terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Tenho tanto sentimento, Fernando Pessoa


 





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Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.




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Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.



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Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

 

18-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 179. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2174

 

 

Questionário sobre o poema “Tenho tanto sentimento”, de Fernando Pessoa.

1. Divida o poema nos seus momentos lógicos. Justifique a sua resposta.

2. Enuncie as características do sujeito poético.

3. Refira a figura de estilo fundamental em todo o poema, indicando o seu valor expressivo.

4. Faça o levantamento de outros dois recursos estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes na poesia pessoana. Mostre a expressividade de cada um deles.

5. «E a única vida que temos / É essa que é dividida / Entre a verdadeira e a errada.»

Explicite o sentido destes versos, atendendo aos conceitos de Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo.

6. Comente, à luz da teoria poética do fingimento, a última estrofe do poema.

 ***

 

Chave de correção:

1. O poeta passa de uma reflexão íntima (1.ª estrofe)  sobre a dicotomia sentir/pensar para uma reflexão alargada a todo o ser humano (2.ª e 3ª estrofes).

2. Características do sujeito poético: ser sofredor, fragmentado (dividido), meditativo (reflexivo), racional

3. A antítese é a figura de estilo fundamental em todo o poema. É expressiva da divisão interior do sujeito poético.

4. Outros recursos estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes na poesia pessoana e explicitação da sua expressividade:

Adjetivação automática: «verdadeira», «errada»

Ao serviço da expressividade da antítese que suporta a dialéctica do sentir/pensar.

Presente do Indicativo

Expressivo de um discurso reflexivo e intemporal

Vocabulário simples, corrente: «a gente»...

Facilitador da compreensão de um discurso já de si complexo, tenta uma aproximação com o “comum dos mortais”.

Repetição de vocabulário: «vida»

Eufonia; chama a atenção para o que está em discussão que é o conceito de vida.

5. Explicitação do sentido dos versos «E a única vida [pensada] que temos / É essa que é dividida / Entre a verdadeira e a errada», atendendo aos conceitos de Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo:

A vida é a síntese entre o mundo da aparência (“vida errada”) e a da essência (“verdadeiro”)

Vida verdadeira

essência

Pensamento

(entre)

Vida errada

aparência

6. O des-conhecimento do eu:

  • Sentir-se estranho não está somente no mundo envolvente de natureza diversa: domina de tal maneira a existência do poeta que o mantém estranho a si mesmo. Só que este sentir-se estranho lhe é próprio: tudo quanto é físico se retira do espiritual, o sentimento faz saltar em breve os laços do pensamento, logo o pensar fica paralisado e finalmente torna-se passivo e alheio.
  • O ser está sempre algures, fora das fronteiras limitativas, do outro lado do muro, longe da costa: não nos pertence. Esta é a noção insuportável do consciente de Fernando Pessoa. (G. Güntert, F. Pessoa, o Eu Estranho)
  • Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir.
  • O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
  • Em Fernando Pessoa observa-se uma dialéctica da sinceridade/fingimento que se liga à consciência/inconsciência e do sentir/pensar. (Acesso ao Ensino Superior. Português 12.º Ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Ed., 2000).
  • A vida que se tem é a dramatizada (representada) (“a que tem que pensar”, v. 18), porque esta é a via obrigatória para um autoconhecimento (consciencialização do Eu).

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

«Tudo o que faço ou medito», Fernando Pessoa


 






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Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

 

13-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).  - 177. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2275

 

I - Leitura orientada do poema “Tudo que faço ou medito”, de Fernando Pessoa

Definição do tema

O poema constrói-se em torno do sentido da existência do poeta e da tomada de consciência desse sentido – pergunta-se o poeta não só o que é, mas o que faz e o que quer fazer. É um tema integrante da problemática do existencialismo, frequentemente levantada pela corrente da época, o modernismo, que rege, pelo menos em parte, a obra de Fernando Pessoa.

 

O conflito do poeta apoia-se num raciocínio antitético:

O recurso que o poeta utiliza mais predominantemente parece ser a antítese, presença constante na dialéctica do ser: "o infinito" e o "nada", a "alma lúcida e rica" que consegue ser simultaneamente um "mar de sargaço". (Vem regularmente associado ao paradoxo, ao que só é se o não for, tomando especial notoriedade a ideia do "mar onde bóiam fragmentos de um mar".) (vv. 10-11)

 

O verso que nos mostra uma síntese chocante dessa dialética interior e individual do sujeito poético é o que conclui o poema: "Não o sei e sei-o bem"

 

A antítese projeta-se ao nível da consciência do eu:

(Outra forma paradoxal é a do raciocínio que não analisa só as coisas, mas também a tomada de consciência delas – paradoxal na medida em que se põe em causa a si próprio, se envolve num novelo de abstração quase lunática.)

 

O "mar de sargaço" é a melhor ideia desse estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de tomar, de assumir que toma a percepção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à procura de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se aproxima. É a insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística do que é.

 

A relação de sentido entre «um mar de sargaço» (8) e «um mar d'além» (10):

A dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo (1), o Infinito (3) – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que «bóiam lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que se reflectem ainda vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável marca de crença esotérica (secreta oculta misteriosa) num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido...)

 

Nesta auto-análise, Pessoa manifesta a impossibilidade de uma transparência do "ser":

O ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.

A pessoa do poeta parece assim querer justificar a ignorância sobre si próprio com a complexidade sempre crescente do ser que priva o poeta da lucidez que procura nessa análise introspectiva.

 

Recurso estilístico utiliza o poeta para fazer recriar em nós essa impossibilidade:

Em compasso com as antíteses evidentes, temos no poema metáforas quando o poeta procura ilustrar-se a si mesmo e ao que pensa "um mar onde bóiam fragmentos de um outro mar". Tomamos aqui os fragmentos como formas diferentes de pensar, que assolam o primeiro mar (o próprio Pessoa) e se apropriam dele.

Adaptado de http://gape.ist.utl.pt/~pferreira/Escola/FPessoa.html (consultado em 06-12-2002) e de Para compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais, Porto Areal Editores, 2001.

 ***

 

II - Questionário sobre poema “Tudo que faço ou medito”, de Fernando Pessoa

1. Na primeira estrofe, apresenta-se uma oposição entre «querer» e «fazer». Explicite essa oposição.

2. Ao tomar consciência das limitações da sua capacidade de agir, que sentimento invade o sujeito poético? Transcreva as expressões em que se apoia a sua resposta.

3. Mostre a expressividade, a nível semântico e a nível fonético, das metáforas: «Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de sargaço».

4. Qual a relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»?

5. Identifique a figura de estilo presente nos últimos dois versos do poema. Justifique-a em cada uma das ocorrências.

(Adaptado de Prova Escrita de Português, 11.° ano, Cursos Complementares Diurnos, 1991, 1.ª Fase, 2.ª Chamada)

 

Chave de correção:

1. Oposição entre «querer» e «fazer»:

- imaginação («querer») = sonho, desejo de absoluto;

- realização = insatisfação, limitação, incompletude.

2. Sentimento invade o sujeito poético ao tomar consciência das limitações da sua capacidade de agir: desencanto, frustração, deceção, desapontamento, insatisfação, malogro.

Expressões exemplificativas: «Que nojo de mim fica / Ao olhar para o que faço!» (vv. 5-6) («nojo»: repugnância; náusea; asco; pesar; tristeza; luto).

3. Expressividade das metáforas: «Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de sargaço»:

- A nível semântico: contraste entre a limpidez e o valor conotados com a expressão «lúcida e rica» e o opaco e o imundo de «mar de sargaço». O "mar de sargaço" é a melhor ideia desse estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de tomar, de assumir que toma a perceção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à procura de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se aproxima. É a insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística do que é. O ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.

- A nível fonético: oposição entre as vogais doces «i», «u» da primeira expressão e o fonema áspero aberto de «mar de sargaço».

4. Relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»:

A dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo, o Infinito – e o que se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que «boiam lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que se refletem ainda vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável marca de crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido...).

A interpretação processa-se a dois níveis: 1.º - o SER consciente está aquém e manifesta-se como o vestígio (fragmento) do subconsciente. 2.º - marca de crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido…

5. A figura de estilo comum aos últimos dois versos do poema é a antítese:

- no v. 11, opõe o sentir ao pensar e mostra o estado confuso do sujeito poético;

- no v. 12, exprime um conhecimento intuído que não percecionado pela razão e mostra também o estado confuso do sujeito poético.

