Tenho tanto
sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
10
Temos, todos que
vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
15
Qual porém é
verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
18-9-1933
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995).- 179. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2174
Questionário sobre o poema “Tenho tanto
sentimento”, de Fernando Pessoa.
1. Divida o poema nos seus momentos lógicos. Justifique a sua
resposta.
2. Enuncie as características do sujeito poético.
3. Refira a figura de estilo fundamental em todo o poema,
indicando o seu valor expressivo.
4. Faça o levantamento de outros dois recursos
estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes na poesia
pessoana. Mostre a expressividade de cada um deles.
5. «E a única vida que temos / É essa que é dividida / Entre a
verdadeira e a errada.»
Explicite o sentido destes versos,
atendendo aos conceitos de Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo.
6. Comente, à luz da teoria poética do fingimento, a última
estrofe do poema.
***
Chave de correção:
1.
O poeta passa de uma reflexão íntima (1.ª estrofe)sobre a dicotomia sentir/pensar para uma
reflexão alargada a todo o ser humano (2.ª e 3ª estrofes).
2.
Características do sujeito poético: ser sofredor, fragmentado (dividido),
meditativo (reflexivo), racional
3.
A antítese é a figura de estilo fundamental em todo o poema. É expressiva da
divisão interior do sujeito poético.
4.
Outros recursos estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes
na poesia pessoana e explicitação da sua expressividade:
Adjetivação automática:
«verdadeira», «errada»
Ao serviço da
expressividade da antítese que suporta a dialéctica do sentir/pensar.
Presente do Indicativo
Expressivo de um
discurso reflexivo e intemporal
Vocabulário simples, corrente: «a gente»...
Facilitador da
compreensão de um discurso já de si complexo, tenta uma aproximação com o
“comum dos mortais”.
Repetição de vocabulário: «vida»
Eufonia; chama a
atenção para o que está em discussão que é o conceito de vida.
5.
Explicitação do sentido dos versos «E a única vida [pensada] que temos / É essa
que é dividida / Entre a verdadeira e a errada», atendendo aos conceitos de
Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo:
A vida é a síntese entre o mundo da
aparência (“vida errada”) e a da essência (“verdadeiro”)
Vida verdadeira
↓
essência
Pensamento
(entre)
Vida errada
↓
aparência
6. O
des-conhecimento do eu:
Sentir-se
estranho não está somente no mundo envolvente de natureza diversa: domina de
tal maneira a existência do poeta que o mantém estranho a si mesmo. Só que este
sentir-se estranho lhe é próprio: tudo quanto é físico se retira do espiritual,
o sentimento faz saltar em breve os laços do pensamento, logo o pensar fica
paralisado e finalmente torna-se passivo e alheio.
O
ser está sempre algures, fora das fronteiras limitativas, do outro lado do
muro, longe da costa: não nos pertence. Esta é a noção insuportável do
consciente de Fernando Pessoa. (G.
Güntert, F. Pessoa, o Eu Estranho)
Pessoa
procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar
o pensar e o sentir.
O
interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são
tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a
inteligência.
Em
Fernando Pessoa observa-se uma dialéctica da sinceridade/fingimento que se liga
à consciência/inconsciência e do sentir/pensar. (Acesso ao Ensino Superior. Português 12.º Ano – A e B,
Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Ed., 2000).
A
vida que se tem é a dramatizada (representada) (“a que tem que pensar”, v. 18),
porque esta é a via obrigatória para um autoconhecimento (consciencialização do
Eu).
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
Tudo que faço ou
medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço —
Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
13-9-1933
Poesias.
Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995).-
177. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2275
I - Leitura orientada do poema “Tudo que
faço ou medito”, de Fernando Pessoa
Definição do tema
O
poema constrói-se em torno do sentido da existência do poeta e da tomada de
consciência desse sentido – pergunta-se o poeta não só o que é, mas o que faz e
o que quer fazer. É um tema integrante da problemática do existencialismo,
frequentemente levantada pela corrente da época, o modernismo, que rege, pelo
menos em parte, a obra de Fernando Pessoa.
O conflito do poeta apoia-se num
raciocínio antitético:
O
recurso que o poeta utiliza mais predominantemente parece ser a antítese,
presença constante na dialéctica do ser: "o infinito" e o
"nada", a "alma lúcida e rica" que consegue ser
simultaneamente um "mar de sargaço". (Vem regularmente associado ao
paradoxo, ao que só é se o não for, tomando especial notoriedade a ideia do
"mar onde bóiam fragmentos de um mar".) (vv. 10-11)
O
verso que nos mostra uma síntese chocante dessa dialética interior e individual
do sujeito poético é o que conclui o poema: "Não o sei e sei-o bem"
A antítese projeta-se ao nível da
consciência do eu:
(Outra
forma paradoxal é a do raciocínio que não analisa só as coisas, mas também a
tomada de consciência delas – paradoxal na medida em que se põe em causa a si
próprio, se envolve num novelo de abstração quase lunática.)
