domingo, 26 de novembro de 2017

O PORTO

poemário sobre a cidade invicta



"A minha relação com o Porto foi um casamento por conveniência que se transformou em amor à primeira vista", Agustina Bessa-Luís.





SAGA
Contornaram a terra, navegaram para o Sul e, ao cair de uma tarde, penetraram sob o arco das gaivotas, na barra estreita de um rio esverdeado e turvo, flutuante de imagens entre as margens cavadas. À esquerda, subindo a vertente, erguia-se o casario branco, amarelo e vermelho, misturado com os escuros granitos.
Na luz vermelha do poente a cidade parecia carregada de memórias, insondavelmente antiga, feérica e magnetizada, com todos os vidros das suas janelas cintilando. Animava-a uma veemência indistinta que aqui e além aflorava em ecos, rumores, perpassar de vultos, gritos longínquos e perdidos, reflexo de luzes sobre o rio.
Hans amou desde o primeiro momento a respiração rouca da cidade, o colorido intenso e sombrio, o arvoredo murmurante e espesso, o verde espelhado do rio. Na estrada que corria junto às margens viam-se bois enfeitados e vermelhos, puxando carros de madeira que chiavam sob o peso de pipas, pedra e areias. […]
Mas nessa madrugada, em segredo, Hans abandonou o navio. Caminhou ao acaso na cidade desconhecida, perdido no som das palavras estrangeiras, perdido na diferença dos sons, da luz, dos rostos e dos cheiros, carregando o seu pequeno saco, procurando nas ruas o lado da sombra. Através de grades de ferro pintadas de verde, espreitou o interior sussurrante de insondáveis jardins onde sob enormes arvoredos se abriam trémulos junquilhos. Parou em frente dos ourives para olhar as montras, à porta das adegas respirou a frescura sombria e o cheiro do vinho entornado. Caminhou ao longo do rio, na margem onde as mulheres, descalças, carregavam cestos de areia enquanto outras discutiam, aos magotes, cortando com grandes brados e largos gestos o ar liso da manhã. Penetrou nas igrejas de azulejo e talha que não eram claras e frias como as igrejas do seu país, mas doiradas e sombrias, numa penumbra trémula de velas onde negrumes e brilhos, animavam o rosto das imagens que num incerto sorriso pareciam reconhecê-lo. Dormiu nos degraus de uma escada, sob os arcos da praça, nos bancos do jardim público e as noites pareceram-lhe mornas e transparentes.

Sophia de Mello Breyner Andresen, “Saga” in Histórias da Terra e do Mar, 1972


João Fazenda, ilustração do conto "Saga" de Sophia de Mello Breyner Andresen

***



 PORTO SENTIDO
O poema é uma bela declaração de amor à cidade do Porto.
Quem vem e atravessa o rio,
junto à Serra do Pilar,
vê um velho casario
que se estende até ao mar.
- "Serra do Pilar- elevações frontais ao Porto, na outra margem do rio, junto às quais foi lançada a Ponte Luis I.
Quem te vê ao vir da Ponte
és cascata sanjoanina
erigida sobre um monte,
no meio da neblina,
por ruelas e calçadas,
da Ribeira até à Foz,
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.
- "(a) Ponte"- a Ponte Luis I.
- "cascata sanjoanina"- espécie de presépio, montado por altura das festas de S.João, tipicamente constituído por uma estrutura em degraus com uma imagem do patrono na plataforma mais alta. Tradição ainda viva semelhante à tradição lisboeta, hoje quase desaparecida, do trono de S.António.
- "a Ribeira"- zona típica do Porto, junto ao Douro, parte do Centro Histórico.


Esse teu ar grave e sério
dum rosto de cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria.
- "rosto de cantaria"- humanização das fachadas de granito cinzento característico do Porto.


Ver-te assim abandonado
nesse timbre pardacento,
nesse teu jeito fechado
de quem mói um sentimento...
e é sempre a primeira vez,
em cada regresso a casa,
rever-te nessa altivez
de milhafre ferido na asa.

Carlos Tê
- "de quem mói um sentimento"- de quem guarda para si um sentimento.
- "nessa altivez de milhafre ferido na asa"- imagem de orgulho na adversidade.

Notas de João Manuel Mimoso, Lisboa, 2007-06-21
https://www.inverso.pt/poesia/textos/Porto_Sentido.htm





***

 
TODOS POR UM

A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a ponto de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.


Mário Cesariny


***



Nasci no Porto, a cidade e seus arredores
As praias próximas, descendo para sul
Permanecem para mim a pátria dentro da pátria,
A terra materna,
O lugar primordial que me funda...
Porque nasci no Porto sei o nome
Das flores e das árvores
E não escapo a um certo bairrismo.
Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen


***

Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.
Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.
Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do inverno.
Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.
Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.
Porque ali é o lugar onde para mim começaram todos os maravilhamentos e todas as angústias.
Cidade onde sonhei cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.
Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.
Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.
Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.
Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. […]
Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Eugénio de Andrade,
Daqui Houve Nome Portugal, Antologia de verso e prosa sobre o Porto

(Disponível também em A fonte: fonte de estímulo intelectual n.º 12, dir. Armando Coelho. Porto, Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes, 2006, p. 30)



Nasci no Porto.
Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias. Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno. Ali, o cais da Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo um rosto emergindo do fundo do mar da vida. Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e angústias.
Cidade onde sonhei as cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência. Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja do Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados. Através das grades de ferro dos portões viam-se redodendros, buxos, cameleiras. Depois surgia o rio e ao longo do rio caminhava sobre a balaustrada de pedra, até à barra até aos rochedos onde saltam as ondas. [...]
E o Porto onde vivi a adolescência e, em parte a juventude foi também a cidade onde encontrei uma cultura que não vivia ao sabor do tempo e da moda. Ouvíamos Mahler muito antes de Mahler estar na moda. Estávamos longe de grupos literários. Falávamos pouco ou nada de avant-garde. Líamos tanto o Proust. Líamos as Canções de Amigo, Horácio, Goethe, Rilke, Lorca. Os concertos eram longamente escutados, religiosamente recordados.
Sem dúvida a cidade tinha as suas convenções, estreitezas e praxes. Mas em contrapartida o cabonitismo e o arrivismo eram coisas raras. Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo, mas escapei ao provincianismo da capital".

Sophia de Mello Breyner Andresen, Do espólio a abrir ao público em 2016 (cedido pela família e publicado na revista Ler)

***



O PORTO É SÓ...
O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar. 
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Victor correndo nos sulcos da sua melancolia. 
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, procurando assim parecer-me cada vez mais com a terra obscura do meu próprio rosto. 
Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala poise aqui, por ser tão branca. 

