quinta-feira, 24 de julho de 2008

O CORPO QUE ESTALA (José Carreiro)




O CORPO QUE ESTALA
     
In illo tempore os deuses descendentes
tocavam os homens que emergiam do centro do mundo.
De alguma forma solidários fortaleciam-se
numa espontaneidade exuberante.
Seria esta a condição da mistura
ficar longe da cronologia
que se tornou extrema e aspectual
um acto perturbado da mensagem.
Por próximo sentem o meio concreto
um semi-som proveitoso e danado
que verte nas superfícies cortadas
de um corpo que estala.
Um regaço de possibilidades cai
côncavo e percutivo no interior dos corpos.
O que ocupa o símbolo grande cerco faz
tropas em disposição e circuito sitiam aos metros
como bétulas lenhosas, achas no vazio
e estilhas súbitas com um cheiro azedo
entram na porção das partes.
            
José Maria de Aguiar Carreiro





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CARREIRO, José. “O corpo que estala”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 24-07-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/07/o-corpo-que-estala.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/07/24/corpo.aspx)


segunda-feira, 28 de abril de 2008

O ROSTO AQUELE ROSTO (José Carreiro)

       
Marion Lucka, "Bedenklichkeit"
("a criança saída do deus de rosto cruel,
que dissimula o seu corpo em serpente.")
  


O ROSTO AQUELE ROSTO

Entre portas um aveludado rosto
prenuncia: logo existe o meu espaço.
Eu toco então aquele rosto este rosto
aquele rosto
conheço as mãos no corpo no rosto
o toque desfasado toque
na quase intimidade do olhar
o beijo.

Hoje acabo o desenho das letras
desenho rosto
pronuncio-o e tu és lá
roço nele até à precisão do t
mas o que fica é esta preparação para o beijo
que a vogal me coloca.

Digo o teu nome
os dentes tocam o lábio inferior
e aí começo a saborear-te
toda a boca te trabalha
um som nasal ressoa no crânio
mexe-me.
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.





EL ROSTRO AQUÉL ROSTRO   
¯

Entre puertas un veludazo  rostro
prenuncia: inmediatamente existe mi espacio.
Yo toco entonces aquel rostro este rostro
aquel rostro
conozco las manos en el cuerpo en el rostro
el toque desfasado toque
en la casi intimidad de la mirada
un beso.

Hoy acabo el dibujo de las letras
dibujo rostro
lo pronuncio y tú eres allá
rozo en él hasta la precisión del la t
pero lo que queda es esta preparación para el beso
que la vocal me coloca.

Digo tu nombre
los dientes tocan el labio inferior
y ahí comienzo a saborearte
toda la boca te trabaja
un sonido resuena en el cráneo
me menea.
            
      
Tradução de Maria João Fernandes e Vitor Vicente, “Poesía en Big Ode”, concerto/performance porRodrigo Miragaia, Maria João Fernades, Sara Rocio e Vitor Vicente da Revista Big Ode (Almada, Portugal) para o Edita 08organizado pelo poeta Uberto Stabile, a ter lugar em Punta Umbria, Huelva, entre 30 de Abril e 3 de Maio de 2008. 




      

                                     
    
    
     

HET GEZICHT, DAT GEZICHT
   
Een fluwelen gezicht tussen de luiken
spreekt: weldra ben ik ruimtelijk.
Dus raak ik dat gezicht aan, dit gezicht,
dat gezicht
ik ken de handen op het lichaam op het gezicht
de ongelijkmatige aanraking beroert
het haast intieme van de blik
de kus.
   
Vandaag teken ik de laatste letters
ik teken gezicht
ik spreek het uit en jij bent er
ik wrijf erover totdat ik bij de z ben
maar wat blijft is de hunkering naar de kus
waartoe de klinker mij aanzet.
   
Ik spreek je naam uit
de tanden tegen de onderlip
en ik begin jou te proeven
mijn mond raakt je overal
in mijn schedel weerklinkt een hard geluid
het doet me wat.
   
   (versão holandesa de Marcel Beekman)  


     
CHUVA DE ÉPOCA - Canções para o tenor Marcel Beekman e o Ensemble Ciudate  integradas no espetáculo VIAGEM NO TEMPO (Holanda, 19-02-2011).
Composição de Kees Arntzen.
Poemas de José Maria de Aguiar Carreiro extraídos de «Nada nunca de ninguém» - parte I do livro Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005:
1.  «O rosto aquele rosto»
2.  «A casa onde nos abrigamos»
3. «Rapto»

Sobre o poeta:

Sobre o tenor:

Sobre o compositor:


 MARCEL BEEKMAN tenor * HAFID BOUAZZA reciter * ANTOINETTE LOHMANN baroque violin * ANTÓNIO CARRILHO recorder * MIENEKE VAN DER VELDEN viola da gamba * DAVID VAN OOIJEN lute / baroque guitar. * FABRIZIO ACANFORA harpsichord * MARCO VITAL organ * CHRISTINA DE VOS drawings program book * JASPER BARTLEMA stage production * ANNE VAN DER HEIDEN production assistance.

