se enquanto personagem dominadora, quer pelo uso de expressões verbais
que evocam uma certa condição autoritária associada, neste contexto, a um
ambiente militar, nomeadamente «em sentido / marchando / dizendo / ordenando»,
quer pelo uso de maiúscula no seu nome, conferindo-se-lhe, por este facto, uma
identidade social, pois usamos as maiúsculas para designar nomes próprios;
contrariamente à designação do rato que, por se encontrar grafada em
minúsculas, associa-se a uma condição de anonimato. A subalternidade do rato exprime-se
ainda pelo uso de expressões verbais que se opõem às da Velha, e que
correspondem aos actos de obediência e de submissão: «calando / escondido /
mirando / escutando / fazendo / fugindo». Atente-se na disposição sintática e à
forma como a aposição verbal entre a Velha e o rato expressam dois movimentos
distintos: a que ordena e o que obedece, a que fala e o que cala, a que persegue
e o que foge, representando um contínuo jogo de poder.
No entanto, é o ato da fuga do rato o que desencadeia a peripécia, refletindo
uma postura não conformista perante o poder dominante e impulsionando a criação
de uma nova realidade, ato que Gilles Deleuze designa como «penetrar numa outra
vida».26 Embora o jogo do gato e do rato se caracterize
pelo constante movimento de fuga, transmite-se a ideia de que não se pode
deixar de fugir, sob pena de se perder o jogo, existindo sempre uma
possibilidade de inverter a situação ou de encontrar uma «nova linha de fuga».27 Deste modo, a circularidade permanente entre opressor e oprimido é
interrompida, daí que este ato de evadir-se, que não consiste num ato de cobardia,
mas antes num traçar de uma linha de fuga e o encontrar de uma saída
alternativa, seja uma característica constante ao longo dos contos de
Mário-Henrique.
Assiste-se, assim, a uma focalização de extravasação que consiste no ato
de fuga e de superação da realidade através da literatura.
O prazer de poder ser um outro ou de se fazer passar por outro, a que
Roger Caillois, tal como anteriormente referido, designou como Mimicry,28
concorre
para esse extravasamento, provocando o êxtase e o gozo de liberdade que
resultam, no campo da imaginação, da passagem para o exterior do real. A
diferença relativamente ao jogo original assenta na criatividade com que nos é
apresentada uma nova realidade, uma vez que as relações de força presentes no
jogo alteram-se e são «inventados» novos sentidos e novas formas de uso para o
mesmo jogo. Quer isto dizer que todos os encontros – neste caso entre a Velha e
o rato ou entre palavras e atos – são possíveis no espaço da escrita e todo o
possível se torna real, permitindo, consequentemente, alterar a «forma de
vida».29 […]
Considere-se, em virtude das semelhanças textuais com a cegarrega em
análise, nomeadamente a manutenção da estrutura de poder dominante sob a
designação de Velha, um dos
curtos poemas incluídos nos Contos, intitulado Rifão quotidiano,30 onde é
ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo passivo, conduzir por desígnios
superiores. […]
Retome-se a cegarrega para compreender que é a ação que conduz à
alteração de comportamentos. Assim, a queda do elemento inicialmente em
vantagem, a Velha, tem como consequência a inversão das relações de poder,
constituindo o clímax deste texto o momento da confrontação entre as duas fações
que se observam, que medem forças antes de agir, como se pode verificar nos
verbos utilizados: «a Velha caindo / o rato parando / a Velha olhando / o rato
esperando». O dinamismo verbal com que se sucedem as imagens da Velha e do rato
assemelha-se a uma partida de damas, onde, em cada jogada, cada jogador avança
alternadamente, tendo como objetivo final comer todas as peças do tabuleiro e conseguir assim ser
o vencedor da partida.
Recorde-se que, no jogo de damas, quando uma peça atinge a oitava
linha do tabuleiro, ou seja, o limite do reduto adversário, e passa a ser dama,
adquire, a partir desse instante, a capacidade de se deslocar em todas as direções.
