NYC Subway, 1960 by Enrico Natali |
O VAGABUNDO
Das casas que ninguém construiu
me deram esta para morar:
ficou-me o céu como tecto
e o vento como lençóis...
Dos trapos que atiram fora
me permitiram um para eu vestir.
Das chuvas que caem do tecto do meu lar
me consentiram abafos para as quatro estações.
(Ah, se não fosse às vezes fazer sol...)
Das mulheres que ninguém quer
me negaram a última de todas,
a última de todas as mulheres!
E quando notaram que eu parecia um homem,
pois tinha
ouvidos para ouvir
e olhos para ver,
em todas as estradas do mundo
me gritaram:
‑ Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!
Manuel da Fonseca, série «O vagabundo e outros motivos alentejanos»
in Rosa dos Ventos, 1940
in Rosa dos Ventos, 1940
LEITURA ORIENTADA DO POEMA «O VAGABUNDO»
O uso repetitivo das preposições (das, dos) no poema foi utilizado para enumerar todas as privações que o vagabundo passa, ou seja, não ter uma casa para se abrigar, roupas adequadas para vestir, proteção contra mudanças atmosféricas ou alguém para amar. As privações do personagem do poema apresentam um realce maior através da descrição feita da “casa” que o vagabundo habita que tem “o céu como tecto e o vento como lençóis...”. Essa descrição encerra em si uma imagem extremamente lírica e que leva o leitor a visualizar essa “casa” e esse personagem.
Também a repetição do pronome oblíquo (me) em conjunto com os verbos (deram, permitiram, consentiram, negaram e gritaram) reforça as atitudes de desprezo da sociedade em relação ao vagabundo, que mesmo quando as pessoas notam que ele “parece um homem”, o comportamento continua sendo o mesmo, isto é, de indiferença e descaso sobre a situação desumana em que se encontra.
Essa indiferença é enfatizada pela expressiva pontuação do poema e pela presença do pronome “todas” ao remeter ao substantivo “estradas” que primeiramente vem precedido do substantivo (todas as estradas), ou seja em uma posição de realce com a finalidade de destacar que em “todas as estradas do mundo” as pessoas tem a mesma atitude em relação ao vagabundo e por isso o querem longe delas e o mandam “ver o fim das estradas todas do mundo”.
Assim, a vida do vagabundo, do mendigo, do maltês é de um andarilho que por nada possuir, não tem para onde ir, nem hora para chegar. O seu viver é em liberdade, sob o leito imensurável do descampado, tendo como teto o céu e o vento como lençóis, porém, sem direito a um abrigo contra as chuvas, nem uma mulher como companhia e tendo que vestir os trapos que os outros jogam fora. Ou seja, uma vida destituída de direitos, de confortos, de dignidade e cercada pelo desprezo e pela indiferença social. Desse modo, se percebe que a intenção do poeta não é simplesmente denunciar a miséria do corpo, mas também da alma. Afinal, o vagabundo representa uma figura não só privada de bens materiais como também da sua dignidade como ser humano em decorrência do abandono e do desdém de que é vítima socialmente.
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco,
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 115-116.
O VAGABUNDO NA ESPLANADA
A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspetiva de observação, levava os transeuntes1 a afastarem-se de esguelha2 para os lados do passeio.
Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado3, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído4 nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas5 dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba6 às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta7.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso8 do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado9, mas condescendente10, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos11, da deambulante12causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios13, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos14 de prepotências15, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras16 um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Céptico17, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se18, circunvagando19os olhos, como se gritassem: “Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!” Nas caras, descompostas pelo desorbitado20melindre21, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda22 raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode…
E calou-se. O homem olhava-o com tanta benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito.
Depois de ler o dístico23, o homem, com a placidez24 de quem, por mera distração, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem… – volveu o empregado. – A gerência não admite… Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes25. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. –Aqui para nós, também não me parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.
Manuel da Fonseca, Tempo de Solidão, 1973
_________________________
1.
transeunte: caminhante;
peão.
2.
esguelha (de): de
lado; de soslaio.
3.
atarracado: baixo
e grosso.
4.
puído: gasto
pelo uso.
5.
Ripas:
tiras de madeira.
6.
Aba:
friso, borda.
7.
alvacenta: esbranquiçada.
8.
anguloso: ossudo.
9.
alheado: distraído.
10.
condescendente: bondoso.
11.
Oblíquos: na
diagonal.
12.
deambulante: que
passeia ao acaso.
13.
Compadrios:
favoritismos
14.
submersos: cobertos;
invadidos.
15.
prepotentes: autoritários;
poderosos.
17.
céptico: em
atitude de dúvida, incrédulo.
18.
empertigar-se: encher-se
de vaidade; ensoberbecer-se.
19.
circunvagando os olhos: olhando
em volta
20.
desorbitado: excessivo;
exagerado.
21.
melindre: ofensa
22.
hedionda: horrível
23.
dístico: letreiro
24.
placidez: calma
25.
circunstantes: pessoas
presentes
LEITURA ORIENTADA DO CONTO «O VAGABUNDO NA ESPLANADA»
1 - O ESPAÇO
Ao contrário de muitas narrativas de Manuel da Fonseca (cfr. O Fogo e as Cinzas),O Vagabundo na Esplanada decorre em espaço urbano, lisboeta: primeiro acompanhamos o protagonista na avenida (atual Avenida da Liberdade) e depois nos Restauradores. Tal implica naturalmente a consequência de ela se passar num espaço social muito distinto do das narrativas alentejanas do mesmo autor.
