terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Tenho tanto sentimento, Fernando Pessoa


 





5


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.




10



Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.



15



Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

 

18-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 179. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2174

 

 

Questionário sobre o poema “Tenho tanto sentimento”, de Fernando Pessoa.

1. Divida o poema nos seus momentos lógicos. Justifique a sua resposta.

2. Enuncie as características do sujeito poético.

3. Refira a figura de estilo fundamental em todo o poema, indicando o seu valor expressivo.

4. Faça o levantamento de outros dois recursos estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes na poesia pessoana. Mostre a expressividade de cada um deles.

5. «E a única vida que temos / É essa que é dividida / Entre a verdadeira e a errada.»

Explicite o sentido destes versos, atendendo aos conceitos de Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo.

6. Comente, à luz da teoria poética do fingimento, a última estrofe do poema.

 ***

 

Chave de correção:

1. O poeta passa de uma reflexão íntima (1.ª estrofe)  sobre a dicotomia sentir/pensar para uma reflexão alargada a todo o ser humano (2.ª e 3ª estrofes).

2. Características do sujeito poético: ser sofredor, fragmentado (dividido), meditativo (reflexivo), racional

3. A antítese é a figura de estilo fundamental em todo o poema. É expressiva da divisão interior do sujeito poético.

4. Outros recursos estilísticos (a nível morfossintático e semântico) recorrentes na poesia pessoana e explicitação da sua expressividade:

Adjetivação automática: «verdadeira», «errada»

Ao serviço da expressividade da antítese que suporta a dialéctica do sentir/pensar.

Presente do Indicativo

Expressivo de um discurso reflexivo e intemporal

Vocabulário simples, corrente: «a gente»...

Facilitador da compreensão de um discurso já de si complexo, tenta uma aproximação com o “comum dos mortais”.

Repetição de vocabulário: «vida»

Eufonia; chama a atenção para o que está em discussão que é o conceito de vida.

5. Explicitação do sentido dos versos «E a única vida [pensada] que temos / É essa que é dividida / Entre a verdadeira e a errada», atendendo aos conceitos de Aparência e Essência, em Fernando Pessoa ortónimo:

A vida é a síntese entre o mundo da aparência (“vida errada”) e a da essência (“verdadeiro”)

Vida verdadeira

essência

Pensamento

(entre)

Vida errada

aparência

6. O des-conhecimento do eu:

  • Sentir-se estranho não está somente no mundo envolvente de natureza diversa: domina de tal maneira a existência do poeta que o mantém estranho a si mesmo. Só que este sentir-se estranho lhe é próprio: tudo quanto é físico se retira do espiritual, o sentimento faz saltar em breve os laços do pensamento, logo o pensar fica paralisado e finalmente torna-se passivo e alheio.
  • O ser está sempre algures, fora das fronteiras limitativas, do outro lado do muro, longe da costa: não nos pertence. Esta é a noção insuportável do consciente de Fernando Pessoa. (G. Güntert, F. Pessoa, o Eu Estranho)
  • Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir.
  • O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
  • Em Fernando Pessoa observa-se uma dialéctica da sinceridade/fingimento que se liga à consciência/inconsciência e do sentir/pensar. (Acesso ao Ensino Superior. Português 12.º Ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Ed., 2000).
  • A vida que se tem é a dramatizada (representada) (“a que tem que pensar”, v. 18), porque esta é a via obrigatória para um autoconhecimento (consciencialização do Eu).

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.


Sem comentários: