sexta-feira, 19 de julho de 2013

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE (Cesariny)


“You Are Welcome to Elsinore”, Ana Teresa Ascenção

           
           
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
              
Mário de Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital, 1957



                               
O título do poema remente para o Hamlet de Shakespeare, quando no Ato II, cena II, Hamlet dá as boas vindas, no castelo de Elsinore, aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern, convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos (sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas.
[…] A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território eletivo, a cidade amada/abominada por O’Neill e contrasposta a um Paris «onde o amor encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos. […]
      O poema, assim, define como poucos o que foi, o que quis ser e o que não pode ser a intervenção surrealista em Portugal, ao mesmo tempo que assinala os limites que à reabilitação da realidade e à nossa própria realização impõem aqueles que fizeram de Elsinore uma prisão, e da Dinamarca toda um território de podridão e de mentira; mas também aponta para a celebração do poder libertador da Palavra, instrumento de evasão da realidade real e de criação duma poética onde melhor nos instalarmos, porque, afinal, como lembrava o próprio Cesariny em 1949 no «Final de um Manifesto»,no círculo da sua ação, todo o verbo cria o que afirma.
          
Perfecto E. Cuadrado Fernández, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX.Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
     
     
             
    
projeto “You Are Welcome to Elsinore”, Ana Teresa Ascenção
             
Aquilo que os surrealistas pretendem alcançar através da linguagem poética não é, de todo, a elaboração de teses baseadas em juízos analíticos mas antes uma consciência profunda e sincrética da realidade humana em todas as suas manifestações. Esta consciência só poderá ser alcançada quando colmatada a distância existente entre os signos e as coisas, e quando a palavra surgir, ela própria, não como nomeadora de um real já formulado, mas enquanto reveladora de um real que desconhecemos. Embora sem excluir a dimensão criativa da linguagem, a poesia surrealista aponta mais no sentido da revelação, na medida em que pretende aceder a um real que efetivamente existe mas que a linguagem comum não poderia apreender. Esta problemática encontra-se bem patente no célebre poema “you are welcome to elsinore”.
A construção anafórica assente na expressão “entre nós e as palavras (...)”, que se repete ao longo do poema, salienta, precisamente, a distância que a linguagem mantém com aquilo que lhe é exterior, apontando para um espaço onde existem entidades de permeio. Estas entidades partilham semas de destruição e estagnação e funcionam como obstáculos à ligação profunda entre o eu, a linguagem e o mundo : “metal fundente”, “ hélices que andam”, “perfis ardentes”, “gente de costas”, “altas flores venenosas”, “portas por abrir”, “escadas”, “ponteiros”, “crianças sentadas”. De facto, os adjetivos “fundente”, “ardente” e “venenosa”, aliados a hélices em movimento, surgem enquanto obstáculos impossíveis de transpor, dado o seu poder mortífero. A imagem veiculada pelo verso “espaços cheios de gente de costas” transporta-nos para uma situação de solidão e de falta de comunicação, a que também podemos associar as “portas por abrir”, como símbolo de uma incapacidade de conhecimento de algo que permita que nos encontremos com o desconhecido ou com o Outro, e, em última instância, com nós próprios. As escadas que se encontram entre o sujeito plural do poema e as palavras podem representar igualmente um obstáculo a essa fusão entre a palavra e o referente. Embora possamos entender a palavra “escada” como um meio de ligação e de passagem, neste contexto este termo surge enquanto símbolo da distância a ser percorrida entre os dois elementos em questão. Também o tempo, representado pelos ponteiros do relógio, aparece como um elemento distanciador da palavra face aos objetos, podendo mesmo indiciar um certo desfasamento no tempo entre as duas realidades. Por último, a imagem das crianças sentadas “à espera do seu tempo e do seu precipício” sugere-nos, como diz Fernando de Azevedo, “o prenúncio de uma fatalidade e de um ambiente fúnebre, uma vez que as crianças se caracterizam intrinsecamente pela sua vivacidade e dinamismo” (Fernando José Fraga de Azevedo, Texto literário e ensino da língua: a escrita surrealista de Mário Cesariny, Braga, Universidade do Minho / Centro de Estudos Humanísticos, 2002, p. 159). No contexto surrealista, a imagem de um ambiente de estagnação associado à infância reveste-se de um valor simbólico forte, na medida em que é a este período do desenvolvimento do ser humano que os surrealistas atribuem a verdadeira Vida, enquanto liberta de imposições sociais e morais. Assim, vemos que, no contexto surrealista, a fratura existente no seio do processo de significação é entendida como destruidora de uma verdadeira perceção do mundo e do ser humano.
Diana Isabel Fontes Vasconcelos, O Poeta Mago – Presenças da Magia na Obra Poética de Mário Cesariny deVasconcelos. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, ramo de Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009.
     
             
                                           