VIAGEM NO TEMPO is a production of STICHTING BLAEUBEECK and is part of the own programming of the Muziekgebouw aan 't IJ. The compositions of Kadar, Kleppe and Tsoupaki were made possible by the Performing Arts Fund. SNS Reaal awarded a production subsidy. The VPRO will record the concert for n.t.b. broadcast on Radio 4.


   

CARREIRO, José. “O rosto aquele rosto”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 28-04-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/04/o-rosto-aquele-rosto.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/04/28/rosto.aspx)


terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental





Açoriano Oriental – Quando começou a interessar-se por Literatura?
José Maria de Aguiar Carreiro – Comecei a interessar-me por Literatura quando frequentava o Ensino Secundário, especialmente a partir da leitura de Fernando Pessoa.
          
Letra de música é poesia?
Para mim, letra de música é palavra em forma poética e dá-se num espaço de melodia.
Como dizia Jorge Luis Borges: quando lemos certos versos temos a tendência para o fazer em voz alta. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto. De facto, admiro a combinação de letra e música. Actualmente alguns poemas meus e de outros poetas portugueses estão a ser transformados em canções para tenor, flauta, guitarra e talvez piano ou violoncelo. O convite para serem usados poemas meus partiu do cantor lírico de Amsterdão Marcel Beekman, que domina a língua portuguesa. A estreia terá lugar numa igreja holandesa no dia 22 de Fevereiro de 2009. O grupo está interessado em actuar em Portugal continental e, se houver patrocínios, também nos Açores.

Exemplar do livro Chuva de Época anotado por Marcel Beekman e partitura de "A casa onde nos abrigamos".


          
Quais são as suas influências literárias?
Por exemplo aquelas que são explicitadas em Chuva de Época: logo na epígrafe cito o escritor argentino Jorge Luís Borges, muito particularmente o seu livro Os Conjurados, exactamente por lá existir, a meu ver, uma conjura contra o tempo com o qual tenho uma má relação. Aprecio a escrita elíptica de Sophia de Mello Breyner Andresen; a poesia do corpo feita por Eugénio de Andrade; o informulável Herberto Hélder e, claro, o “farsante” Fernando Pessoa.
Como pessoa, somos sempre uma súmula do que existe. Por isso, parece-me que a minha escrita não entra em ruptura com o passado, daí que talvez se possa dizer que se trata de uma poesia de síntese.
          
Acredita em inspiração?
Não acredito na “inspiração” entendida como algo extra-humano (divino). O indivíduo com a sua sensibilidade e susceptibilidade de momento é que está disponível para receber influências várias, a começar pela própria “dádiva verbal”, passando por outros estímulos, como por exemplo, a música (leia-se o poema “Voz Reflexiva”) ou uma imagem (veja-se o poema com o título “Teresa d’Ávila”).
          
O mercado editorial maltrata o poeta?
Diria que publicar um livro hoje em dia pode ser visto como um acto de narcisismo ou, por outro lado, um acto de altruísmo. Neste último caso, a boa vontade social (isto é, a de contribuir para o enriquecimento da Literatura) determina que haja um empenhamento do poeta em ultrapassar as barreiras editoriais e de distribuição.
          
O que a Internet vai trazer de bom e de ruim para a poesia?
A Internet essencialmente veio trazer a divulgação de poesia que doutro modo não seria lida por pessoas fora do círculo de amizades de um poeta.
Apesar do abundante ciberlixo, há também bons textos online. Até já há poetas consagrados que têm as suas próprias páginas e alguns mantêm vivos os chamados blogues.
          
Quais os temas dominantes no seu trabalho?
O título do livro aponta para o campo das relações humanas metaforizadas em “chuva” que acontece repentinamente e de forma passageira, embora intensa.
A segunda parte do livro reflecte sobre a escrita da primeira parte numa atitude irónica e distanciadora.
          




          
A poesia pode mudar o mundo?
A poesia muda o meu mundo, a poesia é um modo de fazer mundos.
A escrita pode influenciar aqueles que a lêem, quer esteticamente, quer pelas eventuais questões que levante.
          