É possível estabelecer uma analogia entre este processo de «promoção» existente
no jogo de damas e esta cegarrega: uma distração ou mesmo uma falta de destreza,
que podem ser responsáveis pela queda da Velha, permitem que ocorra uma
reviravolta na situação. Deste modo, em vantagem em relação ao seu adversário e
encontrando-se a Velha no seu campo de ação, o rato, de acordo com as regras do
jogo de damas, é «obrigado» a comê-la (nas damas a obrigação é efetiva; neste
caso, a obrigação é uma questão de sobrevivência, pois se não o fizer, corre o
risco da relação de forças se alterar de novo e de vir a ser ele o comido).
A focalização de confrontação do escritor com a autoridade vigente é
efetuada pelas analogias que se podem estabelecer entre as figuras do poema e
as personagens da vida real. A Velha e o rato podem ser identificados, respetivamente,
com o Chefe de Estado vigente, António de Oliveira Salazar, sendo este epíteto
frequente em vários textos leirianos – além de surgir nos poemas já citados,
aparece ainda em Caso Zoológico31, A Banana32 e A Velha e as coisas33 –, e com o cidadão anónimo, que não possui atrás de si uma máquina institucional
de poder. A recriação paródica constrói-se a partir da queda da Velha, acto que
ridiculariza a «queda da cadeira» de António de Oliveira Salazar, em 1968, e
que, segundo consta, ocorreu por desequilíbrio, tendo-o impossibilitado de
permanecer no poder. O cómico, no texto, surge por semelhança, como postula
Henri Bergson:
[…] para além da coisa que é
risível na sua essência e nela mesma, risível em virtude da sua estrutura
interna, existe uma multitude de coisas que provocam o riso, sugerindo qualquer
vaga semelhança com aquela outra, ou qualquer associação acidental de uma com
outra que se assemelhe a essa, e assim de seguida; a evidência do cómico não
tem fim, porque gostamos do riso e todos os pretextos servem;34
A decifração deste jogo-poema passa ainda pelo seu «aparente» destinatário:
as crianças. O facto de esta cegarrega lhes ser dirigida pode indiciar a
intencionalidade de recriação, porque o
jogo, ao imitar a vida, constitui uma representação cénica da sociedade (a uma escala
mais pequena), dando, desse modo, às crianças, a oportunidade de, no ato
lúdico, na recreação, libertarem a sua capacidade de criar e de reinventar o
mundo, não ficando condicionadas por regras instituídas por determinada
tradição.
No entanto, em virtude do carácter político deste texto, as crianças a
quem o mesmo se dirige são metaforicamente representativas de todos os adultos
que conservam impulsos vitais fortes, necessários para a prossecução de
mudanças.
A exaltação dos valores da infância na idade adulta está também presente
no 1º manifesto surrealista de André Breton, onde, logo no primeiro parágrafo,
surge uma crítica tecida à sociedade materialista que incita o homem a estar
dependente de objetos, o que resulta numa existência vazia porque desprovida da
capacidade de sonhar e de imaginar. Sustenta Breton que a única forma de reaver
uma existência plena é através da experiência surrealista, pois «L’esprit qui
plonge dans le surréalisme revit avec exaltation la meilleure part de son
enfance».35 Por esta razão, pode entender-se que a imaginação
criativa vai progressivamente abandonando o homem a partir do momento em que
este abandona a condição de criança e se deixa absorver pelos princípios
miméticos da vida adulta, inerentes à sociedade capitalista. Estes princípios,
em consonância com o acima exposto, são instilados nas crianças pela educação de
Estado, assentando na repetição do mesmo enquanto forma de veiculação do
conhecimento, para que este seja continuamente reproduzido sem ser questionado.
Uma cegarrega, uma fábula, uma história, um mito, são ininterruptamente
contados da mesma forma, de geração em geração, constituindo essas narrativas a
estrutura basilar para a formação da consciência e da individualidade humanas.