                  
O poema de Cesariny inicia com um convite, uma receção de boas-vindas, explícito no próprio título: sê/sede bem-vindo/vindos a Elsinore. Porém a referência a este local, transporta-nos para o ambiente de tensão dramática do Hamlet de Shakespeare. Esse é o espaço das dúvidas sobre o ser, das reflexões sobre a vida, das lutas pelo poder. Desta perspetiva, este convite está imbuído de um carácter irónico já que nos convida a partilhar um espaço nefasto e destrutivo.
Elsinore surge como uma espécie de mediador, de espaço separador que se interpõe entre o sujeito poético plural – “nós” – (insistentemente reiterado ao longo do poema através da repetição anafórica) e as palavras (o seu poder criador e libertador). Essa designação global é, depois, particularizada.
O primeiro contacto é feito com a parte que representa o mundo-máquina: com o seu “metal fundente” e as “hélices que andam” e desempenham o papel de um assassino. Esta personificação das hélices tem um carácter extremamente violento uma vez que elas não só podem “dar-nos morte”, mas principalmente violar a nossa intimidade – a alma – para tirar “do fundo de nós o mais útil segredo”. Por esse motivo, elas geram a angústia de não poder guardá-lo, de não saber quando o “nós” vai ser roubado, sendo-lhe retirado o seu próprio eu, a sua individualidade e os seus pensamentos. Esta violação do pensamento é visualmente percetível não só pelos espaços em branco que isolam a forma verbal “violar-nos”, mas também pelo uso da conjugação perifrástica no presente do indicativo (“podem dar-nos morte”, “[podem] violar-nos”, “[podem] tirar…”) que projeta num tempo futuro e indeterminado a ação agressiva das hélices. O segundo contacto com Elsinore, apresenta um mundo aparentemente mais humanizado. No entanto, nesse espaço estão disseminados vocábulos e expressões com conotações negativas. Tal é o caso de “perfis ardentes” que, se por um lado, podem ser vistos como sugestões do entusiasmo, da euforia; por outro, remetem para silhuetas capazes de queimar, de destruir sem necessidade de se materializarem. Também as pessoas que deambulam por este local são incapazes de comunicar, funcionam como estranhos, como seres que não compartilham os mesmos projectos e ideias, por isso, estão “de costas”. Uma outra referência disfórica é a menção às “altas flores venenosas”. Muito embora exteriormente possam estar associadas à beleza ou à sua simulação, elas minam a existência já que são letais e esse carácter nefasto é intensificado pelo recurso à aliteração da sibilante.
Apesar destas referências disfóricas, este espaço apresenta alguns laivos de esperança. Há ainda “portas por abrir” (nem tudo se esgotou, há outras possibilidades a explorar) e há “crianças” (aquelas que representam a eterna capacidade humana para sonhar e perseverar). Esta ideia é intensificada pelo recurso simultâneo à enumeração, aliteração e reiteração da conjunção copulativa “e” (“e escadas e ponteiros e crianças sentadas”). Este verso gera uma certa ansiedade relativa à espera, uma vez que as crianças estão inativas. Com efeito estas “crianças sentadas” (o próprio nós) estão nesse espaço negativo “à espera do seu tempo e do seu precipício”: elas aguardam o momento em que urge ser, isto é, em que é necessário iniciar, agir, mesmo que a esse início esteja inerente o fim (a destruição, a morte).
Após esta humanização do espaço, ele metamorfoseia-se e passa a ser a metáfora da própria vida, é a “muralha que habitamos”. Mais uma vez, enfatiza-se o facto de o sujeito poético plural viver aprisionado, rodeado por uma barreira inexpugnável, intransponível, geradora do isolamento, da solidão, que o impede de comunicar e ser. Elsinore revela, assim, o seu carácter dominador das individualidades. Por isso mesmo, há duas categorias de palavras que o povoam: as “de vida” e as “de morte”. Esta constatação constrói-se a partir de uma ambiguidade já que estes dois grupos podem ser encarados como as palavras geradoras de vida e as que a destroem ou aniquilam; porém, as primeiras são “imensas”, “esperam por nós” (pela criança que ainda não agiu, que ainda não descobriu o “seu tempo”), as segundas, as “que deixaram de esperar” (aquelas que morreram, que se tornaram vãs, que foram espoliadas do seu significado). Apesar da opressão contínua de Elsinore, nem todas as possibilidades se esgotaram, já que “há palavras acesas como barcos” (dominadas pela ânsia da liberdade, não foram feitas prisioneiras, liberdade essa realçada pelo uso da comparação, aliteração e a imagem associada à visualidade do adjetivo “acesas”) e “palavras homens” (numa fusão total entre homem e poder persuasor/criador da palavra). No entanto, essa breve esperança é aniquilada pela consciência que o sujeito poético de tem que estas palavras são inacessíveis, “guardam/o seu segredo e a sua posição”, para que as hélices as não extirpem do seu conteúdo. De novo é realçada a incapacidade de comunicar livremente, de confidenciar ideias por opção, imposição ou medo.
Este cenário controlador vai atingir o seu apogeu na terceira estrofe, quando Elsinore assume todas as suas potencialidades, daí a abundância de aliterações das nasais e da sibilante para sugerir auditivamente esse ambiente opressivo e ameaçador. A sua presença impõe-se “surdamente” e surgem as suas “mãos e as paredes” a sugerir a ideia da prisão, do enclausuramento, da impossibilidade de fuga. De igual forma, este poder opressor determina o tipo de palavras existentes: são as “nocturnas palavras gemidos”, o sofrimento. Novamente ocorre uma certa ambiguidade: se as palavras podem implicar, neste contexto, a referência ao desalento, é possível também associar-lhes a capacidade de segredarem e murmurarem, daí a sua escuridão e quase inaudibilidade. Desta perspetiva, vislumbra-se uma nova esperança: surge a vontade de o sujeito poético se fazer ouvir. Mas a este propósito está inerente uma nova dificuldade: estas palavras são “ilegíveis” (ninguém as descodifica). Apesar disso, elas são “diamantes” (o brilho, a transparência, a revelação), embora “nunca escritas” porque ainda não foram inventadas ou devido ao seu cariz oral, já que a palavra escrita compromete o seu autor, denuncia o seu pensamento; há também aquelas que são “impossíveis de escrever” devido à presença surda de Elsinore que tudo e todos controla até ao mais íntimo de cada um. A esta situação acrescem duas outras impossibilidades: o instrumento que as tocaria está danificado - faltam as “cordas de violinos” (expressão esta que cumula em si a metáfora das cordas vocais, da mudez voluntária ou imposta e a referência à música enquanto veículo da manifestação da vitória da liberdade) – e seria necessário usar o que não se encontra disponível - “todo o sangue do mundo” e “todo o amplexo do ar”. Este verso, construído a partir de um paralelismo anafórico associado à hipérbole, permite visualizar o tipo de esforço que seria exigido às “crianças sentadas” para superarem o poder de Elsinore. De imediato, surge um leve resquício de possibilidade de anulação dessa entidade opressiva: “os braços dos amantes escrevem muito alto/muito além do azul”. Num primeiro momento parece que há algumas vozes que ainda conseguem exprimir com palavras o que pensam, mesmo que isso implique escrever num papel diferente: no firmamento, no azul de todas as possibilidades. Mas se esse caminho distante, enfatizado pela repetição do advérbio de intensidade “muito”, pode ser percorrido pelos “braços dos amantes”; é nesse azul que eles encontram o seu “precipício”, a morte por oxidação. A esta breve esperança está também inerente a própria destruição da vontade do eu (bem percetível pelo uso da anástrofe que prolonga o efeito da morte já que o tempo verbal utilizado é o presente do indicativo que não permite formular hipóteses de fuga). O ambiente opressor é explorado até à exaustão, muito embora sempre pincelado de vislumbres de perspetivas positivas. É o caso do final desta estrofe em que se lembram as “palavras maternais”, aquelas que geram a vida, as que representam a esperança incondicional nos outros; mas também estas aparecem desvirtuadas, associadas ao sofrimento calado, “só sombra só soluço/só espasmo só amor só solidão desfeita”. Mesmo estas palavras estão impossibilitadas de se compartilharem com os outros/outras, vivem no mundo da solidão e, mesmo essa, “desfeita”; tal decorre da presença surda das muralhas que nos cercam e das hélices que nos violam. Esta negatividade torna-se particularmente notória pela repetição sistemática do advérbio de exclusão “só” associado à aliteração e à alternância entre a vogal aberta do advérbio e uma profusão de vogais fechadas nas restantes palavras.
Traçado este retrato claramente negativo, o sujeito poético sintetiza no dístico final o seu conselho, a sua hipótese de solução. Elsinore – o espaço “Entre nós e as palavras” – está preenchido pelos “emparedados”, pelos prisioneiros do silêncio, condenados à solidão perpétua; mas, simultaneamente pelo “nosso dever falar”, pela nossa obrigação em não compactuar, em dar por terminado o tempo da espera. Decorrente dessa situação, o poema termina com essa conjugação perifrástica apenas composta por infinitivos: a liberdade inerente à obrigação de não calar é ainda uma leve potencialidade que urge atualizar pelo uso da palavra.
O convite inicial acaba por ser um duplo convite. Cada um de nós é convidado a ver o mundo da opressão, fingimento e medo que separa homem e palavras devido à silhueta omnipresente de Elsinore. Inerente a este, está o segundo convite: apela-se à atuação, ao agir das “crianças sentadas” que deverão denunciar essa presença avassaladora para que ela seja derrotada.
           