O "mar de sargaço" é a melhor ideia
desse estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de
tomar, de assumir que toma a percepção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à
procura de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se
aproxima. É a insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística
do que é.
A relação de sentido entre «um mar de
sargaço» (8) e «um mar d'além» (10):
A
dor que resulta da distância imensa entre o que se quer – o Tudo (1), o Infinito (3) – e o que
se realiza – o Nada, o aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo
de si mesmo e consciência aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida
tem aqui o sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de
sargaço, mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo
Pessoa, em que «bóiam lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que
se reflectem ainda vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável
marca de crença esotérica (secreta oculta misteriosa) num mundo anterior, das
ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo – neste
caso «baço», indefinido...)
Nesta auto-análise, Pessoa manifesta a
impossibilidade de uma transparência do "ser":
O
ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.
A
pessoa do poeta parece assim querer justificar a ignorância sobre si próprio
com a complexidade sempre crescente do ser que priva o poeta da lucidez que
procura nessa análise introspectiva.
Recurso estilístico utiliza o poeta para
fazer recriar em nós essa impossibilidade:
Em
compasso com as antíteses evidentes, temos no poema metáforas quando o poeta
procura ilustrar-se a si mesmo e ao que pensa "um mar onde bóiam
fragmentos de um outro mar". Tomamos aqui os fragmentos como formas
diferentes de pensar, que assolam o primeiro mar (o próprio Pessoa) e se
apropriam dele.
Adaptado de http://gape.ist.utl.pt/~pferreira/Escola/FPessoa.html
(consultado em 06-12-2002) e de Para compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais,Porto Areal Editores,
2001.
***
II - Questionário sobre poema “Tudo que faço ou medito”,
de Fernando Pessoa
1.
Na primeira estrofe, apresenta-se uma oposição entre «querer» e «fazer».
Explicite essa oposição.
2.
Ao tomar consciência das limitações da sua capacidade de agir, que sentimento
invade o sujeito poético? Transcreva as expressões em que se apoia a sua
resposta.
3.
Mostre a expressividade, a nível semântico e a nível fonético, das metáforas:
«Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de sargaço».
4.
Qual a relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»?
5.
Identifique a figura de estilo presente nos últimos dois versos do poema.
Justifique-a em cada uma das ocorrências.
(Adaptado de Prova Escrita de Português, 11.° ano,
Cursos Complementares Diurnos, 1991, 1.ª Fase, 2.ª Chamada)
Chave de correção:
1. Oposição entre «querer» e
«fazer»:
- imaginação («querer») =
sonho, desejo de absoluto;
2.
Sentimento invade o sujeito poético ao tomar consciência das limitações da sua
capacidade de agir: desencanto, frustração, deceção, desapontamento,
insatisfação, malogro.
Expressões exemplificativas: «Que nojo de
mim fica / Ao olhar para o que faço!» (vv. 5-6) («nojo»: repugnância; náusea;
asco; pesar; tristeza; luto).
3.
Expressividade das metáforas: «Minha alma é lúcida e rica / E eu sou um mar de
sargaço»:
- A nível semântico: contraste entre a
limpidez e o valor conotados com a expressão «lúcida e rica» e o opaco e o
imundo de «mar de sargaço». O "mar de sargaço" é a melhor ideia desse
estado de confusão em que o poeta se encontra e que o impede, se não de tomar,
de assumir que toma a perceção do mundo que o rodeia. Continua Pessoa à procura
de si próprio, do seu eu que se afasta à medida a que o poeta se aproxima. É a
insatisfação contínua e permanente, a sede de desvendar a mística do que é. O
ser é, para o poeta, naturalmente confuso e obrigatoriamente opaco à razão.
- A nível fonético: oposição entre as
vogais doces «i», «u» da primeira expressão e o fonema áspero aberto de «mar de
sargaço».
4.
