sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

«O menino da sua mãe», Fernando Pessoa




O MENINO DA SUA MÃE

 





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No plaino1 abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue2,
Fita com olhar langue3
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 217.

1.ª publ. in Contemporânea, 3.ª série, nº 1. Lisboa: 1926.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2052

 

__________

1 plaino: planície.

2 exangue: sem sangue.

3 langue: mortiço; sem brilho.

 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Com base nas três estrofes iniciais, indique seis características de figura representada.

2. Explicite um dos efeitos de sentido resultantes da antítese que se estabelece, na primeira quintilha, entre os versos 2 e 5.

3. Interprete, no seu contexto, os seguintes versos: «Tão jovem! Que jovem era! /Agora que idade tem?» (vv. 11-12).

4. Refira dois dos valores simbólicos do par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» (vv. 17 e 24).

5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido geral do poema, apoiando-se em quatro aspetos significativos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A figura representada nas três estrofes iniciais do poema apresenta as seguintes características:

- é um «jovem» (v. 11) soldado morto (vv. 1-6);

- encontra-se abandonado, em campo aberto («No plaino abandonado» - v. 1);

- tem o corpo «trespassado» por duas balas (vv. 3-4);

- apresenta a farda ensanguentada (v. 6);

- está de braços abertos, «estendidos» sobre a terra (v. 7);

- é «louro», de tez muito clara {«Alvo» -v. 8};

- evidencia uma lividez cadavérica («exangue» - v. 8);

- mostra um olhar fixo e vazio (vv. 9-10);

- perdeu, prematuramente, o futuro e os sonhos·(«os céus perdidos» - v. 10);

-é «Filho único», muito amado («0 menino da sua mãe», conforme esta o tratava - vv. 13-15).

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de seis características.

2. A antítese presente na primeira estrofe («Que a morna brisa aquece», «Jaz morto, e arrefece» - vv. 2 e 5) produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- oposição entre o calor da vida e o frio da morte (o sopro do vento suave e tépido, simbolizando a vida, contrasta com a fria rigidez do corpo do soldado «trespassado» por duas balas);

- oposição entre o movimento da «brisa» e a imobilidade do jovem («Jaz»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

3. Por um lado, estes versos exprimem o lamento do sujeito poético pela morte do jovem (veja-se a repetição da palavra «jovem», cujo sentido é intensificado pelos vocábulos «Tão» e «Que», introduzindo frases exclamativas); por outro lado, salientam quer a extrema juventude do soldado no momento em que morte, quer a perplexidade provocada pela nova temporalidade (ou ausência dela) instaurada pela morte: o soldado passa a ter uma idade indefinida («Agora que idade tem?»).

4. O par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» tem, entre outros, os valores simbólicos de:

- representação das figuras femininas protetoras - «a mãe» e «a criada / Velha»;

- presentificação do mundo distante da casa e da infância;

- ineficácia das preces da «mãe» e da «criada / Velha» (mediada pela inutilidade dos objetos que as representam);

- brevidade da vida, sugerida (por hipálage) pela expressão «cigarreira breve»;

- pureza (da infância perdida), expressa pela «brancura» do «lenço» (a cair da algibeira);

- paz, evocada pela «brancura» «alada» do «lenço»;

- contraste (dramático) entre o aspeto dos objetos materiais e o do cadáver do jovem que os possuiu («cigarreira» «inteira / E boa», «brancura» do «lenço» vs «Ele é que já não serve»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a referência a dois dos valores simbólicos.

5. Esta estrofe é particularmente relevante na medida em que:

- institui uma quase circularidade no poema, ao articular a primeira e a última quintilhas por meio da recuperação e da transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta;

- representa e realça, através da reiteração e transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta, a progressiva e inevitável degradação física do cadáver do jovem;

- estabelece uma simetria estrutural pela repetição do verso 15, localizado no centro do poema e reiterado, desse modo, no seu termo;

- faz convergir os sentidos do poema na expressão «0 menino da sua mãe» - título, verso central e verso final;

- evidencia a incomunicabilidade instaurada pela guerra e pela distância entre o «menino» e as figuras maternas, bem como a impotência destas perante a ameaça consumada da morte;

- expressa uma posição crítica de denúncia do poder político («O Império») que envia para a guerra os jovens e assim tece as «Malhas» da sua morte, absurda aos olhos de todos, sobretudo daqueles que mais os amam;

- intensifica o tom disfórico do poema, sublinhando os sentimentos de impotência e de perda;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a mobilização de quatro aspetos significativos.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2006, 1.ª fase

 



 

Intertextualidade

 

O tema e a imagem central do poema “O menino da sua mãe” são retomados em “Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento”, em que se descreve, segundo o mesmo registo metafórico, a imagem da “criança loura” que “jaz no meio da rua” como um “pequeno peixe – dos que boiam nas banheiras – à beira da estrada”. Significativo é notar que como “o menino da sua mãe” está morto, os afetos maternais são suprimidos dessa descrição do menino, convertido, significativamente, em “criança loura”, apenas.

Caio Gagliardi, https://modernismo.pt/index.php/m/661-menino-de-sua-mae

 



 

TOMÁMOS A VILA DEPOIS DUM INTENSO BOMBARDEAMENTO

 

A criança loura
Jaz no meio da rua,
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que boiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?
 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).   - 247. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1837

 


 

Outros autores do século XX retomaram o poema “O menino da sua mãe”, do seguinte modo:

 

O SOLDADO MORTO
 
Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há de beijar ninguém.
 
Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão de impulso de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.
 
E a luz as horas as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958

 

Jaz morto e arrefece o menino da sua mãe” (1973)
 escultura de Clara Menéres

 

O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arreféce.

Raia-lhe a farda o sangue
Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!
Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada
Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço... Foi a criada
Quando êle era mais novo.

Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cêdo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.

 

Mário Cesariny Vasconcelos, O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989

 

 

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O menino da sua mãe, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-menino-da-sua-mae-fernando-pessoa.html


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