Eugénio de Andrade, 1979
***



A CIDADE E A POESIA

As cidades são como as pessoas, têm os seus segredos, e às vezes guardam-nos bem guardados. Há quem goste muito do Porto e há quem o deteste. Queria falar desta cidade "tão masculina" sem nenhum peso de erudição, que é coisa tão inimiga da poesia, que só Borges, que eu saiba, lhe conseguiu arrancar alguns versos dignos da sua prosa. Também não me parece leal contrapor-lhe outras cidades, e menos ainda Ve­neza. Toda a gente sabe que se Veneza não cheirasse a água podre seria incomparável, mas cheiro por cheiro antes o de Marraquexe; Marraquexe cheira a cavalos, que é cheiro de homem. Há quem goste do Porto, dizia eu; Marguerite Yourcenar — ninguém sabe, porque foi a mim que o disse — andou por aqui dois dias fascinada com a Ribeira e as encostas da Sé. Isto de gostar não tem explicação fácil. O mais simples é, se nos pedem razões, dizê-lo com as palavras de Montaigne:Parce que c'était lui, parce que c'était moi. Mas não só o amor tem estranhos mecanismos, os do ódio não lhe ficam atrás.
Há anos li muita coisa sobre o Porto, não tive outro remédio, fiz sobre ele uma antologia que circula por aí. Nessa altura deparei com coisas tão acintosas que fui levado a pensar em ressentimentos. Algumas daquelascoisas eram escritas com dor de corno. Camilo, Eça, Antero, Nobre, Pascoaes detestavam-no. "A sentina é aqui", dizia Camilo num vómito. "Pançudo e pesado", é o Eça a falar, enquanto entala o monóculo. "O Porco", afirma Antero que lhe chamava Oliveira Martins. "Tão carregado de província que nem os arredores de Braga", diz, já mais perto de nós, Pascoaes em O Peni­tente. E sigo, que o meu destino é outro. Mas o burgo também tem quem lhe faça a corte: Jaime Cortezão, Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís gostam dele, como testemunharam de muitos modos. Agustina é no nosso tempo o seu cro­nista, e cronista admirável, nunca é demais repeti-lo, pois há sempre quem o não saiba; quanto ao seu poeta, ainda não lhe disse o nome, e vai sendo tempo: Pedro Homem de Mello. Caiu sobre ele, desde que morreu, um estranhíssimo silêncio. Eu estou pouco a par dessa coisas, há muitos anos que não leio jornais, mas creio que não há um beco ou uma viela com o seu nome. Nem sequer uma escola ou um jardim de infância. Qual foi o agravo que fez à cidade onde nas­ceu? Não era um grande poeta? Pois não, mas os grandes poetas são tão raros! Na geração que foi a dele — a do Segundo Modernismo, como se lhe vem cha­mando — quem, além de Vitorino Nemésio, é grande poeta? A sua poesia era muito irregular? Sem dúvida, mas irregular, que poeta o não foi neste país? Veja-se o Gomes Leal, com quem o Pedro tem afinidades, ou até poetas de outras dimensões, o Nobre, o Pascoaes, o Sena. Estamos pois de acordo: nem grande poeta nem espírito crítico capaz de corrigir as emoções – mas era um poeta, e também não há tantos como isso, ao contrário do que se diz. O que há muito entre nós é literatos, gente em que sobra espírito e falta alma. Ocorre-me Flaubert: Ah! Ah! les gens d'esprit, quels pauvres gens cela fait! Como principiei por afirmar e ele tinha consciência e orgulho disso — Pedro Homem de Mello é, como nenhum outro, o poeta do Porto, das suas ruas escuras, dos seus jardins "de má fama", dos seus palácios em ruína, das suas torres de face encardida, das grades frias dos seus aljubes, do luto entranhado dos seus habitantes, e também da sua estreiteza conservadora, do seu grosseiro espírito de ganância; de tudo isto ele era o poeta, como era também aquele de quem os juízes e tabeliães e bem pensantes faziam troça, os políticos malevolamente se aproveitavam, e a gente anónima respeitava, porque, apesar do brasão ostensivo no dedo e algum snobismo, tinha sempre um sorriso ou uma palavra afável para o cobrador do eléctrico ou para o engraxador; pois apesar de ser um senhorito da televisão, visitava os amigos com moços sem eira nem beira, que levava para os seus versos, e que, à semelhança de Kavafís, são os melhores que escreveu.
Apesar de Pedro Homem de Mello ter feito tanto frete ao SNI, e escrever versos que eram uma merda pedindo o voto em Salazar, e outros igualmente excrementícios para o Menino Jesus dos Correios todos os anos pelo Natal, ele nunca tinha cheta, nem sabia de usura, nem atraiçoava os amigos — amava a poesia de Verlaine e António Nobre, o nosso Romanceiro e o de Lorca, de que herdou ritmos e segredos; dançava o vira, ou lá o que era, como ninguém; gostava daquela gente da Serra d'Arga e da Nazaré, que lhe pagava na mesma moeda; e os versos que escreveu, às vezes, também têm a ver com o movimento soberbo daque­les braços erguidos e daquelas cinturas queimando os dedos de quem as tocava, ou então com os olhos turvos que se cruzavam com os seus na Cordoaria, e lhe arripiavam a pele ou paralisavam os passos — porque a sua poesia, não vale a pena ocultá-lo, partia dali, de todos os sentidos despertos, que nele deviam ser mais de cinco. E quando os seus versos não têm essa origem o melhor é ignorá-los, porque então raramente ultra­passam a mais convencional e rasteira prosa metrifi­cada. "Quando penso que tenho que pensar fico com dores de cabeça", disse-me ele um dia — e devia dizer a verdade.
O Pedro, apesar dos universos divergentes, e não apenas mentais, a que eu e ele pertencíamos, foi meu amigo. Imaginem: amigo de quem é tão distraído e distante para as coisas literárias e, ainda por cima, sem paciência nenhuma para aquele exibicionismo pueril de poemas lidos na rua ou à mesa do café, e por ele, que os lia tão mal, tão mal... Mas era gentil e generoso e bem educado, coisas em que minha mãe reparou logo quando o conheceu, numa das suas vindas ao Porto. Ocorre-me agora que, um ou dois dias depois, o Pedro passou pelos Serviços onde eu trabalhava só para me dizer:
— A tua mãe é linda!
Era a primeira vez que estava inteiramente de acordo com ele.

Eugénio de Andrade, A Cidade de Garrett. Porto, Fundação Eugénio de Andrade,1993


Eugénio de Andrade




O LUGAR DA CASA

Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
Eugénio de Andrade
O poema refere-se ao local onde viveu
Eugénio de Andrade no Passeio Alegre.




RUA DUQUE DE PALMELA 111

Pelo lado dos lódãos ao fim do dia
depressa se chega agora no verão
à pedra viva do silêncio
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio.

Eugénio de Andrade
O título do poema refere-se ao número da casa onde
viveu o autor antes de ir morar para o Passeio Alegre.

***



BALADA DO RIO DOURO

Que diz além, além entre montanhas,
O rio Doiro à tarde, quando passa?
Não há canções mais fundas, mais estranhas,
Que as desse rio estreito de água baça!...
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade?
Ó ruas torturadas e compridas,
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade
Onde as veias são ruas com mil vidas?...
Em seus olhos de pedra tão escuros
Que diz ao vê-lo a Sé, quase sombria?
E a tão negra muralha à luz do dia?
E as ameias partidas sobre os muros?
Vergam-se os arcos gastos da Ribeira...
Que triste e rouca a voz dos mercadores!...
Chegam barcos exaustos da fronteira
De velas velhas, já multicolores...
Sinos, caixões, mendigos, regimentos,
Mancham de luto o vulto da cidade...
Que diz o rio além? Por que não há-de
Trazer ao burgo novos pensamentos?
Que diz o rio além? Ávido, um grito
Surge, por trás das aparências calmas...
E o rio passa torturado, aflito,
Sulcando sempre o seu perfil nas almas!...
Pedro Homem de Mello, Poesias Escolhidas

***



HINO AO PORTO

Cidade em que as burguesas vão à missa
Vestidas de vermelho carmesim.
Em vão, a luz, sobre elas, se espreguiça...
(As mães, pelo caminho, ao vir da missa
Proíbem-lhes os bancos do jardim...)

Não há fidalgos hoje. Há comerciantes.
É deles todo o ar que se respira!
Noites sem flor, sem luz, sem estudantes
E sem guitarras e sem mentira!

Para sentir o mar, o rio eterno
Cava, connosco, a rocha que dormia
E deita-se connosco, na alegria
De imaginar o céu, calcando o inferno.

Na rua escura as lojas de oiro e pano
São pedras frias, frígidas mas quietas.
Ó frios mercadores de oiro e pano
Porto! Mercado frio e desumano...
E no entanto ali é que há Poetas!