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


domingo, 15 de janeiro de 2023

O Andaime, Fernando Pessoa

 

 







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O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha esperança.
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha;
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças —
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

 

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).  - 230.

1.ª publ. in Presença, n.º 30-32J. Coimbra: junho 1931.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4207

 

 

A casa por fabricar: uma leitura do poema «Andaime» de Fernando Pessoa

1. Fala-se de Fernando Pessoa como se fala de um nosso amigo próximo. Anda na boca de toda a gente: desde os simples empregados de escritório até aos políticos que o citam nos seus discursos parlamentares ou nos comícios partidários. É pau para toda a colher. Pintam-no nas paredes e nos postes eléctricos, pelas ruas, vêm fotos nos jornais, fazem-se programas de rádio e televisão, usam-no até para vender máquinas de escrever.

Porém, este conhecimento, este andar de boca em boca é superficial. Poucos sabem realmente quem foi Fernando Pessoa, poucos lêem e compreendem a sua obra. Ele próprio passara a existência a tentar descobrir quem vivia dentro de si, que significado haveria por detrás dos seus pensamentos. A pergunta «quem não sou?» é posta ao longo de toda a sua obra.

É nossa pretensão neste estudo definir algumas fronteiras de Pessoa ortónimo, servindo-nos de um dos seus poemas menos «badalados»: "O Andaime". Sabemos que o devaneio lírico e a musicalidade caracterizam a forma de ser poeta na perspectiva ortónima. A dificuldade maior será abrir sendas pela imensidade florestal que é toda a obra poética deste grande da nossa literatura. Ele é tudo e em todos os heterónimos há afinidades, semelhanças que, no fundo, o tornam único.

É característico de Pessoa ortónimo a abundância de aliterações e de rimas internas. A linguagem é sóbria e intimista. A nível temático, a maior parte das composições que constituem o Cancioneiro, chora uma felicidade passada, para lá da infância. A inquietação metafísica perpassa por cada verso, bem medido, longe do caudal impetuoso e aparentemente desgovernado de Álvaro de Campos.

É isso que tentaremos verificar no poema "O Andaime", publicado na revista Presença em junho de 1931.

2. Fernando Pessoa intitulou o poema de "O Andaime", aparecendo a mesma palavra na última estrofe da composição. Andaime é um vocábulo de origem árabe que os dicionários descrevem como uma armação de madeira ou ferro de que se servem os pedreiros para construir um edifício, sendo desmontada após a construção. É também utilizado para restauro de paredes de edifícios arruinados. Porquê o andaime nesta composição? Diz António Quadros que há sempre na poesia de Pessoa «um trilho para as alturas, uma temática de levitação para além de tudo» (Quadros, 1987: 62). Palavras como sol, sobe e o próprio andaime são disso testemunhas no poema em análise.

O andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às alturas, as paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta. Contrapõe-se a altura do sol e do andaime à planura do rio e do mar. a «casa por fabricar» é o que nunca chegou a ser; o andaime as esperanças irrealizáveis, o projecto inconcluso, a ilusão que se revelou numa mentira. O andaime, afinal, não serviu para construir a casa; era inútil como a vida e seus anseios.

A casa, na simbologia geral, é o centro do mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de cada homem. Nesta composição, o poeta sente-se vazio, pois a casa não chegou a ser edificada. O seu interior, a sua alma, é um vácuo enorme rodeado por um andaime inútil.

Fernando Pessoa tem uma imaginação aquática por excelência. É quase obsessivo o tema da água na sua obra. Lembremo-nos das odes de Álvaro de Campos, um engenheiro naval, e da Mensagem. No poema em análise temos o rio, as ondas, as águas lentas e mansas, o mar.

O rio, como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (cf. Chevalier, 1982: 449). O poeta recorda o seu passado olhando as ondas do rio. Elas lembram-lhe a vida «vivida em vão». O «correr vazio» do rio é como a própria vida. O poeta está na margem sossegado e não encontra nenhuma razão para explicar o seu sossego. Antes pelo contrário, deveria estar agitado, inconformado com aquilo em que se tornou. Olha com indiferença as ondas, ouvindo o «som morto das águas». Tudo passa, tudo vai, como a corrente do rio. A velha ideia heraclitiana está aqui bem presente. No fragmento 12 da edição de Diels, diz Heraclito: «ceux qui entrent dans les mêsmes fleuves reçoivent le courant d'autres et d'autres eaux et les âmes s'exhalent des substance humides».