Relação de sentido entre «um mar de sargaço» e «um mar d'além»:
A dor que resulta da distância imensa entre o que
se quer – o Tudo, o Infinito – e o que se realiza – o Nada, o
aquém do sonho. Essa dor vai originar o nojo de si mesmo e consciência
aguda de, tendo uma alma lúcida e rica (e lúcida tem aqui o
sentido primitivo de «cheia de luz», luminosa) ser um mar de sargaço,
mais parecido com algo de pantanoso, de charco – mar, segundo Pessoa, em que «boiam
lentos / fragmentos de um mar de além». Ou seja, em que se refletem ainda
vestígios, fragmentos, de algo de maior e distante (provável marca de crença
esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos,
não passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido...).
A interpretação
processa-se a dois níveis: 1.º - o SER consciente está aquém e manifesta-se
como o vestígio (fragmento) do subconsciente. 2.º - marca de crença esotérica
num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não
passaria de reflexo – neste caso «baço», indefinido…
5.
A figura de estilo comum aos últimos dois versos do poema é a antítese:
- no v. 11, opõe o sentir ao pensar e
mostra o estado confuso do sujeito poético;
- no v. 12, exprime um conhecimento intuído
que não percecionado pela razão e mostra também o estado confuso do sujeito
poético.
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
A casa
por fabricar: uma leitura do poema «Andaime» de Fernando Pessoa
1. Fala-se de Fernando Pessoa como se fala
de um nosso amigo próximo. Anda na boca de toda a gente: desde os simples
empregados de escritório até aos políticos que o citam nos seus discursos
parlamentares ou nos comícios partidários. É pau para toda a colher. Pintam-no
nas paredes e nos postes eléctricos, pelas ruas, vêm fotos nos jornais,
fazem-se programas de rádio e televisão, usam-no até para vender máquinas de
escrever.
Porém, este conhecimento, este andar de
boca em boca é superficial. Poucos sabem realmente quem foi Fernando Pessoa,
poucos lêem e compreendem a sua obra. Ele próprio passara a existência a tentar
descobrir quem vivia dentro de si, que significado haveria por detrás dos seus
pensamentos. A pergunta «quem não sou?» é posta ao longo de toda a sua obra.
É nossa pretensão neste estudo definir
algumas fronteiras de Pessoa ortónimo, servindo-nos de um dos seus poemas menos
«badalados»: "O Andaime". Sabemos que o devaneio lírico e a
musicalidade caracterizam a forma de ser poeta na perspectiva ortónima. A
dificuldade maior será abrir sendas pela imensidade florestal que é toda a obra
poética deste grande da nossa literatura. Ele é tudo e em todos os heterónimos
há afinidades, semelhanças que, no fundo, o tornam único.
É característico de Pessoa ortónimo a
abundância de aliterações e de rimas internas. A linguagem é sóbria e
intimista. A nível temático, a maior parte das composições que constituem o Cancioneiro,
chora uma felicidade passada, para lá da infância. A inquietação metafísica
perpassa por cada verso, bem medido, longe do caudal impetuoso e aparentemente
desgovernado de Álvaro de Campos.
É isso que tentaremos verificar no poema
"O Andaime", publicado na revista Presença em junho de 1931.
2. Fernando Pessoa intitulou o poema de
"O Andaime", aparecendo a mesma palavra na última estrofe da
composição. Andaime é um vocábulo de origem árabe que os dicionários
descrevem como uma armação de madeira ou ferro de que se servem os pedreiros
para construir um edifício, sendo desmontada após a construção. É também
utilizado para restauro de paredes de edifícios arruinados. Porquê o andaime
nesta composição? Diz António Quadros que há sempre na poesia de Pessoa «um
trilho para as alturas, uma temática de levitação para além de tudo» (Quadros,
1987: 62). Palavras como sol, sobe e o próprio andaime são
disso testemunhas no poema em análise.
O andaime é um meio de fazer erguer, para
elevar às alturas, as paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta.
Contrapõe-se a altura do sol e do andaime à planura do rio e do mar. a «casa
por fabricar» é o que nunca chegou a ser; o andaime as esperanças
irrealizáveis, o projecto inconcluso, a ilusão que se revelou numa mentira. O
andaime, afinal, não serviu para construir a casa; era inútil como a vida e
seus anseios.
A casa, na simbologia geral, é o centro do
mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de cada homem. Nesta composição,
o poeta sente-se vazio, pois a casa não chegou a ser edificada. O seu interior,
a sua alma, é um vácuo enorme rodeado por um andaime inútil.
Fernando Pessoa tem uma imaginação aquática
por excelência. É quase obsessivo o tema da água na sua obra. Lembremo-nos das
odes de Álvaro de Campos, um engenheiro naval, e da Mensagem. No poema
em análise temos o rio, as ondas, as águas lentas e mansas, o mar.