Lutar! — é o verbo. — Não morrer — é a vida.
Mas em surgindo a morte, que na estrada
Os ombros verguem sob a urna pesada
E seja lenta a hora da partida!

Noites sem luz, sem mel, sem fantasia!
Noites sem estudantes e sem flor!
Porto! — cidade pulmonar e fria
Que tens a força de negar ao dia
A medicina do amor!
Pedro Homem de Mello, Bodas Vermelhas

***


CARTA A EUGÉNIO DE ANDRADE

Porto. Abril. Tantos de tal...
E continuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão...
Vela apagada ou acesa?
- Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar...

Pedro Homem de Mello, Poesias Escolhidas

***


MIRAGAIA

Aqui, onde esta noite nunca cessa,
Foi Miragaia a minha Madragoa.
Aqui, em frente ao rio, oiço a promessa
Do mar que ajoelha, enquanto me atordoa.

Aqui, sei onde sangra o lábio oculto.
De quem me vê, até de olhos fechados!
E, como os cegos, reconheço um vulto,
Pelo roçar dos dedos namorados...

Deviam chamar Pedro, em vez de Porto,
Ao burgo, se é tal qual do meu tamanho!
Aqui

Nasci,
Porém nasci já morto,
Imóvel, surdo, triste, mudo, estranho...

Deu-me Deus ele, apenas, por amigo.
Deitamo-nos, cismando, lado a lado...

Seu corpo, rijo e nu, dorme comigo.
Mas fico, entre os seus braços, acordado!

Pedro Homem de Mello, Poesias Escolhidas




(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci
- com os punhos cerrados de dor.)


Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou a musgo embalado
pela chuva na boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
- cidade de luz de granito.
Tristeza de luz viril
com punhos de grito.

José Gomes Ferreira, Comboio

METAMORFOSE

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.
Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.
E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter…
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.

Jorge de Sena, 25/10/1942




        A BUCÓLICA MARGEM

        Sento-me então a olhar o rio,
        os pensamentos formam cardumes
        que contra a corrente se insurgem
        mas as águas são inexoráveis;
        olhando-as, a superfície cintila,
        propaga-se como se fossem notas
        de um piano na garupa de um cavalo
        que se dirige para o mar.

        O Douro bebe as cores da cidade,
        sobre elas eu abro o coração
        em que te encontras, as colinas
        emolduram as raízes que à terra
        nos ligam. Para os meus olhos
        é momento de pausa: as coisas
        que interrogo não resistem à maré,
        não dão respostas; perdem-se no mar
        como tudo o que a memória não reteve.

        Mas este rio
        já foi longamente folheado, nele
        escrevemos
        o romance que nos deu uma casa,
        nos cortou o cabelo, nos afastou
        das rugas, nos entregou o azul
        (tecido, nuvem, divã, janela...)
        o voo das artérias, lugar do corpo,
        portas que amanhecem, espelho
        onde fazemos fluir a vida.
        Acordes
        da guitarra que forja o horizonte,
        que guia o sinuoso voo das gaivotas
        e acaricia a pele que rasga atalhos
        no interior dos sonhos. Estarei
        vivo enquanto assim me guardar
        teu coração. E no seu lucilar,
        esta água imita o fogo
        que devora sombras e escombros,
        libertando a asa que no sangue
        respira. A foz está próxima,
        mas o horizonte é o teu olhar.
        No leitor do carro, a guitarra flexível
        sublinha o que divago; os acordes
        disparam,
        encontram-me na trajectória do seu alvo.

Egito Gonçalves, A Ferida Amável

***

visto da margem sul do rio o porto não explode
sob a tarde de verão, a água reflecte
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.

é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo
do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo
contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar
os jardins do crepúsculo aprendidos de cor.

além umas arcadas, um cais, o traço grosso a carvão
dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,
o deslizar da luz para poente, tudo
uma dramática placidez escurecendo a ribeira, um vidrado

de presenças esquecidas, palhetas de ouro fosco, sobre as barcaças
abandonadas, quase ao alcance da mão, da voz, da alma, é quando
a música há-de vir, lentamente elaborada na memória,
como um sopro da infância e do indizível do mundo.

são estes sons de nada, estes voos que perpassam,
estas estrias da sombra de ninguém
sobre o curso do rio, como nuvens para esta hora, a
encrespar-lhe de leve a superfície.

enquanto parte algum comboio atrasado,
um avião se esvai ao longe, os escritórios fecham,
quero um barco pequeno para a minha travessia,
para a minha chegada e para a minha partida,

para andar entre as margens ou seguir a corrente
até s. joão da foz ver as últimas gaivotas
ainda antes da noite, respirar um não sei quê que se desprende
da travessia, a atravessar-me,

halo vindo das camélias, perfume de penumbras
de mulher, ou para sempre e para nunca mais
um pó da lua na cantareira e na afurada
devagar a acender-se mais rente ao coração.

Vasco da Graça Moura, Poesias 1997/2000. Lisboa, Círculo de Leitores

***

EUGÉNIO E OS PINTORES

sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no

lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos

do silêncio. seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias

que ele havia de dizer por palavras no papel.
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.

era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam

a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia.
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.

Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Círculo de Leitores
***

PORTO

Portu
gal de cinza e pedra, crista
de rio e mar. Canto (de pe
dra, ainda) escuro (escura).
garra de
semânticas asas. Porto
e navio de âncoras
erguidas,
soterradas.

Albano Martins

***

PORTO 2

Coração que do rio
o sangue e a música retira.
gaivota de pedra,
navio
e lira.

Albano Martins
***


O PORTO AQUI TÃO PERTO

Vá comboio meu comboio
carrega na velocidade
pára só quando chegarmos
à cidade

Olá cidade do Porto
a lágrima ao canto do olho
estava fechada há que tempos
com um ferrolho

Custou tanto a chegar
mil e uma peripécias
quando menos se espera
o diabo tece-as

Ai eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto

Mal chegado vislumbrei
dois amigos do alheio
vasculhando a minha caixa
do correio

Ah tratantes apanhei-vos
com a boca na botija
com certeza não esperam
que eu transija

Não é nada do que pensas
viemos trazer-te um recado
que nos foi entregue
por um embuçado

Ai eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto

Sérgio Godinho

***

Shakespeare podia ter vivido aqui. Podia
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer. Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.

Nuno Júdice

***

Era um galo azul na manhã do Porto.
O campo com castelo em ruínas e os patos no charco.
O banho
sob a ponte do Senhor Dom Luís a luta
espreitando da muralha. S. Jorge
S. Jorge por quem gritam os portugueses.

Foi uma cena devoniana de grande efeito
os peixes devorando o rei vindo de Itália
romântico
românticas são as cabras das Montanhas Rochosas
criaturas de Camilo fazendo comércio e indo
ainda hoje setembro de setenta e oito
de bigode encerado criada fardada levando o
carrinho de bebé
rodas altas capotinha azul.
A mulher envolta em rendas negras. Vão
jantar na varanda sobre o rio.
O cor de rosa os pequenos nevoeiros.

O Porto é descer descer até ao Douro e
o retrato de uma mulher tocando arco por
detrás de uma janela de Matosinhos
porque cinzentos eram os dias mais os poemas do Nobre.
Vou de azulejo em azulejo
não há nenhuma igreja nenhum café onde não
entre. O Porto mais as escadas da Lello
as calhas espaçadas dos eléctricos o galo azul
tão azul nas manhãs de S. Lázaro
no meio-dia dos passeios de tão azul o quero
pelos cinzentos dias.

Do azul da torbenite
crosta de prismas entrelaçados cidade
mais próxima da Primavera de Alice que de Lisboa
fica longe é imoral que lá não possas ir
ao menos ver Pousão e ouvir o bispo

merde pour celui qui ne le regarde point!