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           


“you are welcome to elsinore”
O poema como palco: o antes da escrita de Mário Cesariny

Ao contrário da cena posterior à escrita representada em tal como catedrais”, “you are welcome to elsinore” expõe a gagueira do poeta e sua dificuldade em iniciar o trabalho com as palavras. Publicado em Pena capital (1957), esse poema é considerado por alguns críticos como um dos maiores exemplos da poética cesarinyana, sendo objeto de relevantes estudos, como os ensaios de Perfecto E. Cuadrado, que sucede o poema na antologia Século de Ouro (2002), e de Manuel Gusmão, “Entre nós e as palavras (Mário Cesariny)” (2010). A composição parece ter como ponto central a tentativa de expressão e comunicação com o outro através da fundação de uma linguagem poética frente à constatação da existência de um intervalo entre o que se deseja exprimir e aquilo que se consegue efetivamente dizer, refletido pela repetição de uma fórmula ao longo de todo o poema: “entre nós e as palavras”. “you are welcome to elsinore” se apresenta, assim, como mais uma arte poética cesarinyana na qual vemos em cena um poeta em crise com “as palavras”, onde o encontro com o outro é condição fundamental para o trabalho de escrita.
Assim, se, em “tal como catedrais”, “tu e eu” são abandonados à própria sorte, “pálidos” e “tristes” após a consumação da obra, em “you are welcome to elsinore”, “o nosso dever falar” se mostra como um dever ético ainda a ser cumprido. Como no primeiro, o sujeito  plural  que  nele  se  apresenta  pode  ser  pensado  tanto  como  uma  tentativa  de comunicação com o outro, futuro encontro amoroso de liberdade entre texto e leitor, quanto como um encontro entre textos, perceptível pelo deslocamento dos discursos alheios para dentro do poema. Nesse sentido, o “nós” que percorre todo o poema poderia ser tomado como uma constatação da situação comum de emparedamento do homem dentro dos muros da linguagem, retomando a problemática em torno da ineficiência das palavras, as “senhoras” a quem é preciso dar “descanso”, as quais não “atravessam fronteiras”, mas formam uma muralha dentro da qual habitam os homens. Assim, o poema de Cesariny parece encontrar André Breton e sua acusação a respeito do peu de réalité13 com o qual contatamos através da linguagem cotidiana. Para o francês,

as palavras tendem a se agrupar de acordo com afinidades particulares, cujo resultado é, normalmente, o constante recriar do mundo em seu antigo modelo. [...] É suficiente que critiquemos as leis que regem o seu agrupamento. A mediocridade de nosso universo não depende essencialmente do nosso poder de enunciação?
(BRETON, 1992, pp. 275-276, tradução minha)14.

Porém, “you are welcome to elsinore” parece ir além, ao propor o encontro com a palavra poética, as palavras “dos amantes” e as “maternais”, aquelas que são “só solidão desfeita”, como forma de libertação dos homens não apenas do emparedamento dentro dos muros da “medíocre” realidade fundada pela linguagem, mas do aprisionamento entre as paredes de Elsinore/Portugal.

you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
(CESARINY, 2004, pp. 34-35).

