domingo, 1 de janeiro de 2023

António Vieira - Segundo Aviso na Mensagem, de Fernando Pessoa


Mensagem, Fernando Pessoa
Terceira Parte - O Encoberto
II - Os Avisos 



Segundo
António Vieira






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O céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

31-7-1929

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

I - Linhas de leitura do poema “Segundo: António Vieira”, de Fernando Pessoa:

Da obra de Vieira nada se refere na Mensagem, para além daquilo que importa a Pessoa. Ao padre jesuíta defensor dos escravos, ao grande pregador, ao embaixador de Portugal não dedica o autor da Mensagem um verso. Interessou-o, pelo contrário, o Mestre da língua portuguesa e o profeta do Quinto Império que Vieira foi, i. e., como a Torga (in Poemas Ibéricos, 1995, p. 60) mais tarde, o «Misto de génio, mago e aventureiro» que o habitou e a alma irrequieta que sonhava, em A História do Futuro, «O homem lusitano / À medida do mundo».

Neste poema, o sujeito da enunciação traça o elogio do sujeito do enunciado[1], refere a visão que este teve de D. Sebastião e interpreta essa visão como a madrugada do Quinto Império.

Por outras palavras: O elogio é justificado por duas razões: o P° António Vieira foi o "Imperador da língua portuguesa", o seu grande mestre; foi também o visionário profético que, interpretando certos passos bíblicos apocalípticos, sobretudo o sonho de Nabucodonosor, e interpretando as profecias do Bandarra, criou a esperança do Quinto Império. Profetizou, na Carta que escreveu a D. André Fernandes, bispo do Japão, a ressurreição de D. João IV como futuro imperador do Quinto Império; no seu livro "História do Futuro", insiste no advento do Quinto Império, o Último, o Universal, que terá em Cristo o chefe supremo. Para Portugal, está reservado por Deus o papel de criador desse Império.

O elogio de António Vieira é realizado através de duas metáforas (e hipérboles): "Imperador da língua portuguesa" e "um céu", facto que permite equacionar a escrita como factor de revelação, de desocultação.

Não é também de desprezar o domínio do verso decassilábico como forma de glorificar a personagem.

É verdade que a «grandeza», a «fama» ou a «glória» são atributos do herói, mas estes distinguem sobretudo o herói-alma, sacralizado, que vive como arquétipo[2] na memória colectiva: «Imperador da língua portuguesa, / Foi-nos um céu também

Uma caracterização que as estrofes seguintes retomam, insistindo em palavras e expressões ligadas ao plano astral: «imenso espaço», «constelado», «céu amplo de desejo», de inspiração ocultista, como o é também a apresentação da profecia.

Note, finalmente, como o Quinto Império nos é dado em mistério: pertence à esfera do «etéreo», do divino, e o seu começo é «madrugada irreal». Se não ficamos a saber em que consiste precisamente, fica, contudo, clara a sua ligação a D. Sebastião (o que é uma recriação pessoana do mito, que este não é, como se sabe, o Rei-salvador do Mundo na teorização de Vieira), e a ideia de que ele resulta do «imenso meditar» e do sentido visionário do herói[3], que, «no céu amplo de desejo», sonhou português em português. Da universalidade que ao Quinto Império se atribui fica, para além da sua inspiração divina, a alusão vaga de que «Doira as margens do Tejo», ponto de partida das naus.

Na última estrofe, o sujeito poético procede a uma interpretação gradativa da visão do Pe António Vieira:

o luar —> a luz —> o dia —> a madrugada do Quinto Império.

A originalidade de António Vieira foi ter juntado os dois mitos (o do Encoberto e o do Quinto Império) num grande mito nacional e universal.

A Vieira chama Torga «aluno do Bandarra» e «mestre de Fernando Pessoa», o que bem pode ser entendido como uma leitura dos três poemas que integram os «Avisos» e que vêm exactamente por esta ordem: «Bandarra, «António Vieira» e um poema sem título onde o sujeito poético alude à sua obra: «Screvo meu livro à beira-mágoa.». O Bandarra é Portugal, António Vieira é Portugal em português, feito sonho, que a Mensagem, a que o terceiro poema alude, dá voz. Une-os a profecia do Quinto Império sonhado.