João Miguel Fernandes Jorge,
in Eugénio de Andrade, Daqui Houve Nome Portugal (Antologia)




O Porto é uma menina a falar-me de outra idade.
Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz
de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou
um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes
de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos.
Entre mim e o Porto, existem milímetros que são
muito maiores do que quilómetros, mesmo quando
os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos
lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto,
deitados na cama, a respirar, transpirados e nus?
Eis uma pergunta que nunca terá resposta.


José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis, Quasi Edições.

***

PORTO

Então, eu comia o Porto. Ali à beira do Douro, abria a boca e enchia-a com o Porto. Pousava-o sobre a língua e mastigava-o com cuidado, para não causar estragos na Torre dos Clérigos, no Pavilhão Rosa Mota ou na estátua do leão e da águia da Boavista. Os portuenses haviam de acreditar que o céu da minha boca era um dia de outono nublado e continuariam a fazer a sua vida normal, voltariam para casa à hora certa do relógio de pulso e os autocarros continuariam a subir e a descer os Aliados sem perturbação. O momento de engolir o Porto seria sereno para a cidade e, para mim, seria o instante em que a memória do seu gosto se tornaria efectiva. O Porto não saberia a molho de francesinha, muito menos a tripas ou a vinho doce, teria um gosto composto por múltiplo, intenso e contraditório, composto por perífrase, hipérbole e oximoro. Eu fechava os olhos, claro, para sentir analiticamente o gosto do Porto. Passava bastante tempo assim, o silêncio tinha vagar para rodear-me.

Sentia todo o caminho do Porto através da minha garganta. Haveria de lembrar-me de goles de água no verão, o fresco da água a descer por mim como uma onda de temperança. Nesse túnel, o Porto, com os seus estádios, com o mercado do Bolhão, haveria de fluir imperturbável, mais lento e justo do que um rio grande, atravessado por pontes de ferro projectadas por Gustave Eiffel. Eu não haveria de me engasgar com o Porto, nem sequer me lembraria dessa possibilidade, nem sequer a consideraria. Seria capaz de respirar grandes volumes de ar fresco e limpo, seria capaz de respirar uma tarde inteira ou, mesmo uma primavera inteira, uma infância inteira. Para o Porto, esse caminho no interior da minha garganta seria menos do que uma brisa. Talvez alguns portuenses, os mais sensíveis à humidade, subissem a gola do casaco por instantes, talvez quisessem cobrir o pescoço, sentir tecido na pele fina do pescoço. O carros continuariam a parar nos sinais vermelhos e a avançar nos sinais verdes, continuariam a encaracolar-se pelos caminhos do silo de estacionamento ou, na rua, continuariam a seguir as indicações de um arrumador com barba, vestido com casacos sobrepostos.

O Porto chegava-me ao estômago à hora certa do entardecer. A tranquilidade seria inquestionável. Todos os poetas da cidade haveriam de ter um acesso súbito de inspiração. O meu estômago não precisava de se dilatar, barrigada, para ser capaz de acolher toda a cidade num plano horizontal, nivelado ao milímetro pelos desníveis habituais das suas ruas e avenidas. Quem estivesse a descer até à Foz, continuaria passo após passo; quem estivesse a subir até ao Marquês, continuaria passo após passo. As gaivotas planariam voltas perfeitas dentro do meu estômago e, assim, seriam capazes de puxar a noite. Chegaria devagar, ao ritmo intermitente das luzes que se começariam a acender na Baixa.

Por acaso simbólico, a absorção começaria precisamente à hora de jantar. As casas, o ar, as ruas, os viadutos, as montras, os jardins, as pessoas, os carros, as palavras, a pronúncia, os monumentos seriam gradualmente absorvidos pelas paredes do estômago. Atravessá-las-iam como uma sombra que fosse progredindo sobre a cidade, como uma maré de nuvens que fosse tapando a lua e as estrelas, uma a uma. Todos os elementos sólidos e não sólidos da cidade, mesmo os invisíveis, transformar-se-iam em carne, na minha carne, no meu sangue a correr pelas minhas veias e a atravessar-me desde a ponta dos dedos, os mesmos que carregam nestas teclas, até às pequenas artérias que irrigam os meus olhos, o meu cérebro. O Porto seria oxigenado pelos meus pulmões, passaria pelo meu ventrículo esquerdo e, depois, pela aorta. A zona das Antas seria uma extensão da minha pele, a Sé também. Quando eu tocasse alguma coisa, quando segurasse um livro ou ouvisse uma canção, só seria capaz de fazê-lo através do Porto. Na verdade, nem eu próprio seria capaz de distinguir-me do Porto. Seria capaz de dizer "o Porto", seria capaz de dizer "eu", mas apenas o faria por preguiça analítica, por mecanismo desonesto de esquematização. Essa mentira seria fácil de desmascarar em cada palavra dita, escrita, em cada silêncio, porque se eu articulasse um som mínimo, seria o Porto que o estaria a dizer; se eu escrevesse uma letra, seria o Porto a escolhê-la; se eu permanecesse quieto, a olhar para a distância e a pensar em imagens de tempos passados, seria o Porto que existiria no meu lugar, a lembrar-se de dias, passados neste ou noutro século.

José Luís Peixoto, in Abraço, 18-03-2011

***

ARTES FINAIS

O empregado da Funerária
bebia a sexta cerveja dominical
ao balcão. Estávamos, por
bizarro que pareça, na Rua do Paraíso
e lia-se na montra vizinha
do fornecedor de urnas
(24 horas por dia), pintada
em letras douradas, a palavra
armador. Reparti a minha atenção
entre essa palavra e a cerveja alheia.
Viajei com a família
verbal: pelas armadas marítimas,
por ítacas, bojadores e gamas,
por elmos de quixote, toucados, presépios
e outra literatura, mas não consegui
fugir à extinção visível
do nível da cerveja no fino do
funcionário.

Inês Lourenço, Logros Consentidos, Ed.& etc

***

RUA DE CAMÕES

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

Inês Lourenço, Um Quarto com Cidades ao Fundo,
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2000, 1.ª ed. 

***

HORA DE PONTA

Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes; a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.

Rosa Alice Branco, Da Alma e dos Espíritos Animais

***

NÉVOA
                                            A Albano Nogueira

Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra.

Imprecisamente,
como se a névoa fosse dos meus olhos,
vejo o casario e as luzes da outra margem do rio.
Mais à direita, ao longe,
são já da névoa a praia, o mar.
Ouve-se apenas o ronco do farol
- um som molhado.
Para o lado dos pinhais,
anda a bruma a fazer medo
e a pôr mais pressa nos passos de quem foge.

Não há luar, não há estrelas.
De novo, olho para o rio.
Não sei se o vejo:
anda a névoa, já, com ele,
e os meus olhos não dizem o que é bruma, o que é rio.
E ela não pára,
avança ao meu encontro.

Cerca-me.
E eu tenho, só,
orvalho nas árvores do jardim,
gotas de água que se partem na alameda,
o ar húmido que me trespassa,
o molhado ronco do farol,
os cabelos encharcados
e pensamentos de névoa... 

Alberto de Serpa, Descrição

***




SHE LIVES BY THE CASTLE

Meu amor – assim começavam
quase sempre os poemas
de que menos conseguia gostar.
Mas é verdade (a verdade
e a retórica nunca se entenderam)
que um bando de gaivotas atravessa
o pouco céu que vai da Sé aos Clérigos.

Tu dormes; nunca estivemos aqui.
A cortina por levantar, de uma amarelo
duvidoso, a varanda sobre ruínas,
casas onde morou gente,
telhados abatidos que me servem
de cinzeiro. Tu dormes,
rosto abertamente escondido
sob lençóis brancos, almofadas
com brasão, espelhos dos anos vinte.