O que escreve sobre o mundo?
O mundo não me atrai o suficiente para sobre ele escrever. Fecho-me e não capto a historicidade nem me comprometo com tempo em que vivo. Digo mesmo que, em relação ao mundo contemporâneo, eu quase apenas “passo”. Sinto-me empurrado pelas circunstâncias, de costas viradas para o futuro. Suspeito, perante as ruínas do passado que contemplo e escrevo, que o devir será sempre uma repetição do que já foi.
Quando meu pai faleceu, relativizei tudo, de modo que não conseguia ver qualquer sentido para a escrita. A própria leitura parecia-me inoperante. A morte parece levar tudo. Perante a morte torna-se vazio de sentido todo e qualquer movimento. Apenas isto: a entrega imediata à terra, ao cosmos, ao sentido brutal dos elementos. Por outro lado, há um instinto de sobrevivência que nos faz proteger do fogo destruidor. De qualquer modo, perante a morte, fico um ser perplexo, mortalmente perplexo perante o sentido a dar à vida. Deverei abraçá-la, projectar uma fuga para a frente, imaginar uma supermente que no futuro arrancar-nos-á da indigna morte da mente? Ou deverei aceitar com indiferença a morte total, a inutilidade da ciência e da religião?
Mas, como dizia Gramsci: “é preciso lutar com o pessimismo da inteligência e com o optimismo da vontade”.
    

José Maria de Aguiar Carreiro em entrevista ao jornal Açoriano Oriental (Ponta Delgada), ano CLXXIV, nº 16358, Quarta Feira, 13 de Fevereiro de 2008, pág. 21.




“José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental” in Folha de Poesia. Portugal, 19-02-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/02/jose-carreiro-entrevista.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/02/19/entrevista.aspx)


quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CRIAÇÃO VELHA (José Carreiro)


      
      
          
              
CRIAÇÃO VELHA
          
I
          
Movem-se quilhas pelas ribanceiras
os putos elevam areias, brincam com os forcados
e por guloseimas trocam as fisgas.
            
No caminho vertem, sacodem as ancas as raparigas.
Colhem olhares, ditos e manguitos que se fazem entre os rapazes.
Soletram-se as carnes com gestos desajeitados.
Nos quintais há o odor a rosmaninho,
uma emanação volátil dos corpos.
            
Passo os dias sem mais nada
apenas um ligeiro cuspir nas mãos antes de pegar na enxada.
Aguardo que o boi tresmalhado se erga e desfigure em gente.
Pareço estar separado dos ritos dos mitos
e das estações.
O que eu sei.
Perla ou imago pode o limo parecer.
          
Por vezes repelidos do chão em ardência
revivemos os lastros dias
imensos desejos.
Por vezes sonhamos
e não fazendo disso um árduo sentido
levamos horas infindas a lavar a escoroar
levamos e trazemos e desculpamos as vociferias.
           
Aqui faz sentido agora a toda a hora
na nossa pressa e gentes
o bafio dos sótãos
a palha quente nas arribanas.
      
II
      
– É aqui que a gente passa o tempo
cordialmente e sem muito o que fazer
é aqui que a gente ri muito muito desmesuradamente
ah a gente ri, faz festas, tudo é assim
muito cordialmente
é assim que a gente gosta
leva o nosso homem para casa e
faz muito amor muito
é assim que a gente gosta.
              
Virgínia deu seu seio
Virgínia sofre por suma
aquela boca imaculada impoluta.
Ó ribeiro manso.
Ali, mesmo junto às pedras,
aquecidas as mãos pousadas sob o dorso, o campo rigoroso.
            
Na metalurgia antiga, a liga, a obra fundida interminada
cobre sem que se possam separar o metal e o fel.
No lugar da Criação Velha
a mulher do ferreiro não diz as antigas lendas.
Se a mulher terminar na montanha a liga, o lugar no casal
é porque se deu a união no forno no cadinho do ferreiro e dela.
             
In Arraianos nºVIIA vida nas aldeas
Santiago de Compostela, Alvarellos Editora, Janeiro 2008, p. 123.
      
      






CARREIRO, José. “Criação Velha”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 11-10-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/10/criacao-velha.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/10/11/lugares1.aspx)


quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ULISSES NA ILHA DE CIRCE (José Carreiro)

Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)

      



ULISSES NA ILHA DE CIRCE
     
      
I. ULISSES
    
Que força é esta ou que prazer identifico
no lótus que me ofereces?
O que eu posso comer faz-me diverso de meus companheiros.
O chão reparte a flor de lótus
sendo a escolha uma ordem: o prazer.
Lançarei os braços em toda a certeza do espaço
e voltarei ao mar corrido este torpor que sinto.
Eu demoro, prudente, e mais me separo
de quem me espera.
Algo em mim será sem retorno.
     
    
II. CIRCE
    
Um sopro aclara a falange redita pelo sol.
Um canto obscuro vem trazer a raiva
de me saber traída.
Como podes escolher a outra casa
como posso ser nada se me destino a ti.

    
Chuva de ÉpocaPonta Delgada, 2005.





CARREIRO, José. “Ulisses na ilha de Circe”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 12-09-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/09/flor-de-lotus.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/09/12/ulisses.aspx)