O rio, como escoamento das águas, é símbolo
de fertilidade, de morte e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo
para o oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação (cf.
Chevalier, 1982: 449). O poeta recorda o seu passado olhando as ondas do rio.
Elas lembram-lhe a vida «vivida em vão». O «correr vazio» do rio é como a própria
vida. O poeta está na margem sossegado e não encontra nenhuma razão para
explicar o seu sossego. Antes pelo contrário, deveria estar agitado,
inconformado com aquilo em que se tornou. Olha com indiferença as ondas,
ouvindo o «som morto das águas». Tudo passa, tudo vai, como a corrente do rio.
A velha ideia heraclitiana está aqui bem presente. No fragmento 12 da edição de
Diels, diz Heraclito: «ceux qui entrent dans les mêsmes fleuves reçoivent le
courant d'autres et d'autres eaux et les âmes s'exhalent des substance
humides».
As ondas indicam uma ruptura com a vida
habitual, uma mudança nas ideias, atitudes, nos comportamentos do sujeito
(Chevalier, 1982: 450). O poeta de "O Andaime" descreve-as tão leves
que nem são «ondas sequer». O corte entre o passado e a tomada de consciência
no presente é radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano
colossal.
As águas lentas e mansas remetem-nos para a
obra de Bachelard, L'Eau et les Rêves. Diz Bachelard que a água leva «au
loin, l'eau passe comme les jours» (Bachelard: 125). «Elle este une substance
pleine de réminiscenses et de rêveries divinatrices» (Ibidem: 122). É a
mestra da linguagem fluida, da linguagem sem choques, contínua, da linguagem
que abranda o ritmo, que transforma em matéria uniforme os ritmos diferentes
(cf. Ibidem: 250). Paul Claudel dizia que tudo o que o coração deseja se
pode reduzir à figura da água.
As águas calmas e lentas simbolizam o
desejo da morte: «pour certaines âmes, l'eau tient vraiment la mort dans sa
substance. Elle comunique une rêverie où l'horreur est lente et tranquile»
(Bachelard: 122; cf. Ibidem: 66). As águas mansas funcionam como um
convite à morte. Para Heraclito, a morte era a própria água. É expressivo o uso
do adjectivo morto no poema de Pessoa, associado ao som das águas e ao
eu do poeta.
O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo
sai do mar e a ele regressa. Aí se nasce e aí se morre. É a encarnação da
Grande Mãe, de que fala Gilbert Durand. O poeta pede às ondas que o levem «Para
o olvido do mar». É o desejo do retorno ao seio materno, à indiferenciação. Só
o mar é remédio, só as suas águas o podem envolver no esquecimento.
O complexo de Caronte, assim designado por
Bachelard, parece reflectir-se neste poema de Fernando Pessoa. O apelo que o
poeta faz às ondas para que o levem, lembra um outro de Baudelaire em Les
Fleures du Mal: «O mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!»
Tudo o que de lento há na morte é marcado pela figura do barqueiro horrível. As
ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a transportar a alma do poeta
para o mar alto, o túmulo do «olvido». O rio não é o objectivo, mas o meio para
alcançar a paz plena do mar e do indefinido.
Na Teogonia de Hesíodo, a água doce
estagnada dos rios e a água fecunda e furiosa do oceano antagonizam-se. a paz
que o poeta deseja não é o marasmo, a inércia que sobre si se abate quando olha
o rio preguiçoso. É a paz espumante do oceano, larga e abrupta numa eterna
aventura desigual e única. Talvez do mar renasça um novo ser e a vida recomece,
menos ilusória, menos enganadora.
Sabemos que o sonho é um veículo de criação
de símbolos. Fernando Pessoa é um sonhador. Ele próprio o diz: «Toda a minha
vida foi de passividade e de sonho».
O cepticismo pela vida real transforma-se,
no poema "O Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta
encara o passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou, a sua vida
foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta era o sonho. Como a
realidade era dolorosa, efémera, rotineira, refugiava-se na fantasia. O alívio,
diz João Mendes, procurava-o «no sonho, não só como evasão da vida angustiada e
sem solução; mas porque de facto o sonho se torna mais verdadeiro que a
realidade concreta» (Mendes, 1983: 287). Porém, em "O Andaime", o
poeta descobre que também o sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho são
ambos sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a morte, o
«olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo do inconsciente obrigam o
poeta a preferir o seio do mar.