Não sabes, não sabemos, de melhor castelo.
Ignoras devagar os motivos que
em breve nos farão descer do quarto
209, Grande Hotel de Paris,
atentos aos primeiros sinais do nada.

E assim, meu amor, acaba este poema.

Manuel de Freitas, Qui passe, for my Ladye, edição do Autor, Lisboa, 2005.

***

RUA DE MIRAGAIA

Se vieres dos lados da Ribeira,
depressa reparas como
os preços descem e a miséria
aumenta em esplanadas
de improviso, e ficam mais
tristes e humanas as janelas.

Chegaste a Miragaia
e quase não mentes
se lhe chamares destino.

Manuel de Freitas, Intermezzi, op. 25

***

Cedofeita: a passo, cada tarde
a faço, sem projecto. Ímpar, traço
pedras gastas, e casas, nesse baço
regresso, quase espera, quando arde

ao longe, o quarto, e vão, trespasso
a carne, não de largo, que se fecha.
Um corpo será alvo porque deixa
aí, seu rasto. Que boca ou braço

é vento? Esparsa, a luz separa
a morte de seu laço; e já tal
olhar marca os modos e passagens

de manchas e perfis onde se pára.
Tão móveis são as formas que sinal
é o canto, possível, das imagens.

Diogo Alcoforado,
in Eugénio de Andrade, O Poeta e a Cidade (antologia)




tenho a certeza que eras tu com uma
criança na voz um planeta nos olhos
na outra tarde de terça-feira onde as

horas são poucas e os sentidos quem
castiga o corpo. que te ensinaria eu se
me falasses do tratado de Tordesilhas
entre a prosa e o verso? a alma é um

órgão ímpar e as amibas procriam sem
pecar (palavra de escuteiro). eu bem
vi ao caminhar ias confiando palavras à
branca página de terra castanha assim

como quem distraído vai escrevendo o
poema do outono de suas pegadas talvez
mesmo em S. Lázaro primavera

João Luís Barreto Guimarães
in Eugénio de Andrade, O Poeta e a Cidade (antologia)


Não vai servir de nada este cigarro, amigos.
As cartas que escrevi para a família
vão cinzentas de tédio,
minha noiva também vai estranhar
as palavras de água que lhe envio
como vós estranhais meus passos na cidade,
meus olhares que passeiam nas ruas sombrias
dos comércios modestos,
das casas de penhor, dos alfaiates pobres,
das capelistas com pústulas nas faces.
Não tenho nada para vos contar,
são coisas tão vulgares as que transporto
das minhas excursões sem companhia
que as guardo comigo.
Naquela rua estreita que desconheceis
chorava hoje a jovem empregada
de uma casa de louças.
Só eu passei na rua àquela hora
e ela corou quando vi suas lágrimas.
São histórias assim as que trazem os dias.
Amigos: este cigarro não resolve nada.

António Rebordão Navarro

***

A minha cidade não se chama Lisboa,
não tem cheiro a sul
e nem por ela passa o Tejo,
mas como ela, tem Nascentes
leitosos e marmóreos...
Na minha cidade os Poentes são de ouro
sobre o Douro e o mar
e só ela tem a luz do entardecer
a enfeitar o granito...
Na minha cidade, tal como em Lisboa
há gaivotas e maresia
mas não há cacilheiros no rio
há rabelos
transportando nectar e almas...
Da minha cidade nasce o Norte
alcantilado, insubmisso
e o sol, quando chega, penetra-a
delicadamente, carinhosamente,
depois de vencido o nevoeiro...
Na minha cidade também há pregões,
gatos, pombas, castanhas assadas e iscas
e fado pelas vielas, pendurado com molas,
como roupa a secar nos arames...
A minha cidade tem também tardes languescentes,
coretos nas praças
velhos jogando cartas em mesas de jardim
e o revivalismo de viúvas e solteironas
passeando de eléctrico...
É bem verdade que na minha cidade
a luz, não é como a de Lisboa
mas a luz da minha cidade
é um frémito de amor do astro-rei
a beijá-la na fronte, cada manhã!...

Maria Mamede (Pseudónimo literário de Maria do Céu Silva Fernandes, nasceu em 1947 em S. Mamede de Infesta.) http://mulher50a60.weblog.com.pt/arquivo/2005/01/a_minha_cidade.html



CANÇÃO

O Porto com seu granito
enegrecido pelo tempo,
o Porto com o seu mar
entrando pelo Douro dentro.

O Porto com suas varandas
de flores e ferro forjado,
de onde se vêem jardins
à espera de namorados.

O Porto com suas palavras
que sobem do coração,
o Porto com sua pronúncia
de quatro pedras na mão.

João Pedro Mésseder, Porto Porto
Ilustração de Helena Veloso
Destacam-se os azulejos no granito,
mais ainda quando a morrinha cai
sobre os Leões. Nos Poveiros o fumo
das castanhas lembra a tal Mamuda
− sai um polvo frito!
O Outro suspirava, naquela ingenuidade:
berlindes do Campo Alegre ou de São Lázaro.
Procura nos bolsos o balandrau clássico,
às Belas Artes, um texto à maneira
dos sonetos de Sena – Arca d’Água.
Desliza, solitário, do Majestic aos Clérigos,
e, ao olhar a catedral – a Lello
– lê nos verbetes da enciclopédia inacabada
o teu nome de menina: já sorri.

Eduardo Guerra Carneiro, A Noiva das Astúrias, Lisboa, &etc, 2001


***





TORRE DOS CLÉRIGOS

quando uma torre se levanta é para usar da palavra
traz algo nos lábios para dizer    histórias
lembranças   saudações   augúrios

quando esta porém se erige acima de todos os coruchéus
acima dos outros campanários   acima do nevoeiro
não estira apenas o pescoço da curiosidade
para saber se o rio que desliza no sonho dos séculos
vai vestido de azul ou de ouro
ou para espreitar os acenos brancos das velas dos rabelos
ou o sulco das outras embarcações

orador sagrado num púlpito excelso
ébrio da eloquência de um  infinito azul
aponta o incomensurável como rumo
faz o panegírico da verticalidade
promete a bem-aventurança que mora no alto

sineira e crucífera deveria talvez
apetecer-lhe apenas a salvação das almas
mas esta torre granítica ereta acima das demais
já ali estava há muito de olhos postos no poente
vaticinando que seria do mar que chegaria
a auspiciosa palavra liberdade
semente sonhada de um paraíso terreno

chegou e logo chamaram invicta à cidade

a torre achando merecer também o epíteto
põe-se nos bicos dos pés de justificado orgulho
e cresce ainda um pouco mais

Anthero Monteiro
http://pracadapoesia.blogspot.pt/2012/08/torre-dos-clerigos.html


***


(OBS)CENA (RUA DE CEUTA / RUA JOSÉ FALCÃO)

é ali que o rio coagula por instantes

junto ao semáforo no topo da rua

a mulher planta a vara do corpo na margem
e não sei se é da boca se do avental
que retira pétalas obscenas
para as arremessar

é estranho vê-la desentranhar-se também
e esvaziar a seiva toda fel
para não ser mais que a sombra de um caule

os homens sorriem sem nada compreender
o sinal muda a cor sem nada compreender
o rio volta a fluir sem nada compreender
e a vara esguia esgueira-se
sem compreender que ninguém a compreenda

a rua rescende agora a flores pisadas
inutilmente venenosas


Anthero Monteiro 
http://pracadapoesia.blogspot.pt/2010/03/obscena-rua-de-ceuta-rua-jose-falcao.html


***


RIBEIRA

Mãe do olhar sem retorno
e da pedra levantada.
Mãe do embalo das águas
limando as arestas do cais.
Mãe dos barcos encalhados
nos baixios da memória.
Mãe dos muros, das colmeias,
do arco de ferro sombrio.
Mãe da luz e da neblina
e das águas sublevadas.
Mãe das refregas perdidas
e da dor dos afogados.
Mãe das vozes estridentes
e dos amantes sem horas.
Mãe dos velhos que beberam
a última gota de céu.
Mãe dos homens que partiram
e daqueles que voltaram.
Mãe das mulheres que acendem
o lume primeiro do dia.
Mãe dos meninos nascidos
da verde placenta do rio.
João Pedro Mésseder, Porto Porto,
V. N. Gaia, Calendário das Letras, 2009


***


A cidade equestre
No rio mergulha
Seus cascos de granito
E sobe
A galope
Encosta arriba

Num salto a prumo
(Lá onde o casario morre)
Upa!
É uma torre

Torre de pedra e nuvem
De pássaro de fogo
De corpo de mulher
Torre de tudo e de quanto
O sonho
A palavra o canto
Pode e quer.

