poemário sobre a cidade invicta
"A minha relação com o Porto foi um casamento por conveniência que se transformou em amor à primeira vista", Agustina Bessa-Luís.
PORTO SENTIDO
|
O
poema é uma bela declaração de amor à cidade do Porto.
|
||
Quem vem e atravessa o rio,
junto à Serra do Pilar,
vê um velho casario
que se estende até ao mar.
|
-
"Serra do Pilar- elevações frontais ao Porto, na outra margem do rio,
junto às quais foi lançada a Ponte Luis
I.
|
||
Quem te vê ao vir da Ponte
és cascata sanjoanina
erigida sobre um monte,
no meio da neblina,
por ruelas e calçadas,
da Ribeira até à Foz,
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.
|
-
"(a) Ponte"- a Ponte Luis I.
-
"cascata sanjoanina"- espécie de
presépio, montado por altura das festas de S.João, tipicamente constituído
por uma estrutura em degraus com uma imagem do patrono na plataforma mais
alta. Tradição ainda viva semelhante à tradição lisboeta, hoje quase
desaparecida, do trono de S.António.
-
"a Ribeira"- zona típica do Porto, junto ao Douro, parte do Centro Histórico.
|
||
Esse teu ar grave e sério
dum rosto de cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria.
|
-
"rosto de cantaria"- humanização das fachadas de granito cinzento
característico do Porto.
|
||
Ver-te assim abandonado
nesse timbre pardacento,
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento...
e é sempre a primeira vez,
em cada regresso a casa,
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa.
Carlos Tê
|
-
"de quem mói um sentimento"- de quem guarda para si um sentimento.
-
"nessa altivez de milhafre ferido na asa"- imagem de orgulho na
adversidade.
Notas
de João Manuel Mimoso, Lisboa, 2007-06-21
https://www.inverso.pt/poesia/textos/Porto_Sentido.htm
|
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
Santos
Mártires
e Heróis
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.
As praias próximas, descendo para sul
Permanecem para mim a pátria dentro da pátria,
A terra materna,
O lugar primordial que me funda...
Porque nasci no Porto sei o nome
Das flores e das árvores
E não escapo a um certo bairrismo.
Mas escapei ao provincianismo da capital.
(Disponível também em A fonte: fonte de estímulo
intelectual n.º 12, dir. Armando
Coelho. Porto, Instituto Cultural
D. António Ferreira Gomes, 2006, p. 30)
Eugénio de Andrade |
Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
Eugénio de Andrade no Passeio Alegre.
Pelo lado dos lódãos ao fim do dia
depressa se chega agora no verão
à pedra viva do silêncio
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio.
viveu o autor antes de ir morar para o Passeio Alegre.
Que diz além, além entre montanhas,
O rio Doiro à tarde, quando passa?
Não há canções mais fundas, mais estranhas,
Que as desse rio estreito de água baça!...
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade?
Ó ruas torturadas e compridas,
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade
Onde as veias são ruas com mil vidas?...
Em seus olhos de pedra tão escuros
Que diz ao vê-lo a Sé, quase sombria?
E a tão negra muralha à luz do dia?
E as ameias partidas sobre os muros?
Vergam-se os arcos gastos da Ribeira...
Que triste e rouca a voz dos mercadores!...
Chegam barcos exaustos da fronteira
De velas velhas, já multicolores...
Sinos, caixões, mendigos, regimentos,
Mancham de luto o vulto da cidade...
Que diz o rio além? Por que não há-de
Trazer ao burgo novos pensamentos?
Que diz o rio além? Ávido, um grito
Surge, por trás das aparências calmas...
E o rio passa torturado, aflito,
Sulcando sempre o seu perfil nas almas!...
Cidade em que as burguesas vão à missa
Vestidas de vermelho carmesim.
Em vão, a luz, sobre elas, se espreguiça...
(As mães, pelo caminho, ao vir da missa
Proíbem-lhes os bancos do jardim...)
Não há fidalgos hoje. Há comerciantes.
É deles todo o ar que se respira!
Noites sem flor, sem luz, sem estudantes
E sem guitarras e sem mentira!
Para sentir o mar, o rio eterno
Cava, connosco, a rocha que dormia
E deita-se connosco, na alegria
De imaginar o céu, calcando o inferno.
Na rua escura as lojas de oiro e pano
São pedras frias, frígidas mas quietas.
Ó frios mercadores de oiro e pano
Porto! Mercado frio e desumano...
E no entanto ali é que há Poetas!
Lutar! — é o verbo. — Não morrer — é a vida.
Mas em surgindo a morte, que na estrada
Os ombros verguem sob a urna pesada
E seja lenta a hora da partida!
Noites sem luz, sem mel, sem fantasia!
Noites sem estudantes e sem flor!
Porto! — cidade pulmonar e fria
Que tens a força de negar ao dia
A medicina do amor!
Porto. Abril. Tantos de tal...
E continuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão...
Vela apagada ou acesa?
- Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar...
Aqui, onde esta noite nunca cessa,
Foi Miragaia a minha Madragoa.
Aqui, em frente ao rio, oiço a promessa
Do mar que ajoelha, enquanto me atordoa.
Aqui, sei onde sangra o lábio oculto.
De quem me vê, até de olhos fechados!
E, como os cegos, reconheço um vulto,
Pelo roçar dos dedos namorados...
Deviam chamar Pedro, em vez de Porto,
Ao burgo, se é tal qual do meu tamanho!
Aqui
Nasci,
Porém nasci já morto,
Imóvel, surdo, triste, mudo, estranho...
Deu-me Deus ele, apenas, por amigo.
Deitamo-nos, cismando, lado a lado...
Seu corpo, rijo e nu, dorme comigo.
Mas fico, entre os seus braços, acordado!
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci
- com os punhos cerrados de dor.)
Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.
Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.
Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.
E principalmente
não cheira a museu azedo
ou a musgo embalado
pela chuva na boca dos mortos.
Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.
Porto
- cidade de luz de granito.
Tristeza de luz viril
com punhos de grito.
Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.
e as luzes se reflectem na água.
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter…
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.
Sento-me então a olhar o rio,
os pensamentos formam cardumes
que contra a corrente se insurgem
mas as águas são inexoráveis;
olhando-as, a superfície cintila,
propaga-se como se fossem notas
de um piano na garupa de um cavalo
que se dirige para o mar.
O Douro bebe as cores da cidade,
sobre elas eu abro o coração
em que te encontras, as colinas
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos
é momento de pausa: as coisas
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar
como tudo o que a memória não reteve.
Mas este rio
já foi longamente folheado, nele
escrevemos
o romance que nos deu uma casa,
nos cortou o cabelo, nos afastou
das rugas, nos entregou o azul
(tecido, nuvem, divã, janela...)
o voo das artérias, lugar do corpo,
portas que amanhecem, espelho
onde fazemos fluir a vida.
Acordes
da guitarra que forja o horizonte,
que guia o sinuoso voo das gaivotas
e acaricia a pele que rasga atalhos
no interior dos sonhos. Estarei
vivo enquanto assim me guardar
teu coração. E no seu lucilar,
esta água imita o fogo
que devora sombras e escombros,
libertando a asa que no sangue
respira. A foz está próxima,
mas o horizonte é o teu olhar.
No leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajectória do seu alvo.
sob a tarde de verão, a água reflecte
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.
é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo
do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo
contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar
os jardins do crepúsculo aprendidos de cor.
além umas arcadas, um cais, o traço grosso a carvão
dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,
o deslizar da luz para poente, tudo
uma dramática placidez escurecendo a ribeira, um vidrado
de presenças esquecidas, palhetas de ouro fosco, sobre as barcaças
abandonadas, quase ao alcance da mão, da voz, da alma, é quando
a música há-de vir, lentamente elaborada na memória,
como um sopro da infância e do indizível do mundo.
são estes sons de nada, estes voos que perpassam,
estas estrias da sombra de ninguém
sobre o curso do rio, como nuvens para esta hora, a
encrespar-lhe de leve a superfície.
enquanto parte algum comboio atrasado,
um avião se esvai ao longe, os escritórios fecham,
quero um barco pequeno para a minha travessia,
para a minha chegada e para a minha partida,
para andar entre as margens ou seguir a corrente
até s. joão da foz ver as últimas gaivotas
ainda antes da noite, respirar um não sei quê que se desprende
da travessia, a atravessar-me,
halo vindo das camélias, perfume de penumbras
de mulher, ou para sempre e para nunca mais
um pó da lua na cantareira e na afurada
devagar a acender-se mais rente ao coração.
sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no
lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos
do silêncio. seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias
que ele havia de dizer por palavras no papel.