A infância é símbolo da inocência e da
simplicidade, o estado anterior ao erro. A saudade do tempo de criança é uma
constante que atravessa toda a obra de Fernando Pessoa. Sabemos que até aos
seis anos ele fora exclusivamente o «menino de sua mãe» e que, a partir daí,
tivera de repartir com os seus irmãos recém-chegados essa exclusividade. Tal
evento «repercutiu-se-lhe profundamente na alma, tornando-se uma criança e
depois um jovem ensimesmado, solitário, introspectivo, melancólico, que
procurou sucessivos escapes para a situação ressentida como de abandono e dupla
orfandade» (Quadros, 1987: 24). Também no poema "O Andaime" parece
delinear-se esta problemática, implicitamente no desejo de retorno ao seio
materno atrás explicitado, e na alusão à «bola de criança». Na quintilha
terceira, o poeta compara a sua esperança e o seu desejo a uma bola. A bola
atirada por uma criança ao alto sobe mais do que a esperança que sente, do que
o desejo que tem. As crianças são solícitas. Ele, ao contrário, é morno, quase
frio, impotente de vontade. Talvez quando criança fosse mais perseverante nos
seus desejos e esperanças.
As recordações afluem-lhe à memória com a
correnteza fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as esperanças, os
sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos vazios perante o rio que corre.
Ressalta um sentimento de fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de
queda de um sonho anterior» (Quadros, 1987: 56). As esperanças estão mortas
porque já não acredita nelas; mas hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O
poeta sente-se um morto, como cadáver que deu à margem do rio.
Mantinha-o uma visão irreal, impossível:
«Só no palco era rainha / Despiu-se e o reino acabou». Ele encontrou-se,
«Quando estava já perdido». É como chegar atrasado a um encontro que não foi
marcado. Tal como um louco, teimava no que não tinha solução. A sensação de
loucura é própria de alguém que choca com a realidade e que não a aceita ou a
compreende de uma forma desviante. Agora cai em si e vê o engano. Apenas um
sonho liga o seu pensamento ao corpo: ser muro de jardim.
A simbologia do muro e do jardim tem a sua
importância para a compreensão do poema. O muro simboliza a comunicação
cortada, interrompida. Pode servir para defesa, protecção, mas é ao mesmo tempo
símbolo de cárcere. O jardim simboliza o paraíso terrestre, celeste ou cósmico.
Aparece nos sonhos como a expressão de um desejo puro. O muro de jardim mantém
as forças internas que florescem. Não se penetra no jardim senão por uma porta
estreita (Cf. Chevalier, 1982: 531-533). Contudo, o poeta fala de um «deserto
jardim». Não tem árvores nem canteiros de flores. Está deserto como a sua
própria alma. Deste modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o vazio, a
ausência da felicidade; o muro o corte, o impedimento de realizar o sonhado. O
corpo do poeta é o muro da alma, o guardião, a defesa do que já nada há para
guardar. O jardim é a sua alma árida e deserta, sem sonhos, sem vida, sem
passado, sem futuro.
3. A intertextualidade é, como a considera
Bakhtine, descobrir num texto outras vozes escondidas. É a presença polifónica
de várias vozes num texto literário. Formulado este conceito por Julia Kristeva
nos anos 60, já Baudelaire, no século XIX, se referira implicitamente a ele.
Baudelaire considerava o cérebro humano como sendo constituído por camadas que
se inter-relacionam. Do mesmo modo um texto literário é contituído por camadas,
externas ou internas ao escritor, que se inter-relacionam (Silva, 1986: 624 e
seguintes).
Há vários tipos de intertextualidade. Os
que nos interessam para a busca de analogias no poema "O Andaime" são
a hetero-autoral, que é a relação de um texto literário com textos de outros
escritores; e a homo-autoral. Nesta, o autor espelha a sua própria obra.
A intertextualidade pressupõe sempre outros
textos. Procuraremos sugerir, nos próximos parágrafos, a possível analogia de
"O Andaime" com vários textos do mesmo autor e de outros autores.
Se compararmos esta composição com a
"Sôbolos Rios" de Camões, deparamos com uma afinidade na forma estrófica,
métrica e rítmica. A afinidade do vocabulário e de certa temática parece-nos
igualmente similar. Expressões em "Sôbolos Rios" como lembranças,
tempo passado, rio corrente, sonho imaginado, Quantos enganos / Faz o tempo às
esperanças, um gosto que hoje se alcança, desejo em desejo, por sol, por neves,
mal presente, são rios estas águas e a morte indicam uma franca
analogia com o poema de Fernando Pessoa.