Observe-se que o provérbio surrealista, recriado a partir de máximas e rifões
populares, passou a ser uma eficaz «palavra de (des)ordem»,36 tendo como intenção primordial a desconstrução de sentidos gnómicos e
o questionamento de «verdades» universais instituídas.
Seguindo a tradição surrealista, Mário-Henrique retoma, enquanto meio
de subversão deste tipo de conhecimento repetitivo, a recriação de adágios
populares. Apresenta-nos, por exemplo, dois textos que parodiam o provérbio
«Cada terra com seu uso, cada roca com o seu fuso», transformando-o em «[…] Cada guerra com seu uso»37 seguido de «[…] Cada
broca com seu fuso»,38 assim como se
apropria da máxima O
silêncio é d’ouro,39 intitulando
ironicamente um conto onde é descrito um interrogatório policial que conduziu
ao silenciamento – eufemismo para a morte
–
do interrogado, por este se ter recusado a falar.
Num dos seus textos teóricos inéditos intitulado O mito da família,40 Leiria considera que a família é a principal instituição limitadora de
liberdade do indivíduo, logo desde a infância:
[…] essa organização, que podemos
classificar de tenebrosa, a família, base da supressão do desejo e destruição –
verdadeiramente secreta – como se o homem, de facto não existisse.
Da remota organização tribal e
totémica, ainda hoje se mantêm os aspetos mais convenientes à sustentação duma
organização que tem por fim único e exclusivo limitar o indivíduo a simples
objeto coletivo sem vontade própria, que tem como objetivo o controle rigoroso
do desejo e cuja finalidade é sempre o domínio e a tirania sobre os que dela
direta ou indiretamente dependem.
De acordo com a nossa leitura desta perspetiva leiriana, há uma intencionalidade
política por detrás da educação da criança, que se inicia logo no seio
familiar, pretendendo direcionar-se a criança – indivíduo em processo de
formação de valores dos quais dependerá na sua vida adulta – para a obediência
cega. A criança passa assim a ser um simples corpo sem desejos próprios, um
autómato, que não questiona e que se limita a executar ordens e a repetir
funções. Isto é conseguido através do medo que é instigado à criança pela família
por via da moralidade, tornando-a permissiva e cooperante com todo o tipo de atos
de tirania dos seus superiores, sob pena de ser castigada e culpabilizada. É
esta a denúncia do autor no excerto seguinte do mesmo ensaio:
Nessa organização tudo se passa
num ritmo já previamente estabelecido, formado por séculos e séculos de
experiência na prática do medo. Para o controle dos que dela dependem, é-lhe
posta a serviço uma legislação de respeito obrigatório inexplicável, criando-se
na criança, logo que ela começa a ter possibilidades de raciocínio, um receio
constante de transgredir aquilo que lhe afirmam – com que bases? – ser o «bom»
e de nunca praticar o que lhe dizem ser o «mau». No próprio conceito familiar
de «bom-mau» existe uma eficiente e perfeita manobra de assegurar a detenção do
indivíduo dentro dum campo de inofensividade; é evidente que uma forte
personalidade não era conveniente e há portanto que aboli-la cercando-a de
tabus de várias ordens, intransponíveis para a maioria: respeito pelos pais,
amor pelos filhos e irmãos, etc, conceitos estes com milénios de
obrigatoriedade de aceitação sem discussão. A noção de responsabilidade é
abolida e substituída por uma noção de submissão.41
Voltando ao texto em análise, o ato de transgressão ao recriar, sem
repetição, o jogo do Gato e do Rato, constitui o
gesto de insubordinação tão característico da infância, parodiando uma história
popular e canónica. Subvertem-se assim as normas que regem a língua e que servem
também para conservar o Estado, uma vez que este impõe o que se deve dizer às
instituições familiares e escolares, que por sua vez fazem o mesmo com as
crianças, veiculando uma forma de educação maquínica que se efetua
primordialmente através da linguagem: o que não se pode dizer, também não se
pode fazer, constituindo a transgressão da linguagem um ato de mau
comportamento.