Ao contrário da cena final de tal como catedrais”, o poema acima encena um momento prévio à escrita, no qual se representa uma situação angustiante de constatação de que “entre nós e as palavras” uma distância com a qual é preciso negociar para que seja possível empreender esse trabalho, algo que se percebe através das imagens violentas em seus primeiros versos, tais como “metal fundente” e “hélices que [...] podem dar-nos morte”. Ao ensaiar repetidamente seu começo, o poema parece um tanto fragmentário. O efeito é provocado pela repetição da expressão que o inicia, “entre nós e as palavras”, não menos que seis vezes ao longo das quatro estrofes, formando uma espécie de fórmula para o lermos, ou uma “coluna vertebral do poema” (2010, p. 398), como caracteriza Manuel Gusmão. Mesmo quando não a encontramos integralmente, seu eco permanece e vemos seus vestígios espalhados pelos versos do poema: palavras de vida palavras de morte/ palavras imensas/[...] palavras acesas como barcos/e palavras homens”. Porém, a imagem construída pela palavra “entre” sugere não apenas um hiato ou um espaço vazio que divide duas ou mais coisas, mas também uma inter-dicção, um entredizer, uma fala que se põe em meio a outra. Nesse sentido, o espaço existente “entre nós e as palavras” deixa de ser percebido como vazio que separa, e passa a ser um espaço de ligação dos elementos que carregam em si um sentido de interrupção ou incompletude, como “portas por abrir”, e a marcante imagem  do  emparedamento,  unidas  como por  “metal  fundente”  no  espaço  do discurso poético que afirma repetidamente a fissura e a censura.
As análises do poema de Cesariny empreendidas nos ensaios citados anteriormente desenvolvem-se a partir de duas características principais nele identificadas: Perfecto Cuadrado ressalta seu caráter engajado, “como denúncia e crítica dum tempo e dum país” (2002, p. 282), apontando “para a vontade de intervenção e de transformação [...] desse país e desse tempo” (CUADRADO, 2002, p. 282), caráter esse sugerido pela comparação, no título do poema, entre a Dinamarca de Hamlet e o Portugal do momento de escrita de “you are welcome to elsinore”15; Manuel Gusmão atenta para aquilo que chama de um “perturbante intervalo” (2010, p. 398) entre nós e as palavras, relativo à percepção de que uma “distinção entre a articulação verbal e o mundo da vida”, apontando, portanto, a existência de algo que resiste à simbolização e indicando a possibilidade de as palavras do poema serem uma maneira de tocar o insimbolizável (GUSMÃO, 2010). Aceitando essas duas perspectivas como complementares, isto é, tomando “a miséria da ‘prisão’ do Portugal salazarista” (CUADRADO, 2002, p. 282) como algo que permanece como um resto da operação de nomeação, como o “irrepresentável” (2010, p. 400) de que fala Gusmão, e retomando a distinção sublinhada por Compagnon entre o “sentido da citação (o enunciado)” (COMPAGNON, 1996, p. 46) e “o ato da citação (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46), creio ser possível aproximar-me de “you are welcome to elsinore” tendo em vista que, a partir da movimentação de discursos alheios dentro de seu poema e da busca por um diálogo amoroso com o outro perceptível por um “dever falar” que permanece como dever ético ainda a ser cumprido, Cesariny tenta abrir uma via de saída à situação de emparedamento dentro dos muros da ditadura e da linguagem petrificada pelo “mundo informativo da fala” (1982, p. 47), como a qualifica Octavio Paz. Assim, o “nosso dever falar” se converte no esforço da união em canto coral de amantes como maneira de dar conta do irrepresentável e de “impor à realidade real uma realidade poética” (2002, p. 283), como afirma Cuadrado.
Podemos perceber o deslocamento de discursos alheios para dentro do poema desde o título até seu dístico final. Em seus versos, julgamos ler o Elsinore de Shakespeare e o “vale escuro das muralhas” (1977, p. 102) de Cesário Verde, passando pela “criança [que] passa de costas para o mar” (1971, p. 92), de Eugénio de Andrade, pelas “Notícias do Bloqueio” de Egito Gonçalves (1952), ou pelas “palavras nocturnas” de Isabel Meyrelles (1954), além das referências ao léxico neorrealista, como percebemos nas imagens da “noite” e da “muralha”, bem como na fala em nome de um suposto coletivo representado pelo pronome “nós”. Aproximando a teoria de Compagnon dos estudos de literatura portuguesa, encontramos o ensaio “O retorno do épico: a nau e a nave” (2010), de Jorge Fernandes da Silveira, no qual o autor defende que, na literatura contemporânea portuguesa, principalmente naquela produzida durante o período do Estado Novo, a dissonância entre o sujeito e o mundo ao seu redor produz uma poesia que encontra, através de um jogo intertextual, de troca de versos, a forma de se falar em liberdade. O conceito elaborado por Silveira parte da constatação de que há imagens que se repetem ao longo da cultura portuguesa que passam a servir a um propósito comunicativo em estados de “proibição do livre trânsito da palavra” (SILVEIRA, 2010, p. 34). Seria possível, portanto, observar como os poemas escritos sob um estado de censura evocam poetas da tradição literária portuguesa de forma a comunicarem certas “notícias do bloqueio” (SILVEIRA, 2010, p. 34), como afirma com Egito Gonçalves. A linguagem poética que valorizasse os jogos intertextuais seria, assim, uma linguagem da comunicação possível num estado de exceção. Apesar de as leituras de Silveira se restringirem a análises de obras que dialogam especificamente com a cultura portuguesa, tomo como igualmente oportuna a leitura do diálogo com o poeta e dramaturgo inglês no poema de Cesariny como uma forma de comunicação no estado de exceção, algo que pode ser observado tanto na comparação entre Elsinore e Portugal, como observado por Cuadrado, quanto na problemática da comunicação movimentada por ambos os textos.

Desde o título do poema acima, podemos perceber como Cesariny recorre a um discurso que não é o seu para dar conta do espaço para o qual os leitores são convidados. Trata-se de uma citação que figura como uma das referências mais emblemáticas de sua poética: uma passagem de The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, de Shakespeare, o mais longo drama do bardo inglês. A escolha de Cesariny por uma citação direta dessa peça, a qual não é sequer adaptada ao português para além das duas diferentes grafias do nome do castelo, escrito “Elsinore” no título e “Elsenor” na terceira estrofe talvez indique certa “dificuldade em nomear/grafar o lugar para o qual somos convidados o impossível lugar da poesia” (2010, p. 397), como nota Manuel Gusmão. Porém indica, sobretudo, que se pode falar desse espaço através da voz fantasmagórica que remete a Hamlet e Elsinore, a voz de um outro.
A citação da tragédia shakespeariana no título do poema de Cesariny sugere um protocolo de leitura, fazendo com que seja necessário “procurar [...] a intenção na metáfora que utiliza” seu autor (SCHOLES, 1991, p. 25). Nesse sentido, ler “you are welcome to elsinore” implica ter em mente as principais questões do enredo de Hamlet e o porquê de sua
convocação nesse poema16. No drama de Shakespeare, surpreende a inação do personagem
principal e sua incapacidade de vingar o pai rapidamente, como percebemos no Ato III, Cena 2, quando é montada uma peça dentro da peça na qual é encenado um assassinato idêntico ao do Rei Hamlet para que Claudius, uma vez confrontado pelo drama encenado à sua frente, confessasse seu crime. Afirma Hamlet que

[...] I have heard
That guilty creatures sitting at a play
Have by the very cunning of the scene
Been struck so to the soul, that presently
They have proclaimed their malefections;
[...] The play’s the thing
Wherein I’ll catch the conscience of the king. (Hamlet, II, 2, 541-558).