Camões adapta o que diz o salmo 136, Super
Flumina Babylonis, à sua própria vida. No salmo, os judeus, «desterrados na
Babilónia, choram o tempo em que viveram felizes na sua terra (Saraiva, 1980:
100). Assim, o poeta, na margem do rio, chora o tempo passado e o seu mal
presente. Reconhece, contudo, que o que passou não lhe dá contentamento nenhum.
Ficou-lhe apenas a lembrança de uma esperança perdida. Aquilo que ele pensava
ser um grande bem é apenas desilusão. A luz, a resolução da crise, vem-lhe do
amor e da misericórdia divina, da Jerusalém celeste.
Fernando Pessoa, da mesma forma, olha as
águas correntes e nelas revê os enganos da sua vida passada. Todavia, não
resolve o conflito interior por uma saída escatológica, tal como em Camões. A
sua única saída é o «olvido do mar», o deixar-se arrastar pelas águas, sem
desejos, sem esperanças, ansiando apenas o esquecimento, o aniquilamento total.
Este é um dos exemplos mais característicos
da intertextualidade hetero-autoral. Cremos que Fernando Pessoa,
conscientemente ou não, foi influenciado pelo texto de "Sôbolos Rios"
no momento em que compunha o poema "O Andaime".
Da intertextualidade homo-autoral há
inúmeros exemplos, tanto no Fernando Pessoa ortónimo como no heterónimo.
Centrar-nos-emos no ortónimo.
Entre 1928 e 1933 Fernando Pessoa compôs
pelo menos cinco poemas tendo a paisagem fluvial como cenário. Um deles é
"O Andaime". A identidade vocabular e simbólica entre este e, por
exemplo "Na Ribeira deste Rio" e "Bóiam Leves" é flagrante.
No primeiro, o poeta passa os dias junto ao rio, olha-o, vê «os rastros que ele
traz» e o «que ficou para trás». Vê e medita, não no rio que passa, mas no que
vai pensando. Na segunda composição, as águas paradas absorvem a imaginação do
poeta. Os seus pensamentos de mágoa «bóiam leves», como Ofélia morta. «São
coisas vestindo nadas», «vestígios do que não foi».
No poema sem data "Na Quinta entre
Ciprestes", o devir heraclitiano está também presente: «No rio ao pé dos
salgueiros / Passam as águas em vão». Trazem consigo tristezas de outras gentes
que, juntas com as do poeta, aumentam o seu caudal.
Em 1933 escreve "Entre o Sono e o
Sonho". O poeta, neste poema, diz que entre si e aquilo que supõe ser
«corre um rio». Esse rio é o passado, a vida que foi: «Chegou onde hoje habito
/ A casa que hoje sou». O passado dormente morre no rio que desliza.
4. Abordámos no nosso estudo alguns pontos
que nos parecem importantes para uma maior clarividência de um dos poemas que
consideramos fundamental para o entendimento da poética de Fernando Pessoa.
Longe dos moldes modernistas, o poema "O Andaime" ressente-se de certa
atmosfera simbolista. Da abordagem simbólica e temática, concluímos da presença
no poeta de um cepticismo perante a vida real e de sonho, ambas enganadoras e
fúteis, e do desejo da morte. A longa composição de Camões "Sôbolos
Rios" não terá sido de todo estranha a Fernando Pessoa quando da
construção de "O Andaime", uma vez que há ressaibos análogos em ambos
os poemas. A temática do rio que corre como vida que passa em retrospectiva é
uma recorrência em muitas das composições poéticas da obra ortónima de Fernando
Pessoa.
Fernando Pessoa não é um poeta apenas para
ser falado. A fama corrompe e a moda passa. Saber ler Pessoa é descobrir os
seus dramas e, por ele, tentar compreende os nossos. Foi um homem vulgar,
correspondente comercial de firmas medíocres. Porém, soube olhar para dentro de
si, para a rua onde passava, o quarto onde dormia, o mar que se fixava no
horizonte, e descobriu o para lá: «Vi todas as coisas e maravilhei-me de
tudo / Mas tudo sobrou ou foi pouco».
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston (19--), L'Eau et les Rêves, 6ª ed., Paris,
Librairie José Corti.
CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles,
Paris, Éditions Robert Laffont.
MENDES, João (1983), Literatura Portuguesa IV, 2ª ed., Lisboa,
Editorial Verbo.
PESSOA, Fernando (1958), Poesias, 5ª ed., Lisboa, Edições Ática
(daqui se extraiu o poema "O Andaime", pp. 232-234).
QUADROS, António (1987), «Introdução à Vida e Obra Poética de Fernando
Pessoa», em Poemas de Alberto Caeiro, Mem Martins, Publicações
Europa-América.