As ondas indicam uma ruptura com a vida habitual, uma mudança nas ideias, atitudes, nos comportamentos do sujeito (Chevalier, 1982: 450). O poeta de "O Andaime" descreve-as tão leves que nem são «ondas sequer». O corte entre o passado e a tomada de consciência no presente é radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano colossal.

As águas lentas e mansas remetem-nos para a obra de Bachelard, L'Eau et les Rêves. Diz Bachelard que a água leva «au loin, l'eau passe comme les jours» (Bachelard: 125). «Elle este une substance pleine de réminiscenses et de rêveries divinatrices» (Ibidem: 122). É a mestra da linguagem fluida, da linguagem sem choques, contínua, da linguagem que abranda o ritmo, que transforma em matéria uniforme os ritmos diferentes (cf. Ibidem: 250). Paul Claudel dizia que tudo o que o coração deseja se pode reduzir à figura da água.

As águas calmas e lentas simbolizam o desejo da morte: «pour certaines âmes, l'eau tient vraiment la mort dans sa substance. Elle comunique une rêverie où l'horreur est lente et tranquile» (Bachelard: 122; cf. Ibidem: 66). As águas mansas funcionam como um convite à morte. Para Heraclito, a morte era a própria água. É expressivo o uso do adjectivo morto no poema de Pessoa, associado ao som das águas e ao eu do poeta.

O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a ele regressa. Aí se nasce e aí se morre. É a encarnação da Grande Mãe, de que fala Gilbert Durand. O poeta pede às ondas que o levem «Para o olvido do mar». É o desejo do retorno ao seio materno, à indiferenciação. Só o mar é remédio, só as suas águas o podem envolver no esquecimento.

O complexo de Caronte, assim designado por Bachelard, parece reflectir-se neste poema de Fernando Pessoa. O apelo que o poeta faz às ondas para que o levem, lembra um outro de Baudelaire em Les Fleures du Mal: «O mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!» Tudo o que de lento há na morte é marcado pela figura do barqueiro horrível. As ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a transportar a alma do poeta para o mar alto, o túmulo do «olvido». O rio não é o objectivo, mas o meio para alcançar a paz plena do mar e do indefinido.

Na Teogonia de Hesíodo, a água doce estagnada dos rios e a água fecunda e furiosa do oceano antagonizam-se. a paz que o poeta deseja não é o marasmo, a inércia que sobre si se abate quando olha o rio preguiçoso. É a paz espumante do oceano, larga e abrupta numa eterna aventura desigual e única. Talvez do mar renasça um novo ser e a vida recomece, menos ilusória, menos enganadora.

Sabemos que o sonho é um veículo de criação de símbolos. Fernando Pessoa é um sonhador. Ele próprio o diz: «Toda a minha vida foi de passividade e de sonho».

O cepticismo pela vida real transforma-se, no poema "O Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta encara o passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou, a sua vida foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta era o sonho. Como a realidade era dolorosa, efémera, rotineira, refugiava-se na fantasia. O alívio, diz João Mendes, procurava-o «no sonho, não só como evasão da vida angustiada e sem solução; mas porque de facto o sonho se torna mais verdadeiro que a realidade concreta» (Mendes, 1983: 287). Porém, em "O Andaime", o poeta descobre que também o sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho são ambos sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a morte, o «olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo do inconsciente obrigam o poeta a preferir o seio do mar.

A infância é símbolo da inocência e da simplicidade, o estado anterior ao erro. A saudade do tempo de criança é uma constante que atravessa toda a obra de Fernando Pessoa. Sabemos que até aos seis anos ele fora exclusivamente o «menino de sua mãe» e que, a partir daí, tivera de repartir com os seus irmãos recém-chegados essa exclusividade. Tal evento «repercutiu-se-lhe profundamente na alma, tornando-se uma criança e depois um jovem ensimesmado, solitário, introspectivo, melancólico, que procurou sucessivos escapes para a situação ressentida como de abandono e dupla orfandade» (Quadros, 1987: 24). Também no poema "O Andaime" parece delinear-se esta problemática, implicitamente no desejo de retorno ao seio materno atrás explicitado, e na alusão à «bola de criança». Na quintilha terceira, o poeta compara a sua esperança e o seu desejo a uma bola. A bola atirada por uma criança ao alto sobe mais do que a esperança que sente, do que o desejo que tem. As crianças são solícitas. Ele, ao contrário, é morno, quase frio, impotente de vontade. Talvez quando criança fosse mais perseverante nos seus desejos e esperanças.