Luís Veiga Leitão, «Linhas do Trópico», 1977,
in Obra Completa, Porto, Campo das Letras, 1997


***




Porto, domingo. Morre de cansada
a tarde ruiva de olhos azulinos,
isto apesar de não ter feito nada
pois que guardou os ócios citadinos.

Foi para a Foz, levou a pequenada
para os folguedos próprios dos meninos,
e a certa altura estava tão corada
como quem bebe largos vinhos finos.

Agora esvai-se e mancha de vermelho
os vidros altos deste Porto velho
que muito preza as tardes domingueiras.

É que amanhã começa uma semana
de luta imensa e inveja e luta insana,
uma infernal semana de canseiras.

Manuel de Oliveira Guerra, Caminho Longo,
Porto, Papiro Editora, 2006




Ligações externas:






“O PORTO - poemário sobre a cidade invicta” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-11-2017. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/11/o-porto.html


domingo, 12 de novembro de 2017

Daniel Jonas, o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa

ENTREVISTA



Tal como a poesia que escreve, Daniel Jonas é esquivo, difícil, não mendiga reconhecimento, nem leitores. "Canícula", o seu novo livro confirma-o como o mais velho poeta português da actualidade.

Nasceu com a incrível sorte de ter já nome de profeta bíblico, um nome feito para a poesia. Tem 43 anos e é o maior poeta português da atualidade; mede 1,91 cm de altura. Diz que isto foi só porque levou à letra o verso de Florbela Espanca “ser poeta é ser mais alto” e ficou assim com umas pernas tão magras e compridas que obrigam quase toda a gente a ter que dobrar o pescoço para lhe alcançar os olhos, os caracóis e o ar rebelde a lembrar o Bob Dylan em versão revista e aumentada. Lá no alto onde vive (no Porto) também não se esforça para descer ao circo dos eventos literários, não procura os media, não gosta de falar ao telefone. De resto, a sua vida quotidiana como professor, tradutor e pai de dois filhos não lhe deixa grande espaço “nem vontade” para pertencer a grupos ou famílias, cultivar discípulos, andar a ler poesia em eventos. Esta entrevista ao Observador, a propósito do seu novo livro Canícula(Língua Morta), feita por email, telefone e terminada num café de Lisboa, testemunha que, tal como a sua poesia, Daniel Jonas não se deixa facilmente apanhar.


O facto de ter traduzido poetas antigos como Milton, que trabalham com outras formas de linguagem e com outras abordagens dos mundos físicos e metafísicos, outra constelação de ligações, alterou a poesia que escreve?
Todas as leituras contagiam os seus leitores. Não tenho é a certeza se fui eu que as procurei, se foram elas que me encontraram. Nesse sentido, elas poderão apenas acusar uma familiaridade estética, na esteira de um discípulo que busca os seus mestres. O discípulo será prévio ao seu mestre, neste caso. Com Milton aprendi a cultivar o soneto, por exemplo. Por outro lado, a tradução obriga-te a uma imersão na linguagem de uma forma muito mais exigente do que aquela que fazemos no dia-a-dia. A atenção às palavras torna-se mais aguçada. O tradutor faz uma espécie de peregrinação interior dentro do texto e essa peregrinação deve resultar num aperfeiçoamento interior também.

Diz, numa entrevista a António Guerreiro, no jornal Público, que “tudo é convidado a entrar” na sua poesia. Mas este “tudo” que o torna um poeta impossível de classificar e mapear não poderá ser-lhe fatal? Ou seja a sua poesia não pode acabar por se tornar “um lugar facilmente reconhecível apenas por ser ectópico”?
Habituei-me a uma certa tradição que vindimava certos vocábulos com acérrima insistência. Não havia, aliás, poeta que não fosse costumeiro no uso de vocábulos como meses do ano, a ‘cal’, o ‘rumor’, e seus primos. Julgo que, mais recentemente, se assistiu à feira franca de um algoritmo de tendência, digamos, neo-neo-realista que frequentava as mesmas tendências e chamava ao jovial poema os seus sucedâneos ‘táxi’, ‘cigarro’, ‘bar’, qualquer coisa deste género. Ora o que eu digo é que sigo um sistema evangélico, um compelle intrare poético que, não obstante, tende a ser rigoroso naquilo que admite. Mas esse critério não é simples.

Num dos poemas de Canícula diz-se o contrário de São Tomé: não tocar para ver. Como resiste à tentação de dizer apenas o que vê? Como se escapa dessa ditadura de apenas nomear o que é visível que tem dominado a poesia portuguesa dos últimos anos quando, como sabemos, o que se vê jamais reside no que se diz?
A minha imaginação tem de ser forte o suficiente para gerar uma espécie de potência de criação. Nesse sentido, quando num poema digo ‘eu’ refiro-me a uma personagem que criei para esse poema, uma personagem, digamos, romanesca. Aliás, neste último livro, há uma personagem (aliás, duas: o peregrino chorão e uma rua, a Duarte Belo à Bica) que é uma construção de um anti-turista que se desdobra num intenso monólogo dramático sobre as suas explosões interiores, intensamente ficcionais. É um psicodrama interior de alguém que se passeia como uma câmara pela cidade.

Isso de viver fora do centro ajudou-o a criar uma voz dissonante, ou mesmo “anacrónica” como lhe chama?
O centro é local? Eu digo isto porque é normal em Portugal, um país realmente pequeno que chuta pessoas que não pertencem à sua cidade-estado, assistir-se a um ostracismo absolutamente incompreensível num país civilizado, coisa que Portugal certamente não é. Entendendo a pergunta como referindo-se a uma escola, diria que não me matriculei em nenhuma escola de gosto. E talvez daí resulte, desse facto de cultivar gostos algo quaint, uma dificuldade em localizar geo-esteticamente a minha poesia.

Disse na mesma entrevista a António Guerreiro que “os chamados leitores de poesia são, não poucas vezes, leitores rancorosos, senão reacionários, que alienam preventivamente aqueles por quem julgam poderem vir a ser alienados “. Não crê que os poetas se limitam a si mesmos pelo encontro com esses leitores ou mesmo porque acreditam que a sua função é expressarem o “Zeitgeist” (espírito do tempo) quando, pelo contrário, a poesia deveria ser suficientemente subversiva para destruir sempre esse “Zeitgeist”?
É exatamente isso o que penso, não por uma questão necessariamente de programa, mas porque quero falar e escrever aquilo que bem entendo, independentemente de uma política de recepção. Se estiver a pensar nisso, serei mais um e teria pouco a dizer, de qualquer maneira. Não sou propriamente um almocreve da palavra nem vejo vantagens em sê-lo. Já escrever, em si mesmo, me parece uma atividade cada vez mais inconsequente.