2 - AÇÃO
O começo ex-abrupto
Qualquer um de nós, se fosse contar esta história perante a turma, poderia começar assim: Eu vou contar a história de um vagabundo que há dias vi aqui em Lisboa e que era uma figura muito original… Etc. Depois prosseguiria mais ou menos ao modo de Manuel da Fonseca.
Mas na história, falta esta entrada, pois ela inicia-se ex-abrupto, abruptamente, sem preparação, mergulhando o leitor logo na ação ‑ o que é muito vulgar em narrativas modernas.
Duas sequências
O conto é constituído por duas sequências: a primeira, quando o protagonista desce a avenida, e a segunda, quando ele se encontra na esplanada do café dos Restauradores. Nos dois casos, manifesta-se uma profunda oposição circunstantes-vagabundo.
O quiproquó, a ironia
A expressão latina qui pro quo significa equívoco, confusão de quem toma uma pessoa por outra. Nitidamente, o conto acaba com um quiproquó, que o leitor assume como irónico: um vagabundo maltrapilho, por equívoco, considera-se o cliente mais merecedor de ocupar a esplanada (destinada a pessoas de um estatuto económico acima dos limites da subsistência elementar, o que não era o caso dele).
3 - PERSONAGENS
O vagabundo
Não oferece dúvida que o vagabundo (com minúscula, pois ele é anónimo) seja o protagonista do conto. É-o um pouco passivamente, em particular na primeira sequência. O resto, que é o principal, são a sua postura, o seu modo de caminhar, os seus ares, e isso provoca grande perturbação quer nos transeuntes da avenida quer nos utentes da esplanada do café dos Restauradores.
O narrador idealiza-o muito; a gente duvida mesmo da possibilidade da existência dum “vagabundo” assim.
Releia-se o retrato desta original personagem e repare-se que primeiro o leitor apenas o “vê”, depois aprecia-o externamente (e já lhe descobre singularidades inesperadas) e por fim apercebe-se de alguns traços psicológico-morais seus, também eles singulares.
A partir do final da primeira sequência o vagabundo passa a ser referido como homem, até à exaustão – dez vezes. Falha de redação? Intencional?
Os transeuntes e os clientes da esplanada
Se a descrição do vagabundo parece beneficiá-lo, a dos transeuntes e dos clientes da esplanada (personagens coletivas) parece dar deles uma ideia excessivamente negativa, mesmo cruel: do espanto inicial passam à inveja e rejeição quase racista, sem fundamento nos hábitos comuns dos portugueses.
Há paralelismo nas reações dos transeuntes e dos clientes da esplanada.
Na perspetiva do conto, o marginal protagonista revela-se muito mais simpático ao leitor que as pessoas comuns, o que é verdadeiramente o mundo às avessas. Afinal as pessoas comuns são quem mantém os marginais, é a elas que eles recorrem nas mais variadas circunstâncias, pois eles não assumem a responsabilidade básica de garantir a sua subsistência.
Além disso, o café não é uma instituição de caridade ou domínio público, como a avenida, mas uma casa onde tem de haver regras que garantam a sua sobrevivência económica.
O empregado do café é um figurante.
O narrador é heterodiegético, não participante, e utiliza uma focalização externa, a de alguém, como que a de um dos circunstantes, particularmente atento ao que se passou e compreensivo para com o protagonista.
4 – O TEMPO
O tempo da história é reduzido a dois breves momentos, com um intervalo (elipse) de permeio. A sucessão das duas sequências segue a ordem linear do tempo.
O tempo cronológico leva-nos talvez para antes de 1974.
5 – CONTO NEORREALISTA
A narrativa neorrealista, que surge com o início da II Guerra Mundial, tem inspiração marxista e consequentemente intenta transformar as sociedades capitalistas no sentido do mundo utópico do socialismo (utópico, pois até hoje falharam todas as tentativas para o concretizar).
Situando frequentemente a ação em meios populares, onde as ideias comunistas não tinham implantação, esta narrativa recorre a um processo de oposição, de contraste entre uma personagem ou um grupo de personagens que, por quaisquer razões, questionam o meio ambiente e se aproximam das posições ideológicas do autor, e os circunstantes. É com certeza sobre este processo que assentam os exageros desta história – que intentam denunciar pretensos males do mundo capitalista.
Repare-se no desenlace: ele parece sugerir que afinal, se o vagabundo tem dinheiro para pagar a despesa, cessam as objecções à sua presença no café.
6 - APRECIAÇÃO
Há três aspetos marcantes no conto: as singularidades do vagabundo, as violentas reações dos circunstantes e o quiproquó do desenlace. Eles condicionam a adesão, conforme se aceitarem ou se recusarem.
A rejeição do vagabundo pelos circunstantes parece-nos exagerada e isso afeta o sentido da ironia final.
Manuel da Fonseca, que também foi poeta, na descrição do vagabundo recorre a expressões particularmente delicadas.
“Sobre O vagabundo na esplanada" in Português 10º Ano Página Pessoal de José Ferreira, 2011-06-04.
7 – FICHAS DE TRABALHO
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► Apresentação crítica, seleção,
notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca,
por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html
► “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra
colonial portuguesas), José Carreiro
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/14/o.vagabundo.aspx]