As recordações afluem-lhe à memória com a correnteza fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as esperanças, os sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos vazios perante o rio que corre. Ressalta um sentimento de fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de queda de um sonho anterior» (Quadros, 1987: 56). As esperanças estão mortas porque já não acredita nelas; mas hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O poeta sente-se um morto, como cadáver que deu à margem do rio.

Mantinha-o uma visão irreal, impossível: «Só no palco era rainha / Despiu-se e o reino acabou». Ele encontrou-se, «Quando estava já perdido». É como chegar atrasado a um encontro que não foi marcado. Tal como um louco, teimava no que não tinha solução. A sensação de loucura é própria de alguém que choca com a realidade e que não a aceita ou a compreende de uma forma desviante. Agora cai em si e vê o engano. Apenas um sonho liga o seu pensamento ao corpo: ser muro de jardim.

A simbologia do muro e do jardim tem a sua importância para a compreensão do poema. O muro simboliza a comunicação cortada, interrompida. Pode servir para defesa, protecção, mas é ao mesmo tempo símbolo de cárcere. O jardim simboliza o paraíso terrestre, celeste ou cósmico. Aparece nos sonhos como a expressão de um desejo puro. O muro de jardim mantém as forças internas que florescem. Não se penetra no jardim senão por uma porta estreita (Cf. Chevalier, 1982: 531-533). Contudo, o poeta fala de um «deserto jardim». Não tem árvores nem canteiros de flores. Está deserto como a sua própria alma. Deste modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o vazio, a ausência da felicidade; o muro o corte, o impedimento de realizar o sonhado. O corpo do poeta é o muro da alma, o guardião, a defesa do que já nada há para guardar. O jardim é a sua alma árida e deserta, sem sonhos, sem vida, sem passado, sem futuro.

3. A intertextualidade é, como a considera Bakhtine, descobrir num texto outras vozes escondidas. É a presença polifónica de várias vozes num texto literário. Formulado este conceito por Julia Kristeva nos anos 60, já Baudelaire, no século XIX, se referira implicitamente a ele. Baudelaire considerava o cérebro humano como sendo constituído por camadas que se inter-relacionam. Do mesmo modo um texto literário é contituído por camadas, externas ou internas ao escritor, que se inter-relacionam (Silva, 1986: 624 e seguintes).

Há vários tipos de intertextualidade. Os que nos interessam para a busca de analogias no poema "O Andaime" são a hetero-autoral, que é a relação de um texto literário com textos de outros escritores; e a homo-autoral. Nesta, o autor espelha a sua própria obra.

A intertextualidade pressupõe sempre outros textos. Procuraremos sugerir, nos próximos parágrafos, a possível analogia de "O Andaime" com vários textos do mesmo autor e de outros autores.

Se compararmos esta composição com a "Sôbolos Rios" de Camões, deparamos com uma afinidade na forma estrófica, métrica e rítmica. A afinidade do vocabulário e de certa temática parece-nos igualmente similar. Expressões em "Sôbolos Rios" como lembranças, tempo passado, rio corrente, sonho imaginado, Quantos enganos / Faz o tempo às esperanças, um gosto que hoje se alcança, desejo em desejo, por sol, por neves, mal presente, são rios estas águas e a morte indicam uma franca analogia com o poema de Fernando Pessoa.

Camões adapta o que diz o salmo 136, Super Flumina Babylonis, à sua própria vida. No salmo, os judeus, «desterrados na Babilónia, choram o tempo em que viveram felizes na sua terra (Saraiva, 1980: 100). Assim, o poeta, na margem do rio, chora o tempo passado e o seu mal presente. Reconhece, contudo, que o que passou não lhe dá contentamento nenhum. Ficou-lhe apenas a lembrança de uma esperança perdida. Aquilo que ele pensava ser um grande bem é apenas desilusão. A luz, a resolução da crise, vem-lhe do amor e da misericórdia divina, da Jerusalém celeste.