Todavia, lendo o poema consagrado a Vieira não se encontra aparentemente qualquer ligação ao Bandarra, a não ser no cruzamento temático que une os três «Avisos»[4]. Não é, porém, assim. Sabe-se que a doutrinação de Vieira deve muito às Trovas do sapateiro de Trancoso. Recorde-se, também, que o próprio Bandarra, segundo crê Pessoa, profetiza o aparecimento de António Vieira numa das suas trovas:

Vejo, mas não sei se vejo;

O certo é que me cheira

Que me vem honrar à beira

Um Grande do do Tejo.

(apud Pessoa, 1987:160)

Não há, na Mensagem, qualquer referência explícita a esta profecia, mas não deixe de notar que os últimos dois versos de «António Vieira» acabam justamente assim:

A madrugada irreal do Quinto Império

Doira as margens do Tejo.

Coincidência? Os desígnios dos poetas também são, por vezes, impenetráveis.

 

Bibliografia:
Aula Viva. Português A. 12.º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999.
Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 143-144.



[1] Entenda-se: do objeto (António Vieira).

[2] Arquétipo é, em sentido geral, o mesmo que modelo, protótipo, paradigma, exemplo a imitar, acontecimento exemplar.

[3] A visão aconteceu no meio de profunda meditação; novamente o valor do sonho.

[4] Note a gradação: sinalprenúncioânsia do regresso iminente. Três são os avisos: a interpretação profética tem sempre três feições.


https://purl.pt/13965/1/P121.html


I – Questionário sobre o poema “Segundo: António Vieira”, de Fernando Pessoa:

Responda as questões, utilizando frases completas e contextualizadas.

1. Ao longo deste poema, perpassa um intenso elogio a António Vieira.

1.1. Identifique os segmentos textuais que traduzem os elogios feitos.

1.2. Indique os motivos/as razões que justificam esses elogios.

2. A palavracéu” associa-se conotativamente à idealização, ao sonho preconizados na Mensagem.

2.1. Comprove a afirmação feita, apoiando-se nas referências textuais.

2.2. Demonstre a utilização de palavras relacionadas com “luz” ao longo do poema.

2.3. Explique a funcionalidade do articulador que inicia a terceira estrofe.

3. Na última estrofe, o sujeito poético relaciona claramente António Vieira com o “Quinto Império”.

3.1. Caracterize esteQuinto Império” recorrendo às referências textuais dessa estrofe.

4. Justifique a inserção deste poema na estrutura global da Mensagem.

Fonte: Das palavras aos actos: português: 12.º ano, ensino secundário, Ana Maria Cardoso et alii. Porto, Asa, 2005

 

Tópicos de resposta:

1.1. Destacar os segmentos “teve a fama e à glória tem” (2), “Imperador da língua portuguesa” (3), “foi-nos um céu” (4) bem como o seu meditar caracterizado por ser “Constelado de formas e de visão” (6).

1.2. Razões centradas no plano do meditar, do pensar, do intelecto, pela construção do ideal do Quinto Império; no plano da utilização da língua e da construção de uma referência cultural (o imperador da língua portuguesa).

2.1. O céu marcado positivamente (“strela”, “grandeza”, v.1) é associado ao próprio António Vieira (metaforicamente tratado como um céu) pela sua grande capacidade intelectual (o meditar), criadora de um mito, de um ideal (Quinto Império).

2.2. Destacar as palavras/expressões “strela” (1); “Constelado” (6); “claro luar” (7); “luz do etéreo” (9); “dia” (10); “madrugada” (11); “Doira” (12).

2.3. Articulador adversativo – contraria, retifica a informação da estrofe anterior; não é o luar que Vieira visiona; é uma luz portadora do ideal, da perfeição; o nascer do dia, simbolizando o nascer de um tempo novo, sonhado, transcendendo, por isso, o real – o nascer do Quinto Império.

3.1. Este “Quinto Império” surge do desejo, do sonho, do divino, do intelecto; constrói-se no plano do inteligível, não do sensível ou material. Daí associar-se ao plano do “irreal’ Trata-se ainda de um império que focaliza, dá brilho, enaltece Portugal (“Doira as margens do Tejo”, v.12).

4. Inserção do poema na Terceira Parte, intitulada “O Encoberto” o que se anuncia e que, não sendo concreto/percetivelmente definido, trará a luz, como anunciavam as profecias (entre elas, as de António Vieira). Daí pertencer à subparte de “Os Avisos” (a par de Bandarra e do ‘eupresente no poema Terceiro), que preparam essa “Paz nas alturas

 

 

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“António Vieira – Segundo aviso na Mensagem, de Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/antonio-vieira-segundo-aviso-na.html



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