SARAIVA, António José (1980), Luís de Camões, 3ª ed., Amadora,
Livraria Bertrand.
SILVA, Aguiar Vítor Manuel de (1986), Teoria da Literatura, 7ª ed.,
Coimbra, Livraria Almedina.
José Leon Machado, 1991
Disponível em: http://www.ipn.pt/literatura/letras/ensaio15.htm
(consultado em 12-01-2003)
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Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
Dizem que finjo
ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995). - 236. 1ª publ. in Presença,
n.º 38. Coimbra: abril de 1933. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4250
Linhas
de leitura do poema “Isto”, de Fernando Pessoa
Assunto: teoria da criação poética.
Quanto
à forma do
poema (aspectos fónicos) repare-se no facto de o poeta usar o verso curto (seis
sílabas) num poema de fundo pesado, em que se expõe uma teoria da criação
poética. Para que o discurso lógico, apesar disso, decorra mais livremente,
aparecem os casos de transporte: vv. 1.º e 2.º, 3.º e 4.º, 7.º e 8.º, 8.º e 9.º,
11.º e 12.º.
O
poema surge na sequência do «Autopsicografia» e parece uma resposta a possíveis
más interpretações daquele.
1.ª estrofe
Notar o tom
depreciativo do início do poema e o tom de convicção total com o uso do
advérbio «Não», seguido de ponto final. Assim, o verso «Dizem que finjo ou
minto» tem aqui o sentido que lhe atribuem os que dizem que o poeta finge, isto
é, «não sincero», «falta à verdade», como se depreende da própria disjuntiva
«finjo ou minto». Este sentido é depreciativo e corresponde ao uso popular
verificável, por exemplo, na expressão «pessoa fingida», isto é, falha de
verdade. Por isso, o poeta se apressa a negar esse sentido ao seu fingimento:
«Eu simplesmente sinto com a imaginação, / Não uso o coração».
Os
versos 3-5 são como que a «tese» deste poema: o fingimento poético é a síntese
da sensação com a imaginação, destacando-se esta, porque intelectual.
Notar
a subjectividade manifestada pelo uso da 1º pessoa verbal, ausente de
«Autopsicografia». (Talvez se deva a que aqui Pessoa se apresente como o poeta
intelectual por excelência.)
2.ª estrofe
Esta
parte constitui uma confirmação do conteúdo da 1ª estrofe, baseada na
experiência vivida do poeta.
A
2.ª estrofe apresenta a fundamentação do uso da imaginação: a realidade onde
mergulha o poeta é apenas a aparência ou o terraço (fronteira) que encobre
outra coisa: as ideias, a obra poética; volta a acentuar-se o processo do
fingimento poético, mas neste texto a sensação e imaginação processam-se num
único momento – Enquanto na «Autopsicografia» o poeta distinguia dois momentos
(o da sensação e o da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as
realidades (belas) subjacentes ao «terraço» (aparências) são vistas por ele,
poeta-Pessoa, automática e simultaneamente.
É
evidente que paira aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as
aparências (as coisas deste mundo) e ver (pressentir, intuir) imediatamente as
realidades puras de um mundo mais alto (profundo).
Conceito oculto
Ou mesmo platónico de
que
«Essa coisa é que é
linda»
(mundo[1]
que fascina o poeta)
--->
o mundo real[2]
(«terraço»)
é reflexo de
um mundo ideal
(«sobre outra coisa»)
[1] Mundo das ideias.
[2] Mundo sensível.
Constata-se aqui
também a grande emoção (de natureza intelectual) que o poeta punha naquilo que
ele considerava o fulcro, o âmago da poesia: «Essa coisa é que é linda».
A
comparação que engloba os três primeiros versos constitui o cerne do poema,
pois é o momento em que o autor define o universo em que se move, para, logo de
seguida, ficarmos a saber o que procura:
Tudo o que sonho ou passo
O que me falha ou finda (1.º termo)
É como que (partícula comparativa) um terraço (2.º
termo)
A
comparação centrada em «terraço» é admiravelmente expressiva da fronteira,
difícil de ultrapassar, entre o mundo sensível e o mundo intelectual. O
verdadeiro poeta (neste caso, Pessoa) é o privilegiado que é capaz de
ultrapassar essa fronteira, para usufruir da beleza que se encontra para além
dela.