Durante a encenação, Hamlet tem certeza da culpa de Claudius, porém é incapaz de confrontá-lo. Em oposição à inação do personagem principal, são dominantes na peça seus solilóquios, os quais concentram mais da metade das falas de toda a composição. Indo na contramão dos dramas encenados no teatro elisabetano, que se baseavam no ensinamento aristotélico a respeito do drama, o qual “‘precisa focar em sua ação, não em seu personagem’ [...][,] Shakespeare reverte essa técnica, substituindo as ações pelos solilóquios como meio de explicar para o público os pensamentos e os motivos de Hamlet” (VASCONCELOS, 2013, p. 20). A tragédia se prolonga, portanto, por mais dois longos atos, até que se encerre com as mortes quase simultâneas de Claudius, Laertes e Hamlet.
Ao encontrarmos a expressão “you are welcome to Elsinore” (Hamlet, II, 2, 340) numa fala do príncipe da Dinamarca, no momento em que recebe seus amigos Rosencrantz e Guildenstern no castelo de Elsinore, torna-se possível estabelecer uma comparação entre o personagem Hamlet e o eu-lírico de Cesariny. A expressão do título, descontextualizada da fala original, passa a significar um “és (sois) bem-vindo(s) a Elsinore”, e não um mero “bem- vindo(s) a Elsinore”, levando a crer que não se trata de um desejo de boas-vindas àquele que já chegou a Elsinore, mas de um convite feito às portas do castelo. Dessa maneira, o receptor da mensagem do poema de Cesariny, portanto um tu-leitor, é bem-vindo caso queira entrar. Atravessamos essas portas no momento em que começamos a ler o poema. Ao serem para ele convocadas, a escuridão e a podridão da Dinamarca de Shakespeare são comparadas ao Portugal salazarista do emparedamento e silenciamento no qual vive o poeta, como apontado por Perfecto Cuadrado (2002), e sugerem que, como o discurso de Hamlet em Elsinore, o poema se movimenta em torno de uma crise frente à constatação de que a realidade é uma narrativa, com a percepção de que a “verdade” é ditada pela linguagem, como, aliás, fora apontado por Breton. No drama, ao tomar conhecimento do assassinato de seu pai, Hamlet se encontra preso no intervalo de dois discursos a respeito do que se passou: o discurso oficial de Claudius, agora rei da Dinamarca, e o de seu pai, agora fantasma que clama por vingança. Aceitando a condição que lhe fora conferida por Claudius, Hamlet assume a fala de um louco como forma de sobrevivência até que execute sua vingança. O diálogo abaixo, retirado do texto da peça de Shakespeare, demonstra como a fala do príncipe toma as palavras em um sentido descolado daquele utilizado comumente, quando interpelado por Polônio a respeito do que lê:

LORD POLONIUS
[...] what do you read, my lord?

HAMLET
Words, words, words.

LORD POLONIUS
What is the matter, my lord?

HAMLET
Between who?

LORD POLONIUS
I mean, the matter that you read, my lord. [...]
(Aside) Though this be madness, yet there is method in’t. Will you walk out of the air, my lord?

HAMLET
Into my grave?

LORD POLONIUS
Indeed that’s out of the air. Aside How pregnant sometimes his replies are! (Hamlet, II, 2, 187 204).

Em Hamlet, podemos ver como a loucura assumida pelo herói, enquanto efeito de linguagem, torna-se uma forma de sobrevivência do príncipe. Hamlet passa a ser percebido como um louco justamente por se recusar a atribuir àquilo que diz lógica ou significados únicos, delegando àqueles que o escutam a tentativa de dar sentido final ao seu discurso, fazendo com que os outros personagens efetuem um exercício de tradução de suas falas: “What is the matter my lord?”, pergunta Polônio após a resposta sem sentido. No ensaio Hamlet and the Power of Words” (1995), Inga-Stina Ewbank afirma que

o próprio Hamlet está, ao longo de toda a peça, tentando encontrar uma linguagem com a qual se expressar, assim como linguagens com as quais se comunicar com os outros; e, a seu redor, os membros da corte de Elsinore empreendem  atos de tradução, quer para favorecê-lo, quer para prejudicá-lo (EWBANK, 1995, p. 59, tradução minha)17.