Fernando Pessoa, da mesma forma, olha as águas correntes e nelas revê os enganos da sua vida passada. Todavia, não resolve o conflito interior por uma saída escatológica, tal como em Camões. A sua única saída é o «olvido do mar», o deixar-se arrastar pelas águas, sem desejos, sem esperanças, ansiando apenas o esquecimento, o aniquilamento total.

Este é um dos exemplos mais característicos da intertextualidade hetero-autoral. Cremos que Fernando Pessoa, conscientemente ou não, foi influenciado pelo texto de "Sôbolos Rios" no momento em que compunha o poema "O Andaime".

Da intertextualidade homo-autoral há inúmeros exemplos, tanto no Fernando Pessoa ortónimo como no heterónimo. Centrar-nos-emos no ortónimo.

Entre 1928 e 1933 Fernando Pessoa compôs pelo menos cinco poemas tendo a paisagem fluvial como cenário. Um deles é "O Andaime". A identidade vocabular e simbólica entre este e, por exemplo "Na Ribeira deste Rio" e "Bóiam Leves" é flagrante. No primeiro, o poeta passa os dias junto ao rio, olha-o, vê «os rastros que ele traz» e o «que ficou para trás». Vê e medita, não no rio que passa, mas no que vai pensando. Na segunda composição, as águas paradas absorvem a imaginação do poeta. Os seus pensamentos de mágoa «bóiam leves», como Ofélia morta. «São coisas vestindo nadas», «vestígios do que não foi».

No poema sem data "Na Quinta entre Ciprestes", o devir heraclitiano está também presente: «No rio ao pé dos salgueiros / Passam as águas em vão». Trazem consigo tristezas de outras gentes que, juntas com as do poeta, aumentam o seu caudal.

Em 1933 escreve "Entre o Sono e o Sonho". O poeta, neste poema, diz que entre si e aquilo que supõe ser «corre um rio». Esse rio é o passado, a vida que foi: «Chegou onde hoje habito / A casa que hoje sou». O passado dormente morre no rio que desliza.

4. Abordámos no nosso estudo alguns pontos que nos parecem importantes para uma maior clarividência de um dos poemas que consideramos fundamental para o entendimento da poética de Fernando Pessoa. Longe dos moldes modernistas, o poema "O Andaime" ressente-se de certa atmosfera simbolista. Da abordagem simbólica e temática, concluímos da presença no poeta de um cepticismo perante a vida real e de sonho, ambas enganadoras e fúteis, e do desejo da morte. A longa composição de Camões "Sôbolos Rios" não terá sido de todo estranha a Fernando Pessoa quando da construção de "O Andaime", uma vez que há ressaibos análogos em ambos os poemas. A temática do rio que corre como vida que passa em retrospectiva é uma recorrência em muitas das composições poéticas da obra ortónima de Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa não é um poeta apenas para ser falado. A fama corrompe e a moda passa. Saber ler Pessoa é descobrir os seus dramas e, por ele, tentar compreende os nossos. Foi um homem vulgar, correspondente comercial de firmas medíocres. Porém, soube olhar para dentro de si, para a rua onde passava, o quarto onde dormia, o mar que se fixava no horizonte, e descobriu o para lá: «Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo / Mas tudo sobrou ou foi pouco».

 

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston (19--), L'Eau et les Rêves, 6ª ed., Paris, Librairie José Corti.

CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont.

MENDES, João (1983), Literatura Portuguesa IV, 2ª ed., Lisboa, Editorial Verbo.

PESSOA, Fernando (1958), Poesias, 5ª ed., Lisboa, Edições Ática (daqui se extraiu o poema "O Andaime", pp. 232-234).

QUADROS, António (1987), «Introdução à Vida e Obra Poética de Fernando Pessoa», em Poemas de Alberto Caeiro, Mem Martins, Publicações Europa-América.

SARAIVA, António José (1980), Luís de Camões, 3ª ed., Amadora, Livraria Bertrand.

SILVA, Aguiar Vítor Manuel de (1986), Teoria da Literatura, 7ª ed., Coimbra, Livraria Almedina.

