CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 27 DE ABRIL DE 1920
Meu Be«be»zinho lindo:
Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos).
Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...
Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.
Enfim...
Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
Sempre e muito teu
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920
Bebezinho do Nininho-ninho:
Oh!
Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!
E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.
Oh! O Nininho é pequenininho!
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.
Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia. [desenho de uma meia] (isto é a meia das cinco e meia).
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
Jinhos, jinhos e mais jinhos.
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 25 DE SETEMBRO DE 1929
Exma. Senhora D. Ophélia Queiroz:
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está proibida de:
(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex. ª
Álvaro de Campos
eng. Naval
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 9 DE OUTUBRO DE 1929
Terrivel Bébé
Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .
Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)
Intertextualidade
Paródia
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A Nini Bèbèzinho
Do Ibi
Dá Òfèli
Bjinho?
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio,
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio.
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é,
A glória concede e nega, não tem verdades a fé.
Não há quem saiba se gosto de ti ou não.
Por isso na orla morena da praia calada e só
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó.
Sonho sem quase jà ser, perco sem nunca ter tido
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Querida Bèbèzinho:
Ainda fazes muita troça do Nininho? (A. de C.)
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso senão a brisa na face
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Ex.ª Snr.ª. (...)
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa
Meu particular amigo, encarrega-me de lhe comunicar que
Está V. Ex.ª proibida de:
1) Pesar menos gramas
2) Comer pouco
3) Não dormir nada
4) Ter febre
5) Pensar no indivíduo em questão
Cumprimenta V. Ex.ª
Álvaro de Campos
eng. naval
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar
Quero dormir socegado, sem nada que desejar.
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado pelo ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
O teu Nininho, Bèbè Fera,
É o maior bjinho
De noite ser, e primavera,
E eu estar de olhos fechados.
Mário Cesariny Vasconcelos,
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/11/05/ofelia.aspx]