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.
era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam
a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia.
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.
Portu
gal de cinza e pedra, crista
de rio e mar. Canto (de pe
dra, ainda) escuro (escura).
garra de
semânticas asas. Porto
e navio de âncoras
erguidas,
soterradas.
Coração que do rio
o sangue e a música retira.
gaivota de pedra,
navio
e lira.
***
Vá comboio meu comboio
carrega na velocidade
pára só quando chegarmos
à cidade
Olá cidade do Porto
a lágrima ao canto do olho
estava fechada há que tempos
com um ferrolho
Custou tanto a chegar
mil e uma peripécias
quando menos se espera
o diabo tece-as
Ai eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
Mal chegado vislumbrei
dois amigos do alheio
vasculhando a minha caixa
do correio
Ah tratantes apanhei-vos
com a boca na botija
com certeza não esperam
que eu transija
Não é nada do que pensas
viemos trazer-te um recado
que nos foi entregue
por um embuçado
Ai eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer. Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.
O campo com castelo em ruínas e os patos no charco.
O banho
sob a ponte do Senhor Dom Luís a luta
espreitando da muralha. S. Jorge
S. Jorge por quem gritam os portugueses.
Foi uma cena devoniana de grande efeito
os peixes devorando o rei vindo de Itália
romântico
românticas são as cabras das Montanhas Rochosas
criaturas de Camilo fazendo comércio e indo
ainda hoje setembro de setenta e oito
de bigode encerado criada fardada levando o
carrinho de bebé
rodas altas capotinha azul.
A mulher envolta em rendas negras. Vão
jantar na varanda sobre o rio.
O cor de rosa os pequenos nevoeiros.
O Porto é descer descer até ao Douro e
o retrato de uma mulher tocando arco por
detrás de uma janela de Matosinhos
porque cinzentos eram os dias mais os poemas do Nobre.
Vou de azulejo em azulejo
não há nenhuma igreja nenhum café onde não
entre. O Porto mais as escadas da Lello
as calhas espaçadas dos eléctricos o galo azul
tão azul nas manhãs de S. Lázaro
no meio-dia dos passeios de tão azul o quero
pelos cinzentos dias.
Do azul da torbenite
crosta de prismas entrelaçados cidade
mais próxima da Primavera de Alice que de Lisboa
fica longe é imoral que lá não possas ir
ao menos ver Pousão e ouvir o bispo
merde pour celui qui ne le regarde point!
in Eugénio de Andrade, Daqui Houve Nome Portugal (Antologia)
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá resposta.
O empregado da Funerária
bebia a sexta cerveja dominical
ao balcão. Estávamos, por
bizarro que pareça, na Rua do Paraíso
e lia-se na montra vizinha
do fornecedor de urnas
(24 horas por dia), pintada
em letras douradas, a palavra
armador. Reparti a minha atenção
entre essa palavra e a cerveja alheia.
Viajei com a família
verbal: pelas armadas marítimas,
por ítacas, bojadores e gamas,
por elmos de quixote, toucados, presépios
e outra literatura, mas não consegui
fugir à extinção visível
do nível da cerveja no fino do
funcionário.
A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva
Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia
Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes
Não olhes para os rapazes
que é feio.
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2000, 1.ª ed.
Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes; a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.
A Albano Nogueira
Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra.
Imprecisamente,
como se a névoa fosse dos meus olhos,
vejo o casario e as luzes da outra margem do rio.
Mais à direita, ao longe,
são já da névoa a praia, o mar.
Ouve-se apenas o ronco do farol
- um som molhado.
Para o lado dos pinhais,
anda a bruma a fazer medo
e a pôr mais pressa nos passos de quem foge.
Não há luar, não há estrelas.
De novo, olho para o rio.
Não sei se o vejo:
anda a névoa, já, com ele,
e os meus olhos não dizem o que é bruma, o que é rio.