Assim como Hamlet em seu castelo, o eu-lírico que nos conduz pelo Elsinore que o poema tenta representar somente pode se referir a esse lugar a partir de um trabalho com a língua que seja capaz de deslocar as palavras de seus significados cristalizados pela fala quotidiana, para fundar uma nova realidade através da poesia. Dessa maneira, se qualquer mudança observável entre aquilo que “entre nós e as palavras” na passagem da primeira estrofe na qual se afirma que “há metal fundente ou “há hélices que andam para a segunda estrofe
onde encontramos “há palavras de vida”, “há palavras imensas ou “há palavras acesas como barcos –, podemos tomá-la como uma manifestação da percepção a respeito daquilo que Perfecto Cuadrado chama de “força genésica da linguagem, a capacidade das palavras para criar realidade” (2002, p. 283). Da mesma forma, Ewbank reconhece como, na peça shakespeariana, “o mistério da comunicação humana é encenado e o poder das palavras demonstrado: aquilo que dizemos e, ao dizer, fazemos uns aos outros, criando e destruindo continuamente” (EWBANK, 1995, p. 60)18.
Nesse sentido, podemos perceber como uma transformação progressiva das palavras sobre as quais o poeta fala ao longo do poema, “criando e destruindo” à medida que este se desenvolve. Assim, na primeira estrofe, vemos como os elementos “entre nós e as palavras” remetem à censura, a imagens negativas e violentas com as quais se fundamenta a ideia de que uma interdição brutal entre aquilo que desejamos e aquilo que realmente podemos falar. A repetição da expressão “entre nós e as palavras há” três vezes nessa estrofe aponta certa dificuldade do poeta em iniciar o trabalho com as palavras. O efeito de gagueira causado pelas repetições anafóricas reafirma a dificuldade de comunicação e provoca uma sensação de impotência angustiante naquele que lê. Podemos nos imaginar a escrever, ou a falar, ou nos colocar em qualquer situação que exija nossa expressão através de palavras, e nos vermos, imediatamente, confrontados com a mesma questão: existe uma barreira entre o que quero e o que posso dizer. Assim, o “nós” que identifica leitor e eu-lírico é uma união resultante do reconhecimento da condição comum à qual estão sujeitos todos os homens. Porém, o “nós” que remeteria ao coral neorrealista e apelaria à identificação de Elsinore com o Estado Novo surge, aqui, cindido, uma vez que o espaço “entre nós e as palavras” expõe a impossibilidade comunicativa e incapacidade momentânea de se superar esse hiato. As lacunas entre as palavras dos versos 3 e 7 reforçam a imagem da interdição e da gagueira:

Entre nós e as palavras metal fundente
entre nós e as palavras hélices que andam
e podem dar-nos morte     violar-nos     tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras perfis ardentes
espaços cheio de gente de costas
altas flores venenosas     portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera de seu tempo e do seu precipício  (CESARINY, 2004, p. 34, grifos meus).

Na segunda estrofe, entretanto, encontramos justamente aquela “força genésica da linguagem” sobre a qual falava Cuadrado:

Ao longo da muralha que habitamos
palavras de vida palavras de morte
palavras imensas, que esperam por nós
 e outras, frágeis, que deixaram de esperar
  palavras acesas como barcos
e palavras homens, palavras que guardam
 o seu segredo e a sua posição  (CESARINY, 2004, p. 34).

Agora, não encontramos mais os elementos violentos do espaço “entre nós e as palavras”, mas as próprias palavras que existem “ao longo da muralha que habitamos”. Nesse sentido, o poeta não nos fala da impossibilidade de expressão, mas aponta a possibilidade de um encontro libertador com as palavras. A citação de “O sentimento dum ocidental” que notamos no primeiro verso dessa estrofe convoca a “escuridão” das “horas mortas” do poema de Cesário Verde para dentro do poema de Cesariny e, assim como notamos anteriormente a respeito de seu título, permite que se fale do espaço onde esse “nós” habita. Como afirma Cuadrado, “no interior desses muros, apesar da evidência do abismo, sempre existe a possibilidade de criar ou reinventar a realidade pela força conjuradora, convocadora, invocadora e criadora da linguagem” (2002, p. 284) através, também, do encontro com as palavras alheias. Portanto, aquelas “palavras imensas, que esperam por nós”, podem ser tomadas como as palavras que foram ditas, ou escritas, por outros, à espera do encontro com um leitor, assim como Mário Cesariny encontrou as palavras de Cesário Verde. Dessa maneira, as próprias palavras serão capazes de iluminar a escuridão onde habitam os que estão “emparedados, / Sem árvores, no vale escuro das muralhas...!” (VERDE, 1977, p. 102), uma vez que “há palavras acesas como barcos” e aqueles que foram violados e tiveram seus “mais úteis segredos” tirados de si pelas “hélices que andam” podem encontrar, “ao longo da muralha”, “palavras que guardam / o seu segredo e a sua posição”.
A terceira estrofe do poema retoma o refrão “entre nós e as palavras”. Agora, porém, o advérbio de modo que se segue à expressão introduz uma nova perspectiva para pensarmos o espaço de interdição, a qual diz respeito não apenas ao dizer, mas ao ouvir: “surdamente”. Isto é, as paredes de “Elsenor” uma grafia distinta do “Elsinore” da peça de Shakespeare e do
título  do  poema 19   não  têm  ouvidos  (um  tanto  como  o  rei  Hamlet),  mas  mãos.  A incapacidade das “paredes de Elsenor” de escutarem abre uma via de resistência dentro dos muros, algo que é reforçado pelos versos seguintes: “E palavras e nocturnas palavras gemidos / palavras que nos sobem ilegíveis à boca”, palavras que existem no encontro noturno de amantes, na “surdina”, as quais não deixam de ser tentativa de comunicação. As palavras são “palavras diamantes” que não se tornaram “palavras grafites” e nunca serão “escritas”, apesar da idêntica composição química dos minerais, são “palavras impossíveis de escrever”, contudo, são palavras [de amantes].
Os versos seguintes, introduzidos pela conjunção explicativa “por”, são os únicos que pretendem justificar o silenciamento, ou localizar a experiência do emparedamento numa ordem lógica, apresentando os elementos necessários para a escrita das palavras. Seria necessária a união de três elementos que são o âmago, a parte mais fundamental para a garantia da sobrevivência dos universos aos quais pertencem “cordas de violinos”, “todo o sangue do mundo” e “todo o amplexo do ar”: o coração de uma orquestra sinfônica, convocando a música e a arte; toda a vida, ou todo amor, do mundo; e toda respiração, ou todas as vozes, do mundo. A falta de ar que sentimos após a leitura em voz alta do verso “nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar”, o mais longo de todo o poema, reforça a imagem por ele convocada e apela ao silêncio antes que retomemos a leitura do poema.
“Silêncio, para que eu passe onde ninguém jamais passou, silêncio! Depois de ti, minha bela linguagem” (BRETON, 1992, p. 276)20, diria André Breton.
Encontramos novamente as palavras de amantes nos versos seguintes. Neles, podemos notar a aposta em outra forma de liberdade se a “muralha que habitamos” não pode ser ultrapassada por terra, ainda é possível voar. Na sequência dos versos, percebemos uma valorização de união absoluta com o outro, seja ele amante ou mãe, e um apagamento do excesso de significados das palavras, sentido especialmente na aliteração da sibilante nos dois últimos versos dessa estrofe, a qual leva a um progressivo silenciamento no interior do poema:

e os braços dos amantes escrevem muito alto
 muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita  (CESARINY, 2004, p. 35, grifos meus).