Porquê?
Porque pouco se recolhe da poesia. Porque há cada vez menos pessoas a frequentá-la, mas antes em atividades diletantes da poesia como evasão. A poesia não é evasão.

Publica livros há vinte anos, já recebeu vários prémios mas diz como o poeta americano John Ashbery: “Por um lado sou um dos escritores mais conceituados e lidos da atualidade, por outro ninguém me compreende”.
John Ashbery procurava dar conta de uma estupefação que eu compreendo. Ele procurava entender este nó górdio que fazia com que um poeta largamente cifrado acabasse por ser, paradoxalmente, tão acarinhado por um certo público. Talvez as pessoas gostem de enigmas e de quebra-cabeças. Nesse sentido, Canícula é idêntico a si próprio. É uma voz única de um tempo único que assim fica registado e é tão plural quanto as nossas disposições para o receber. Ouvir “Visions of Johanna” [Bob Dylan] é certamente diferente de cada vez que a ouço, na medida em que a minha experiência de mim é irrepetível e irrepetível o canal da apreciação estética que é cumulativo com o da experiência pessoal e pontual. É como um canal que dá para duas funções ao mesmo tempo. E assim se passa com quem produz uma obra de arte. A sua intimidade é uma no momento da sua criação e outra nos vários momentos subsequentes. Tal como as minhas visões de Johanna são umas no momento em que as tenho e as escrevo e outras quando a Johanna e eu somos mais velhos. De todas as vezes que eu volto à Johanna a minha apreciação de Johanna se modifica, digamos assim.

Essas figuras longínquas que evoca nos seus livros, não só em Canícula, mas em todos eles, esses desertos, pastores, cabras, esse tempo anterior à fundação das civilizações, onde a palavra e o corpo não estavam separadas, gastas, sem qualquer força ética que ligue os Homens… essas gentes, essas paisagens, onde as vai buscar?
Há aquela piada do dinossauro-filho que pergunta ao dinossauro-pai se Deus existe. O pai responde-lhe “Ainda não”. Eu procuro de certa maneira um tempo anterior a certas experiência e palavras, procuro ser criador, aliás um desiderato comum a todos os criadores, não é nada de novo. Esse movimento deve ser à uma revolucionário e primordial. A natureza é muito cruel mas, por outro lado, oferece a busca pelo não humanizado. A minha linguagem procura humanizar o sublime, por assim dizer, sem que o torne necessariamente prosaico. A minha teoria, a existir, assenta em, como Yeats, querer ir a Innisfree, ver-me livre da ganga do que há e fazer mel e criar uma melodia nova. Mas não é preciso ir para o campo para se viver nele.

Este livro está cheio de subtis evocações de lugares, poetas, músicas, palavras que juntam o que parecia impossível juntar, limpo de sentimentalismo, de nomes. Não precisa de nomear Fernando Pessoa ou Cesário Verde para o leitor os encontrar algures por aquela Lisboa tornada cidade sem tempo cronológico e sem espaço geográfico. É um lugar onde todos os tempos se fundem abolindo o próprio tempo.
Quis fazer um livro verdadeiramente lisboeta, toponimicamente preciso. A rua Duarte Belo é uma personagem, como disse (rua recentemente votada, e muito justamente, uma das mais bonitas ruas do mundo), mas procurei que aquele anti-turista não autóctone passasse por uma espécie de novo heterónimo de Pessoa. Que nova personagem seria essa? Não segui isso até à loucura, mas entendi que podia ser um bom mote para o que estava a fazer. Com uma palavra de cautela: esse programa é totalmente posterior. Só pensei nisso depois de fazer o que fiz. Provavelmente essa personagem é uma infusão de vários estados ficcionais. Uma presença muito forte e várias vezes aludida é a história de Isaque e Abraão, concretamente o episódio que mais me dececiona em toda a Bíblia, quando aquele patriarca severo leva o seu pobre filho monte acima para ser sacrificado. Ainda por cima, para cúmulo, obriga-o a transportar a lenha que servirá de escabelo para o seu próprio auto de fé! Essa história está, aliás, admiravelmente reconfigurada na Story of Isaac de Leonard Cohen. Especialmente nas observações miúdas do pequeno Isaque, ao observar a dimensão assustadora das árvores e da geografia em geral.

Canícula é uma obra de uma enorme solidão. Sísifo em Lisboa subindo e descendo as colinas em plena canícula sem encontrar nenhuma estoica felicidade. E tantas vezes ele sobe à Bica e tantas vezes ele faz o gesto de vergar o corpo para a frente, seja numa numa varanda, numa vénia, numa dor, seja sob um peso qualquer da alma. Um Sisifo que poderia ser mais um heterónimo de Pessoa tendo por única companhia um cão e muitas figuras que não chegam a ser gente, apenas contornos difusos, que não podemos fixar numa imagem reconhecível…
Ainda bem que tal solidão ressalta do quadro geral. Ela é necessária para o meu programa de um homem só, desse Sísifo em Lisboa. O não-diálogo com a realidade, ou a estranheza da realidade circundante é absolutamente crucial para o meu ponto. Quer dizer que a linguagem disponível não comunica com esta minha personagem. Ela precisa de desenvolver uma linguagem nova, ou pelo menos a que encontra ao seu alcance não reverbera na caixa de ressonância material da realidade. E nessa circunstância vê-se na pele de turista, ainda que um turista natural. O cão, que aqui é uma espécie de animal de companhia que acompanha um herói (todo o Tintim tem o seu Milu), é a projeção mutilada da estrela Cão (Canícula) e do cio discursivo que perpassa todo o livro. A palavra ‘Canícula’, para além de cachorro, designa também uma pequena cana, por extensão o cálamo, a caneta… Esta polissemia alude, entretanto, às pernas delgadas e convalescentes do seu autor…

Quero a fanfarra dos simples, o augusto coreto das sombras!
Onde estou que não me encontro?
Eu tenho uma fome assassina, de descarnar os cabos
das costelas, de estraçalhar milagres biológicos,
a existência miserável de seres que antes eram vivos
e agora enfeitam o cemitério do meu prato.
Esta afluência ao restaurante põe-me doido!
Este querer comer como eu quero este querer cuspir como eu
quero”
(Canícula, pag.48)

“Canícula”: habitar poeticamente a cidade

Depois de ter estado na capital no verão passado numa residência artística promovida pelo Festival Silêncio, Jonas, regressou para apresentar o livro que resultou dessas duas semanas: Canícula ou, nas palavras do seu editor Diogo Vaz Pinto, “um salto imprescindível na poesia portuguesa”.
Mas esse “salto”, que quem vem acompanhando os livros que Jonas publicou nos últimos anos já pressentia, quer pela teimosia com que escreve sabendo que é o poema que escolhe os seus leitores, pela construção de um universo que não é figurativo, que rejeita corajosamente a prerrogativas do discurso lógico, realista, as fórmulas gastas da meta-poesia, a luta por ter uma identidade reconhecível que mais não é do que uma mendicância por reconhecimento. aqui usam-se palavras caídas em desuso, criam-se pontes sonoras dentro para dar uma continuidade musical ao poema como fazia Camões ou os poetas trovadorescos. Uma musicalidade que só se pode saborear convenientemente lendo alto e que está assinalada nas paginas do livro por dois símbolos hebraicos, o “selah” que significa: respiremos ou pausa. Isto diz-nos também que Canícula é um poema continuo, um canto longo onde se volta como Daniel volta a Dylan e às “Visions of Johanna”.
Bisonte publicado em 2016 depois de o autor ter ganho
 o prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes

Canícula não é uma habitação fácil de entrar, não é um lugar de acolhimento mas de agonismo, não se oferece como espetáculo ao flaneur. Tal como o habitante da casa, no poema que abre o livro, temos sentimentos frios, sentimos a omnipresença de uma ameaça que vem das paredes, ou da própria cidade. As portas não são fáceis de abrir nesta poesia que exige confronto e superação, quer pelos anacronismos, quer pela forma como anula o Tempo e destrói a geometria do Espaço. Para entrar neste livro não basta nomear Lisboa para se achar num espaço familiar, porque aqui nada é familiar mas sim “uncanny”, de uma inquietante estranheza que nos coloca dentro de uma cidade atual e milenar, anterior a tudo, uma cidade que recusa o romantismo melancólico de Baudelaire e prefere, como Hölderlin, “habitar poeticamente o mundo” apesar das contingências urbanas, da resistência dos materiais e dos corpos e da própria linguagem.
Há muito para não dizer sobre as cidades no tanto que já foi dito sobre elas. A originalidade de Daniel Jonas consiste em abandonar o lugar de espectador para Ser a própria cidade aqui transfigurada numa espécie de Sísifo constantemente vergada sob o calor, o peso. Cidade onde confluem eras, vestígios de glória e impotência humanas, de profetas e desertos e pastores de cabras, de pegadas deixadas num chão um dia mole, de caçadores antropófagos escondidos na esquina de um prédio. Idades extintas, experiências perdidas, visões imperecíveis que a modernidade e as suas máquinas não destroem, ligações que as perceções superficiais do quotidiano não identificam e que constituem uma outra linguagem no interior da linguagem. Daniel Jonas faz essa arqueologia dentro da linguagem para encontrar não as palavras mais transparentes mas as mais densas. As que estão, como a vida, opacificadas por conterem cadeias de significado, reminiscências, semelhanças, analogias. Cada palavra tem uma história etimológica que explode no poema, que resgata mundos perdidos, induz a regressões ou a saltos futuristas. A cidade de Canícula é um caleidoscópio que se pode girar infinitamente para nunca se sair do mistério da poesia.
Esta casa sarcófago, lápide, avalanche,
erosão de vida, buraco branco na explosão de coisa nenhuma,
corrosão infecta, enfermaria, anestésica
do que eu fosse e me curasse,
choque estelar e cósmica comédia de silêncio.
O grito! O grito! O grotto! O grotto!
A brancura hesitando na cama de rede do delírio,
escorrendo pelos ângulos da tarde
como uma marioneta ganhando vida de loucura,
térmites que eu vejo e não disseco, lacraus pulmonares
que me brotam das ideias e eu trem
e eu amo sem parceiro que invada
numa paragem de autocarro que eu passeio
na minha espera lenta de anteontem!”
(Canícula, pag.11)
Joana Emídio Marques, "Daniel Jonas, o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa" in Observador, 2017-04-20,
 http://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/ 

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O mar jaz; gemem em segredo os ventos (Ricardo Reis)

Ego Rodriguez, Neptuno


III - O MAR JAZ; GEMEM EM SEGREDO OS VENTOS [1]
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
                Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
                Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
                Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
                Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
                Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
                Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
                Ecoa de Saturno?
6-10-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 50.
1ª publ. in Atena , nº 1. Lisboa: Out. 1924.
http://arquivopessoa.net/textos/2938



Esta ode é porventura uma das odes mais clássicas, em forma e conteúdo, de Ricardo Reis.
Aparentemente de difícil análise, deve ser lida cuidadosamente, revelando-se então em toda a sua real simplicidade.
O tema desta ode é a grandeza do mundo face à pequenez do homem. Reis aproveita este tema e desenha uma belíssima imagem poética (porventura ao nível dos poemas mais belos e requintados de toda a obra de Fernando Pessoa). Como faz veremos de seguida, tentando deslindar cuidadosamente o lindo rendilhado que ele construiu.
Imaginemos um mar parado. “O mar jaz”, ou seja, o mar está quieto perante a presença do poeta. Os ventos que normalmente sopram, “gemem em segredo (...) em Eolos cativos”, ou seja, estão presos por Eolos (deus do vento) e não sopram.
Como o vento está calmo, quase não existe, a superfície da água está quieta. Reis constrói uma metáfora para que melhor compreendamos essa quietude, quando nos diz que apenas as “pontas do tridente” de Neptuno frazem “as vastas águas” – Neptuno, rei dos mares não perturba as águas com o seu tridente.
Esta quietude é reforçada depois com a imagem da praia branca (alva) que brilha ao sol claro. Passa também, embora  subrepticiamente, a noção de que ninguém está naquela praia, que a quietude é sinónimo de solidão, de individualidade. O que está quieto e o que está são equiparados.
Para quê?
Para que Reis opere uma comparação posterior. É o quieto, só, que se compara ao que não é quieto e só.
É ao definir um modelo fixo (neste caso de solidão) que Reis melhor passa a hipérbole de exagerar essa solidão ao máximo – comparando-a com o seu extremo oposto.
“Inutilmente parecemos grandes”, começa por dizer. É a ilusão da grandeza que melhor caracteriza a atitude humana, num mundo que, por outro lado lhe parece alheio. Este mundo alheio é o mundo que é estranho à vontade humana de mudança – um  mundo que não pode ser mudado ou dominado pelo homem (é um mundo em que governa o Destino).
“Nada, no alheio mundo, / Nossa vista grandeza reconhece / Ou com razão nos serve.” – Reis continua reforçando a atitude humana, de superioridade, mas que é ao mesmo tempo uma atitude ilusória.
Qual é verdadeiramente a realidade?
“Se aqui de um manso mar meu fundo indício / Três ondas o apagam, / Que me fará o mar que na atra praia / Ecoa de Saturno?” – a verdade é que os homens não deixam a sua marca no mundo, por muito que pensem o contrário. O “fundo indício” deixado por Reis, a sua marca, logo é apagada por três ondas breves. E se é assim, o que acontecer| “na outra praia”?
Que outra praia é esta?
É a praia onde o “mar (...) ecoa de Saturno”. É o mar do tempo (ver a ode “Antes de nós mesmos arvoredos…”), o mar de Cronos – o  deus  do tempo que devora os seus próprios filhos – a água que corre e que se escoa num relógio liquido, ampulheta divina que conta as gotas que constituem as curtas vidas humanas.
Como vemos, a complexidade escondia uma simples mensagem: de que o homem deve assumir a sua pequenez, porque mesmo que acredite no  contrário, a sua ilusão, como a sua presença, desaparecerá com as ondas do mar do tempo.

À Distância de um Horizonte. Uma análise das “odes” de Ricardo Reis, Nuno Hipólito, 2007-2010. URL: http://www.umfernandopessoa.com/uploads/1/6/1/3/16136746/a-distancia-de-um-horizonte.pdf


AEOLUS, https://jonathanvair.deviantart.com/art/Aeolus-290213323, 13-03-2012



O MAR JAZ. GEMEM EM SEGREDO OS VENTOS [2]
O mar jaz. Gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos,
Apenas com as pontas do tridente
Franze as águas Neptuno,
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Eu quisera, Neera, que o momento,
Que ora vemos, tivesse
O sentido preciso de uma frase
Visível nalgum livro.
Assim verias que certeza a minha
Quando sem te olhar digo
Que as cousas são o diálogo que os deuses
Brincam tendo connosco.
Se esta breve ciência te coubesse,
Nunca mais julgarias
Ou solene ou ligeira a clara vida,
Mas nem leve nem grave,
Nem falsa ou certa, mas assim, divina
E plácida, e mais nada.
6-10-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 
 - 186.
http://arquivopessoa.net/textos/435

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 


O mar jaz; gemem em segredo os ventos (Ricardo Reis)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-11-2017. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/11/o-mar-jaz-gemem-em-segredo-os-ventos.html