E ela não pára,
avança ao meu encontro.
Cerca-me.
E eu tenho, só,
orvalho nas árvores do jardim,
gotas de água que se partem na alameda,
o ar húmido que me trespassa,
o molhado ronco do farol,
os cabelos encharcados
e pensamentos de névoa...
Meu amor – assim começavam
quase sempre os poemas
de que menos conseguia gostar.
Mas é verdade (a verdade
e a retórica nunca se entenderam)
que um bando de gaivotas atravessa
o pouco céu que vai da Sé aos Clérigos.
Tu dormes; nunca estivemos aqui.
A cortina por levantar, de uma amarelo
duvidoso, a varanda sobre ruínas,
casas onde morou gente,
telhados abatidos que me servem
de cinzeiro. Tu dormes,
rosto abertamente escondido
sob lençóis brancos, almofadas
com brasão, espelhos dos anos vinte.
Não sabes, não sabemos, de melhor castelo.
Ignoras devagar os motivos que
em breve nos farão descer do quarto
209, Grande Hotel de Paris,
atentos aos primeiros sinais do nada.
E assim, meu amor, acaba este poema.
Se vieres dos lados da Ribeira,
depressa reparas como
os preços descem e a miséria
aumenta em esplanadas
de improviso, e ficam mais
tristes e humanas as janelas.
Chegaste a Miragaia
e quase não mentes
se lhe chamares destino.
a faço, sem projecto. Ímpar, traço
pedras gastas, e casas, nesse baço
regresso, quase espera, quando arde
ao longe, o quarto, e vão, trespasso
a carne, não de largo, que se fecha.
Um corpo será alvo porque deixa
aí, seu rasto. Que boca ou braço
é vento? Esparsa, a luz separa
a morte de seu laço; e já tal
olhar marca os modos e passagens
de manchas e perfis onde se pára.
Tão móveis são as formas que sinal
é o canto, possível, das imagens.
in Eugénio de Andrade, O Poeta e a Cidade (antologia)
criança na voz um planeta nos olhos
na outra tarde de terça-feira onde as
horas são poucas e os sentidos quem
castiga o corpo. que te ensinaria eu se
me falasses do tratado de Tordesilhas
entre a prosa e o verso? a alma é um
órgão ímpar e as amibas procriam sem
pecar (palavra de escuteiro). eu bem
vi ao caminhar ias confiando palavras à
branca página de terra castanha assim
como quem distraído vai escrevendo o
poema do outono de suas pegadas talvez
mesmo em S. Lázaro primavera
in Eugénio de Andrade, O Poeta e a Cidade (antologia)
As cartas que escrevi para a família
vão cinzentas de tédio,
minha noiva também vai estranhar
as palavras de água que lhe envio
como vós estranhais meus passos na cidade,
meus olhares que passeiam nas ruas sombrias
dos comércios modestos,
das casas de penhor, dos alfaiates pobres,
das capelistas com pústulas nas faces.
Não tenho nada para vos contar,
são coisas tão vulgares as que transporto
das minhas excursões sem companhia
que as guardo comigo.
Naquela rua estreita que desconheceis
chorava hoje a jovem empregada
de uma casa de louças.
Só eu passei na rua àquela hora
e ela corou quando vi suas lágrimas.
São histórias assim as que trazem os dias.
Amigos: este cigarro não resolve nada.
não tem cheiro a sul
e nem por ela passa o Tejo,
mas como ela, tem Nascentes
leitosos e marmóreos...
Na minha cidade os Poentes são de ouro
sobre o Douro e o mar
e só ela tem a luz do entardecer
a enfeitar o granito...
Na minha cidade, tal como em Lisboa
há gaivotas e maresia
mas não há cacilheiros no rio
há rabelos
transportando nectar e almas...
Da minha cidade nasce o Norte
alcantilado, insubmisso
e o sol, quando chega, penetra-a
delicadamente, carinhosamente,
depois de vencido o nevoeiro...
Na minha cidade também há pregões,
gatos, pombas, castanhas assadas e iscas
e fado pelas vielas, pendurado com molas,
como roupa a secar nos arames...
A minha cidade tem também tardes languescentes,
coretos nas praças
velhos jogando cartas em mesas de jardim
e o revivalismo de viúvas e solteironas
passeando de eléctrico...