Assim, se “a distância entre a palavra e o objeto [...] é precisamente o que obriga cada palavra a se converter em metáfora daquilo que designa” (PAZ, 1982, p. 43), é necessário que a criação poética seja feita “como violência sobre a linguagem” (PAZ, 1982, p. 47). Dessa maneira, para que atravessem o espaço “entre nós e as palavras”, é preciso que as palavras do poema se convertam exatamente naquilo que nomeiam: sejam “sombra”, “soluço”, “espasmo”, “amor”, “solidão desfeita”. Nesse ponto, “you are welcome to elsinore”, da mesma forma que “tal como catedrais”, parece querer “dar descanso a estas senhoras”, apostando no diálogo amoroso com o outro como alternativa à censura imposta pelo discurso dominante.
O dístico final do poema, aquele que encerra “a concentração da lição de poética” (GUSMÃO, 2010, p. 398), retoma a expressão central “entre nós e as palavras”, repetida em ambos os versos. A insistência da mesma construção do verso inaugural, nessa estrofe, nos leva a crer que aquela primeira resistência percebida pelo poeta não foi ainda ultrapassada. Nesse sentido, a cena representada ao longo de todo o poema é a de uma preparação da escrita, na qual o eu-lírico que nos interpela parece gaguejar em sua tentativa de expressão. Assim como no poema analisado na primeira seção, a encenação do ato de escrita que vemos representada em “you are welcome to elsinore” não coincide com a escrita do poema que estamos a ler. Se, no primeiro, vemos uma cena final, posterior à escrita de uma “Obra”, no segundo, encontramos um poeta preparando-se para escrever, ainda às voltas com um “dever falar” que indica a realização futura do ato poético.
Nessa estrofe, encontramos, novamente, aqueles mesmos versos do poema de Cesário Verde, cuja marcante imagem do emparedamento nos revela algo a respeito de nossa própria condição humana. Aqui chegados, porém, podemos perceber como o que inicialmente se apresentava como um problema, como algo a ser superado, aquele “perturbante intervalo [...] entre nós, os emparedados, aqueles que estão prisioneiros entre as paredes da cidade moderna ou entre o pouco de realidade que nos querem impor como todo o real acessível e as palavras” (GUSMÃO, 2010, p. 398), não parece ser tomado como um obstáculo. A percepção de que nossa relação com a realidade é pautada pela linguagem apresenta-se como uma possibilidade de solução tanto para o eu-lírico cesarinyano quanto para o personagem shakespeariano. O argumento de Ewbank, segundo o qual “o que as vozes silenciosas na peça têm em comum
com as vozes sonoras e eloquentes é a crença na importância da fala” (EWBANK, 1995, p. 61)21, não deixa de nos soar muito familiar: “entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. Dessa forma, o “dever” que se coloca ao fim do poema não é percebido como uma condenação, ou uma obrigação violenta que retomaria a imagem da tortura representada nos versos 2, 3 e 4, mas como um dever ético a ser cumprido pelo poeta. Assim como Horácio ao
fim da tragédia de Shakespeare, o poeta carrega consigo a tarefa fundamental de “falar”, fundando, através de um diálogo amoroso, uma nova realidade que seja possibilidade de liberdade. O poeta que se põe ao trabalho, “não, certamente, em busca da salvação, mas da verdadeira vida (1980, p.29)22, como afirma Octavio Paz.
A princípio estreitamente ligado a uma concepção neorrealista do fazer poético, o compromisso ético representado pelo “nosso dever” que se coloca ao fim do poema, no entanto, parece depender fundamentalmente do encontro com o outro: trata-se do nosso dever falar”. Seria, como afirmamos ao final da seção anterior, um falar “na intenção de” e não “no lugar de” uma mudança fundamental na concepção do canto coletivo neorrealista, como nota Rosa Maria Martelo em relação à poética de Carlos de Oliveira. Dessa forma, a intenção ética na  poética cesarinyana e  a forma de  “intervenção” à qual  se dedicará o surrealista parecem contemplar uma mudança na concepção do interlocutor ao qual se dirige e do papel que o sujeito poético representa dentro da poesia, cujos primeiros traços podemos notar na problematização do sujeito plural que se apresenta nos dois poemas sobre os quais falamos neste capítulo. A defesa dos surrealistas portugueses de uma atividade poética individual, como pode ser observado no “Comunicado dos surrealistas portugueses” (1981), parece corroborar essa hipótese. Afirmam Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Maria Henrique Leiria que
em Portugal, estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem que o estado vai realizando sistematicamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos faria cair fatalmente noutra ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta ou aquela tendência estética que, a título de revolucionária, pretenda criar outro tipo de academismo, fosse de qualquer maneira suficiente para nos levar à libertação desejada (LEIRIA; SEIXAS; SILVA, 1981, p. 151-152).
Declaradamente contrário à poética neorrealista, e à sua busca por abarcar uma coletividade dessubjetivada representada por uma voz coral, o projeto poético surrealista e cesarinyano propõe uma mudança de voz dentro da poesia, como veremos nos poemas que apresentarei no próximo capítulo.
A afirmação final de “you are welcome to elsinore”, portanto, aponta um imperativo