 

José Leon Machado, 1991

Disponível em: http://www.ipn.pt/literatura/letras/ensaio15.htm (consultado em 12-01-2003)

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.



sábado, 14 de janeiro de 2023

O fingimento poético como nova expressão de arte - leitura orientada do poema “Isto”, de Fernando Pessoa

 

ISTO

 

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

 

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 236. 1ª publ. in Presença, n.º 38. Coimbra: abril de 1933. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4250

 

Linhas de leitura do poema “Isto”, de Fernando Pessoa

Assunto: teoria da criação poética.

 

Quanto à forma do poema (aspectos fónicos) repare-se no facto de o poeta usar o verso curto (seis sílabas) num poema de fundo pesado, em que se expõe uma teoria da criação poética. Para que o discurso lógico, apesar disso, decorra mais livremente, aparecem os casos de transporte: vv. 1.º e 2.º, 3.º e 4.º, 7.º e 8.º, 8.º e 9.º, 11.º e 12.º.

 

O poema surge na sequência do «Autopsicografia» e parece uma resposta a possíveis más interpretações daquele.

 

1.ª estrofe

Notar o tom depreciativo do início do poema e o tom de convicção total com o uso do advérbio «Não», seguido de ponto final. Assim, o verso «Dizem que finjo ou minto» tem aqui o sentido que lhe atribuem os que dizem que o poeta finge, isto é, «não sincero», «falta à verdade», como se depreende da própria disjuntiva «finjo ou minto». Este sentido é depreciativo e corresponde ao uso popular verificável, por exemplo, na expressão «pessoa fingida», isto é, falha de verdade. Por isso, o poeta se apressa a negar esse sentido ao seu fingimento: «Eu simplesmente sinto com a imaginação, / Não uso o coração».

 

Os versos 3-5 são como que a «tese» deste poema: o fingimento poético é a síntese da sensação com a imaginação, destacando-se esta, porque intelectual.

 

Notar a subjectividade manifestada pelo uso da 1º pessoa verbal, ausente de «Autopsicografia». (Talvez se deva a que aqui Pessoa se apresente como o poeta intelectual por excelência.)

 

2.ª estrofe

Esta parte constitui uma confirmação do conteúdo da 1ª estrofe, baseada na experiência vivida do poeta.

 

A 2.ª estrofe apresenta a fundamentação do uso da imaginação: a realidade onde mergulha o poeta é apenas a aparência ou o terraço (fronteira) que encobre outra coisa: as ideias, a obra poética; volta a acentuar-se o processo do fingimento poético, mas neste texto a sensação e imaginação processam-se num único momento – Enquanto na «Autopsicografia» o poeta distinguia dois momentos (o da sensação e o da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as realidades (belas) subjacentes ao «terraço» (aparências) são vistas por ele, poeta-Pessoa, automática e simultaneamente.

 

É evidente que paira aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as aparências (as coisas deste mundo) e ver (pressentir, intuir) imediatamente as realidades puras de um mundo mais alto (profundo).

 

Conceito oculto

Ou mesmo platónico de que

«Essa coisa é que é linda»

(mundo[1] que fascina o poeta)

 

--->

o mundo real[2] («terraço»)

é reflexo de

um mundo ideal
(«sobre outra coisa»)



[1] Mundo das ideias.

[2] Mundo sensível.


Constata-se aqui também a grande emoção (de natureza intelectual) que o poeta punha naquilo que ele considerava o fulcro, o âmago da poesia: «Essa coisa é que é linda».

 

A comparação que engloba os três primeiros versos constitui o cerne do poema, pois é o momento em que o autor define o universo em que se move, para, logo de seguida, ficarmos a saber o que procura:

 

Tudo o que sonho ou passo

O que me falha ou finda (1.º termo)

É como que (partícula comparativa) um terraço (2.º termo)

 

A comparação centrada em «terraço» é admiravelmente expressiva da fronteira, difícil de ultrapassar, entre o mundo sensível e o mundo intelectual. O verdadeiro poeta (neste caso, Pessoa) é o privilegiado que é capaz de ultrapassar essa fronteira, para usufruir da beleza que se encontra para além dela.