É bem verdade que na minha cidade
a luz, não é como a de Lisboa
mas a luz da minha cidade
é um frémito de amor do astro-rei
a beijá-la na fronte, cada manhã!...
enegrecido pelo tempo,
o Porto com o seu mar
entrando pelo Douro dentro.
O Porto com suas varandas
de flores e ferro forjado,
de onde se vêem jardins
à espera de namorados.
O Porto com suas palavras
que sobem do coração,
o Porto com sua pronúncia
de quatro pedras na mão.
Ilustração de Helena Veloso
quando uma torre se levanta é para usar da palavra
traz algo nos lábios para dizer histórias
lembranças saudações augúrios
quando esta porém se erige acima de todos os coruchéus
acima dos outros campanários acima do nevoeiro
não estira apenas o pescoço da curiosidade
para saber se o rio que desliza no sonho dos séculos
vai vestido de azul ou de ouro
ou para espreitar os acenos brancos das velas dos rabelos
ou o sulco das outras embarcações
orador sagrado num púlpito excelso
ébrio da eloquência de um infinito azul
aponta o incomensurável como rumo
faz o panegírico da verticalidade
promete a bem-aventurança que mora no alto
sineira e crucífera deveria talvez
apetecer-lhe apenas a salvação das almas
mas esta torre granítica ereta acima das demais
já ali estava há muito de olhos postos no poente
vaticinando que seria do mar que chegaria
a auspiciosa palavra liberdade
semente sonhada de um paraíso terreno
chegou e logo chamaram invicta à cidade
a torre achando merecer também o epíteto
põe-se nos bicos dos pés de justificado orgulho
e cresce ainda um pouco mais
(OBS)CENA (RUA DE CEUTA / RUA JOSÉ FALCÃO)
é ali que o rio coagula por instantes
junto ao semáforo no topo da rua
a mulher planta a vara do corpo na margem
e não sei se é da boca se do avental
que retira pétalas obscenas
para as arremessar
é estranho vê-la desentranhar-se também
e esvaziar a seiva toda fel
para não ser mais que a sombra de um caule
os homens sorriem sem nada compreender
o sinal muda a cor sem nada compreender
o rio volta a fluir sem nada compreender
e a vara esguia esgueira-se
sem compreender que ninguém a compreenda
a rua rescende agora a flores pisadas
inutilmente venenosas
Mãe do olhar sem retorno
e da pedra levantada.
Mãe do embalo das águas
limando as arestas do cais.
Mãe dos barcos encalhados
nos baixios da memória.
Mãe dos muros, das colmeias,
do arco de ferro sombrio.
Mãe da luz e da neblina
e das águas sublevadas.
Mãe das refregas perdidas
e da dor dos afogados.
Mãe das vozes estridentes
e dos amantes sem horas.
Mãe dos velhos que beberam
a última gota de céu.
Mãe dos homens que partiram
e daqueles que voltaram.
Mãe das mulheres que acendem
o lume primeiro do dia.
Mãe dos meninos nascidos
da verde placenta do rio.
V. N. Gaia, Calendário das Letras, 2009
No rio mergulha
Seus cascos de granito
E sobe
A galope
Encosta arriba
Num salto a prumo
(Lá onde o casario morre)
Upa!
É uma torre
Torre de pedra e nuvem
De pássaro de fogo
De corpo de mulher
Torre de tudo e de quanto
O sonho
A palavra o canto
Pode e quer.
in Obra Completa, Porto, Campo das Letras, 1997
a tarde ruiva de olhos azulinos,
isto apesar de não ter feito nada
pois que guardou os ócios citadinos.
Foi para a Foz, levou a pequenada
para os folguedos próprios dos meninos,
e a certa altura estava tão corada
como quem bebe largos vinhos finos.
Agora esvai-se e mancha de vermelho
os vidros altos deste Porto velho
que muito preza as tardes domingueiras.
É que amanhã começa uma semana
de luta imensa e inveja e luta insana,
uma infernal semana de canseiras.
Porto, Papiro Editora, 2006
“O PORTO - poemário sobre a cidade invicta” in Folha
de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-11-2017. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/11/o-porto.html