_________________
13 Cf. BRETON, André. “Introduction au discours sur le peu de réalité” (1992 [1924]).
14 “Les mots sont sujets à se grouper selon des affinités particulières, lesquelles ont généralement pour effet de leur faire recréer à chaque instant le monde sur son vieux modèle . […] Il suffit que notre critique porte sur les
lois qui président à leur assemblage. La médiocrité de notre univers ne dépend-elle pas essentiellement de notre pouvoir d’énonciation?” (BRETON, 1992, p. 275-276).
Todas as citações desse texto foram traduzidas por mim.
15 Perfecto Cuadrado explora essa comparação apoiando-se, também, na obra do surrealista Alexandre O’Neill: “A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da ‘prisão’ do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill No Reino da Dinamarca (CUADRADO, 2002, p. 282). Ao inventário surrealista de comparações entre a Dinamarca de Shakespeare (que, como alguns autores defendem, é também uma comparação entre o contexto político dinamarquês representado na tragédia e aquele da Inglaterra no momento de suas primeiras encenações) e o Portugal de Salazar, gostaria de acrescentar outro poema de Cesariny: “elogio do príncipe da dinamarca”, publicado originalmente em Nobilíssima visão (1959), presentemente publicado na seção “visualizações” de Manual de prestidigitação (2008).
16 Para tal, poderíamos tentar resumir o drama shakespeariano da seguinte maneira: o rei da Dinamarca, Hamlet, é morto e sua viúva, Gertrude, casa-se com seu cunhado, Claudius. Uma noite, o príncipe Hamlet, filho da rainha com o falecido monarca, é visitado pelo fantasma do pai e este lhe revela a verdade a respeito de sua morte: ele fora envenenado no ouvido, durante a noite, a mando de seu irmão, que agora ocupa o trono real. No encontro com o espectro, o jovem Hamlet promete vingança para que o espírito do pai descanse em paz. O primeiro plano que executa consiste em convidar atores ao seu castelo, Elsinore, para que encenem um drama cujo enredo seria exatamente idêntico aos acontecimentos narrados pelo espectro a respeito de seu assassinato, para que o rei ilegítimo, ao ser confrontado pela peça, confessasse seu crime. O plano não é bem-sucedido e Claudius percebe as intenções de Hamlet. Desejando livrar-se das ameaças do sobrinho, planeja seu assassinato e convence os outros personagens de que Hamlet teria ficado louco após a morte do pai. Atormentado pela responsabilidade da empreitada e tendo assumido o papel de louco a ele imputado, Hamlet seu desejo de vingança causar um banho de sangue iniciado com o suicídio de Ofélia, seu “par”, seguido dos assassinatos de Polônio, pai de Ofélia, de seus amigos Rosencrantz e Guildenstern e de sua mãe, culminando com as mortes quase simultâneas de Claudius, de Laertes, irmão da jovem, e da sua própria.
17 “Hamlet himself is throughout the play trying to find a language to express himself through, as well as languages to speak to others in; and round him – against him and for him – the members of the court of Elsinore are engaging in acts of translation” (EWBANK, 1995, p. 59). Todas as traduções de Ewbank são minhas.
18 “the mystery of human intercourse is enacted and the power of words demonstrated: what we say, and by saying do, to each other, creating and destroying as we go along” (EWBANK, 1995, p. 60).
19 Em uma palestra que proferi em fevereiro de 2016 na Faculdade de Letras da UFRJ, Mariana Gonçalves dos Santos reconheceu, nessa diferença de grafia, as palavras “el señor”. Acredito que a leitura é pertinente e aprofunda a discussão a respeito da comparação entre Elsinore e Portugal. Assim, a personificação de Elsenor, ao qual são atribuídas mãos além de paredes, revelaria uma comparação entre o suposto “el señor” e o próprio Salazar.
20 “Silence, afin qu’où nul n’a jamais passé je passe, silence! Après toi, mon beau langage” (BRETON, 1992,
p. 276).
21 “what the still small voices in the play have in common with the loud and eloquent ones is a general belief in the importance of speaking” (EWBANK, 1995, p. 61).
22 “No, ciertamente, en busca de salvación, sino de la verdadera vida (PAZ, 1980, p. 29).

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.

«Resurrección», Pejac


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Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/19/elsinore.aspx
Última atualização: 2020-01-02

quinta-feira, 18 de julho de 2013

NO MEU PAÍS HÁ UMA PALAVRA PROIBIDA (Manuel Alegre)



         
No meu país há uma palavra proibida.
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
         
Manuel Alegre, O Canto e As Armas, 1967

            


Todos os que não eram coniventes com os ideais do Estado [Novo], que não permaneceram alheados das atrocidades infligidas à população, acabavam por ser silenciados nas celas das prisões. Porém, muitos escritores, como é o caso de Manuel Alegre, optaram por referir metaforicamente aqueles que estavam incumbidos dessa tarefa: eles são os “fantasmas”, os que não são corpóreos e invadem o sono de cada prisioneiro:
«Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do país. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
a voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.» (Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas, 1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 19-20)
             
Todos os textos eram alvo de uma depuração linguística com o único objetivo de os tornar úteis ao regime ou, pelo menos, inofensivos. Tal situação fez com que o material linguístico dos autores fosse reduzido a um determinado número de vocábulos.
A pré-seleção do material linguístico pelo aparelho de Estado é também evidenciada no poema de Manuel Alegre “No Meu País Há Uma Palavra Proibida”.
Nesse poema, Manuel Alegre não procurou camuflar as suas intenções, razão pela qual mais facilmente se deteta a crítica ao regime, à forma como ele silenciava certas palavras, neste caso a palavra liberdade.
Apesar de nunca ser, de facto, escrita, as referências que são utilizadas facilmente são associadas a ela: é “uma palavra proibida”, foi presa “mil vezes” e outras tantas cresceu, existe dentro de cada ser como a “própria vida”, “sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu”, é dita com a mesma “ternura da palavra irmã”, é “quente” e “clara”, é escrita nos muros de noite e à pressa, não é possível apagá-la e é simultaneamente “ausência-presença”, é o símbolo de tudo “o que não se teve tudo o que não foi”, é o motor que permite superar a “humilhação” e guiar os homens, ela é constituída por toda a essência de Portugal e, por isso mesmo, não é possível rasurá-la nem omiti-la do pensamento porque este é inviolável. Ao unir-se ao próprio destino português, essa inaudível palavra aparece associada a diversos referentes históricos: a época dos descobrimentos, visível nos “verdes pinheiros”, no “mar”, no “sal” e nos “velhos marinheiros” que morreram. Imbuída desse espírito, ela ergue-se “espingarda” num tempo de luta e dor e apesar das tentativas de a aprisionarem, ela persiste “clandestina” a incentivar a hora em que todos poderão usá-la.
           
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
           

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  Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


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