A rebelião infantil revela-se, de forma geral e instintiva, de numerosas
maneiras, constituindo um livre exercício de imaginação e de liberdade a
renomeação de referentes da realidade. Observe-se, durante instantes, um
simples jogo entre crianças, e facilmente detectamos a alteração de regras, de
nomes de personagens e de brinquedos. É inerente à criança a capacidade
imaginativa, livre de constrangimentos sociais, o que lhe permite construir a
realidade de acordo com os seus sonhos e intentos, e é essa capacidade que se
torna perigosa perante o poder autoritário.
Tome-se como exemplo de exequibilidade desta capacidade criadora o
conto O menino e o caixote,42 cuja imaginação infantil permite o devir de um simples objeto
inanimado, um caixote de cartão, num ser vivo, neste caso específico, num leão.
O devir animal corresponde ao desejo infantil de assassinar o adulto que
censura o seu ato imaginativo. Este é manifestamente um conto com conotações políticas,
cuja repressão, nomeadamente sobre a ação dos intelectuais e artistas, é
veiculada através do pai, figura de autoridade da sociedade. A imaginação e
liberdade criativas são representadas pela criança, na sua inocência percetiva
do Mundo, na sua capacidade de recriar novos mundos e novas possibilidades de realidade.
Perante a impossibilidade de lhe ser concedido o desejo de ter um leão no tempo
presente, a criança converte essa impossibilidade em possibilidade através da
imaginação, pois, a partir do momento em que cria a imagem na sua mente,
miscigenando-a com a realidade, está a validá-la enquanto referente real,
presentificando-a. Recordem-se, a este propósito, as palavras de Georges Bataille,
quando, em A Literatura e o Mal, refere que:
Na educação das crianças, a
preferência pelo instante presente é a comum definição do Mal. Os adultos
proíbem aos que vão chegar à «maturidade» o reino divino da infância. Mas a
condenação do instante presente em proveito do futuro, se inevitável, é uma
aberração quando extrema. Não menos que proibir o seu acesso fácil, e perigoso,
é necessário encontrar o domínio do instante (o reino da infância), e isso
exige a transgressão temporária do proibido.43
A presença da criança na obra leiriana não opera enquanto tentativa de
retrocesso a nenhum passado concreto, nem pretende tão-pouco apelar a uma
nostalgia pura do vivido, servindo essencialmente de trampolim para uma fuga
abstrata do presente concreto da humanidade estritamente adulta em direção a um
tempo presente na criatividade infantil.
Com efeito, algumas das observações de Giorgio Agamben, constantes em Infância e Memória, corroboram
igualmente a ideia da presentificação e abrem novas linhas de leitura para o
conceito de brinquedo, contribuindo
para uma melhor explicitação da nossa interpretação. Observe-se que Agamben
considera que os brinquedos, enquanto miniaturas de referentes da realidade
adulta, são «[…] como aquilo que permite colher e gozar a pura temporalidade contida
no objeto»:
O brinquedo é uma materialização
da historicidade contida nos objetos, que ele consegue extrair por meio de uma
manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto
antigo ou do documento é função da sua antiguidade, ou seja, do seu
presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo,
desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente – jogando,
pois, tanto com a diacronia quanto com a sincronia – presentifica e torna
tangível a temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o «uma
vez» e o «agora não mais».44
Neste caso, poder-se-á compreender que os jogos das crianças permitem,
através da criatividade, ultrapassar os diferentes tempos enunciados,
inaugurando um outro tempo que visa contextualizar novas relações
histórico-temporais entre os homens e o mundo. Assim libertadas dos padrões
espácio-temporais estritamente lógicos da humanidade adulta, os homens-crianças
jogam com o
improvável e o inverosímil como forma de reelaborar o seu mundo e reinventar a
sua liberdade.
“O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta
Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto
e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017, pp. 145-168.
CARREIRO, José. “Cegarrega
para crianças, Mário-Henrique Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 08-12-2021.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/cegarrega-para-criancas-mario-henrique.html