Os
dois primeiros versos da 2.ª estrofe referem-se às contingências da vida do
poeta; contingências, porque nenhum dos quatro verbos empregues pelo
poeta («sonho», «passo», «falha», «finda»), é propriamente activo, ficando-nos
a impressão de que o que sucede ao poeta é marcado pelo destino. Esta ideia é
sugerida sobretudo pelo verso «o que me falha ou finda», em que o poeta não figura
como sujeito das acções, mas como destinatário marcado pelo destino (o que se
vê claramente na forma pronominal «me»). O mesmo sugere a forma verbal «passo»,
que o poeta poderia substituir por «faço», mas intencionalmente não quis. É
que, enquanto «faço» apontaria par algo realizado pelo poeta, a forma «passo»
aponta para algo que lhe sucede por fatalidade. Quer isto dizer que o poeta só
por contingência se achava entre as coisas contingentes deste mundo (no mundo
das aparências), pois o seu lugar, como poeta, situa-se para lá dessas coisas,
para lá do «terraço».
Recuperação
para a poesia de uma palavra tão prosaica como «coisa», utilizada em versos
consecutivos, para designar algo que está muito para além do universo sensível
a que, normalmente, se refere. Fê-la, assim, expressiva daquilo que é
indefinível, que fica para além do «terraço», na região onde se gera a poesia.
3ª estrofe
O
poeta, a jeito de conclusão («Por isso...»), afirma que escreve «em meio do que
não está ao pé». O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências; o
«que não está ao pé» é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras,
da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao
nível da poesia. A arte poética nasce da abstracção do mundo sensível.
Só quando o poeta é «livre do seu enleio» (do mundo sensível, do coração) é que
pode dar-se o milagre da poesia. Só com os super-poetas, como ele, Fernando
Pessoa, é que o milagre se realiza plenamente, porque não usa o coração, porque
está «livre do seu enleio» e «sério do que não é» (entenda-se «sério» por
liberto, isto é, livre do mundo sensível, das aparências). O verso «Sério do
que não é» está aqui para reiterar a ideia do anterior, «livre do meu enleio».
O poeta considera «sério» quem, como ele, é capaz de abstrair do acidental (do
mundo sensível), para se concentrar no mundo das essências (no mundo
intelectual).
O
poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido
irónico-depreciativo: «Sentir?»
Note-se
como esta interrogação, em conjunto com a exclamação «Sinta quem lê!» é uma
resposta irónica ao «Dizem que finjo ou minto» do princípio do poema.
Devemos
notar a diferença de significado entre o verbo sentir: na 1.ª estrofe («sinto»)
refere-se à emoção intelectual e não às sensações; na última estrofe («sentir»,
«sinta») há uma conotação pejorativa que não existe na 1ª estrofe, isto é,
refere-se, agora, às sensações, próprias das pessoas que dizem que ele finge ou
mente.
Bibliografia: Fernando Pessoa e heterónimos – o
texto em análise, A. A. Borregana, Cacém, Texto Ed., 1995; Aula Viva
Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999; Introdução
à Leitura de Fernando Pessoa e heterónimos, Avelino Soares Cabral, Sebenta
Editora.
Comentário de texto
Faça um comentário global do poema “Isto”,
sem nunca perder de vista a sua contextualização na obra.
Deve, entre outros aspetos pertinentes como
os níveis fónico, morfossintático, semântico e estilístico, desenvolver, de
forma integrada, os seguintes:
- assunto;
- divisão do poema em partes e assunto de
cada parte;
- sentido da primeira estrofe;
- explicação da comparação da segunda
estrofe;
- situação a que chega o poeta;
- estrutura formal.
Chave de correção:
Assunto
O fingimento e a criação artística; a
racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).
Divisão do poema
- As duas primeiras quintilhas: negação de
que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos
sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;
- A última quintilha: argumentação de que
ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e
elaborando uma nova realidade - a arte.
Sentido da 1.a estrofe
- Reconhecimento de que dizem e negação de
que finge ou mente.
- "Sinto com a imaginação/Não uso o
coração." - expressão da intelectualização do sentimento.
Base estrutural da 2.a estrofe
- Comparação: "Tudo o que sonho
ou passo / O que me falha ou finda." (1.° termo da comparação) "
(...) um terraço / sobre outra coisa ainda (2.° termo), ou seja, o mundo real
("terraço") é reflexo de ("sobre outra coisa ainda") um
mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou
platónico, mundo que fascina o poeta).
Situação a que chega o poeta
- "livre do meu enleio"
(desligado do tema) - há um ato de fingimento de pura elaboração estética e o
leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta
quem lê").
Estrutura formal
- Três quintilhas hexassilábicas,
isomórficas e isométricas, obedecendo ao esquema rimático ababb.