 

Os dois primeiros versos da 2.ª estrofe referem-se às contingências da vida do poeta; contingências, porque nenhum dos quatro verbos empregues pelo poeta («sonho», «passo», «falha», «finda»), é propriamente activo, ficando-nos a impressão de que o que sucede ao poeta é marcado pelo destino. Esta ideia é sugerida sobretudo pelo verso «o que me falha ou finda», em que o poeta não figura como sujeito das acções, mas como destinatário marcado pelo destino (o que se vê claramente na forma pronominal «me»). O mesmo sugere a forma verbal «passo», que o poeta poderia substituir por «faço», mas intencionalmente não quis. É que, enquanto «faço» apontaria par algo realizado pelo poeta, a forma «passo» aponta para algo que lhe sucede por fatalidade. Quer isto dizer que o poeta só por contingência se achava entre as coisas contingentes deste mundo (no mundo das aparências), pois o seu lugar, como poeta, situa-se para lá dessas coisas, para lá do «terraço».

 

Recuperação para a poesia de uma palavra tão prosaica como «coisa», utilizada em versos consecutivos, para designar algo que está muito para além do universo sensível a que, normalmente, se refere. Fê-la, assim, expressiva daquilo que é indefinível, que fica para além do «terraço», na região onde se gera a poesia.

 

3ª estrofe

O poeta, a jeito de conclusão («Por isso...»), afirma que escreve «em meio do que não está ao pé». O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o «que não está ao pé» é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstracção do mundo sensível. Só quando o poeta é «livre do seu enleio» (do mundo sensível, do coração) é que pode dar-se o milagre da poesia. Só com os super-poetas, como ele, Fernando Pessoa, é que o milagre se realiza plenamente, porque não usa o coração, porque está «livre do seu enleio» e «sério do que não é» (entenda-se «sério» por liberto, isto é, livre do mundo sensível, das aparências). O verso «Sério do que não é» está aqui para reiterar a ideia do anterior, «livre do meu enleio». O poeta considera «sério» quem, como ele, é capaz de abstrair do acidental (do mundo sensível), para se concentrar no mundo das essências (no mundo intelectual).

 

O poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido irónico-depreciativo: «Sentir?»

 

Note-se como esta interrogação, em conjunto com a exclamação «Sinta quem lê!» é uma resposta irónica ao «Dizem que finjo ou minto» do princípio do poema.

 

Devemos notar a diferença de significado entre o verbo sentir: na 1.ª estrofe («sinto») refere-se à emoção intelectual e não às sensações; na última estrofe («sentir», «sinta») há uma conotação pejorativa que não existe na 1ª estrofe, isto é, refere-se, agora, às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou mente.

 

Bibliografia: Fernando Pessoa e heterónimos – o texto em análise, A. A. Borregana, Cacém, Texto Ed., 1995; Aula Viva Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999; Introdução à Leitura de Fernando Pessoa e heterónimos, Avelino Soares Cabral, Sebenta Editora.

 


 

Comentário de texto

Faça um comentário global do poema “Isto”, sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.

Deve, entre outros aspetos pertinentes como os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de forma integrada, os seguintes:

- assunto;

- divisão do poema em partes e assunto de cada parte;

- sentido da primeira estrofe;

- explicação da comparação da segunda estrofe;

- situação a que chega o poeta;

- estrutura formal.

 

Chave de correção:

Assunto

O fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).

 

Divisão do poema

- As duas primeiras quintilhas: negação de que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;

- A última quintilha: argumentação de que ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e elaborando uma nova realidade - a arte.

 

Sentido da 1.a estrofe

- Reconhecimento de que dizem e negação de que finge ou mente.

- "Sinto com a imaginação/Não uso o coração." - expressão da intelectualização do sentimento.

 

Base estrutural da 2.a estrofe

- Comparação: "Tudo o que sonho ou passo / O que me falha ou finda." (1.° termo da comparação) " (...) um terraço / sobre outra coisa ainda (2.° termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é reflexo de ("sobre outra coisa ainda") um mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou platónico, mundo que fascina o poeta).

 

Situação a que chega o poeta

- "livre do meu enleio" (desligado do tema) - há um ato de fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta quem lê").

 

Estrutura formal

- Três quintilhas hexassilábicas, isomórficas e isométricas, obedecendo ao esquema rimático ababb. 

Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Pessoa/textosFP.htm (consultado em: 18-01-2003)

 


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