quinta-feira, 11 de julho de 2024

Escrevo o que lembro, Ivo Machado

Ivo Machado, "à proa do meu navio", Facebook, 12-12-2023

 
ESCREVO O QUE LEMBRO

à Madalena,
minha neta recém-nascida

Hoje nasceu uma estrela
depois tudo foi o que se sabe
de luz coberta
de amor cercada
estranhamente antes de alegria
outra forma de melancolia
oh, meu bem —
De mim o que te pertence?
tenhas todo o Tempo
(por mim passou depressa)
oh, minha estrela —
escrevo o que lembro
ah, contigo
nasci de novo.

Ivo Machado

Casa da Agudela, 9 de julho de 2024

Disponível em: https://www.facebook.com/share/p/pz8juXV7o87CTeQi/

 

Linhas de leitura sobre o poema “Escrevo o que lembro”, de Ivo Machado:

O poema inicia comparando o nascimento de Madalena ao surgimento de uma estrela. Essa estrela traz consigo luz e amor, simbolizando não apenas o nascimento físico, mas também um renascimento emocional para o sujeito poético.

Madalena é descrita como cercada de luz e amor. No entanto, há uma melancolia presente antes da alegria plena. Essa dualidade reflete a complexidade das emoções humanas diante de momentos significativos.

O sujeito poético expressa o desejo de que Madalena tenha “todo o Tempo”. Esta frase reconhece que o tempo passou depressa para ele e, ao mesmo tempo, reflete sobre a efemeridade da vida.

As expressões “luz coberta” e “amor cercada” simbolizam o desejo do poeta de proteger e cuidar da sua neta. Essa imagem sugere um ambiente seguro e acolhedor.

A pergunta “De mim o que te pertence?” explora o que do seu ser ele passará para ela, sugerindo uma herança emocional e espiritual.

A declaração "escrevo o que lembro" sublinha o papel do poeta como cronista das emoções, usando a escrita para preservar memórias e sentimentos.

Os termos afetuosos como “meu bem” e “minha estrela” revelam o profundo amor do sujeito poético por Madalena, destacando a importância dos laços familiares.

Apesar da melancolia e da passagem do tempo, o nascimento da neta Madalena traz uma renovação. É uma nova oportunidade de viver e sentir, marcando um momento significativo na vida do poeta.


domingo, 7 de julho de 2024

Desfado, Ana Moura e Pedro da Silva Martins


 

DESFADO

Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem
sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém,
mas não ter sentido algum

Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia
eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem
e que aqui esteve presente

Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste

Ai se eu pudesse não cantar «ai se eu pudesse»
e lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse
no silêncio que fizesse
uma voz que fosse minha
cantar alguém cá dentro

Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza
que nada mais certo existe
além da grande incerteza
de não estar certa de nada

Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste

 

Ana Moura, in Desfado. Letra e música de Pedro da Silva Martins

 

"Desfado", escrito por Pedro da Silva Martins e interpretado por Ana Moura, é um poema que subverte a tradição do fado português, oferecendo uma reflexão metalinguística sobre o próprio conceito de destino e saudade. Este texto não apenas celebra a ambivalência emocional característica do fado, mas também questiona e desconstrói as noções de destino, tristeza e alegria.

Desde o início, o poema estabelece uma relação paradoxal com o destino: "Quer o destino que eu não creia no destino / E o meu fado é nem ter fado nenhum". A palavra "fado" aqui carrega uma dupla conotação, referindo-se tanto ao destino inevitável quanto ao género musical tradicional. A negação do destino — ou a ideia de ter um fado "sem sentido algum" — desafia a fatalidade típica do fado, abrindo espaço para uma abordagem mais pessoal e subjetiva da existência.

O poema prossegue com uma exploração profunda da dualidade emocional: "Ai que tristeza, esta minha alegria / Ai que alegria, esta tão grande tristeza". Esta ambiguidade emocional é central ao fado, mas aqui é elevada a um novo nível de introspeção. A justaposição de alegria e tristeza cria uma tensão que revela a complexidade das emoções, refletindo a incerteza e a instabilidade da vida.

A saudade, um tema recorrente no fado, é abordada de maneira inovadora: "Ai que saudade que eu tenho de ter saudade / saudades de ter alguém que aqui está e não existe". A saudade de uma ausência presente sugere uma nostalgia paradoxal, onde o sujeito lírico anseia por uma ligação com alguém que nunca esteve verdadeiramente presente. Este sentimento de ausência dentro da presença destaca a fragilidade das relações e a constante busca por significado.

Uma das características mais marcantes do poema é a sua reflexão sobre o próprio ato de cantar o fado: "Ai se eu pudesse não cantar 'ai se eu pudesse' / e lamentasse não ter mais nenhum lamento". Esta autocrítica sugere um desejo de transcender as limitações do gênero e encontrar uma voz autêntica dentro do silêncio. A voz que "fosse minha" representa a busca por uma identidade própria, distinta das tradições impostas.

O poema conclui com uma meditação sobre a incerteza: "Na incerteza / que nada mais certo existe / além da grande incerteza / de não estar certa de nada". Este reconhecimento da incerteza como a única certeza da vida reflete um profundo existencialismo. A aceitação da incerteza não é apenas uma resignação, mas uma afirmação da liberdade individual e da complexidade da experiência humana.


sábado, 6 de julho de 2024

Fundo do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Vamos analisar como a imagem do "fundo do mar" é trabalhada como metáfora em cinco poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen ("Fundo do Mar", "Gráfico", "Assassinato de Simonetta Vespucci", "Caminho da Índia" e "Da Transparência"), revelando-se como um símbolo de beleza e perigo, renascimento, desolação, memória histórica ou introspeção.

 

FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

No poema "Fundo do Mar", Sophia de Mello Breyner Andresen pinta o fundo do mar como um local de maravilha e de terror simultâneos. O sujeito poético descreve um mundo onde "as plantas são animais / E os animais são flores", subvertendo as expectativas do leitor sobre a ordem natural das coisas. Este mundo subaquático é silencioso, afastado da agitação da superfície, e habitado por criaturas como o cavalo-marinho e o polvo, cujos movimentos são retratados com uma graça quase etérea. Contudo, a beleza deste lugar esconde um perigo latente, simbolizado pelo "monstro em si suspenso". A imagem do "tempo poisa / Leve como um lenço" sobre a areia sugere uma passagem tranquila do tempo, mas não elimina a presença constante do perigo. Este poema utiliza o fundo do mar como uma metáfora para a dualidade da existência, onde a beleza e a ameaça coexistem.

 

Cianómetro 


GRÁFICO

I

Curva dos espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?

II

Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

III

A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.

IV

Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 

No poema "Gráfico", o fundo do mar aparece na segunda estrofe como um local de nascimento e descoberta: "Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais / Do fundo do mar. / Eu nasci há um instante." Aqui, o fundo do mar é associado com o início da vida e a novidade, contrapondo-se à sensação de sepultamento do corpo mencionada na primeira estrofe. A referência a este espaço subaquático sugere uma busca por renovação e um desejo de ligação à essência primordial da vida. O fundo do mar torna-se, assim, um símbolo de regeneração e exploração, contrastando com a estática e a inutilidade dos "gestos inúteis" da superfície.

 

ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI

[I]

Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse — de repente.

Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exatas do destino.

Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.

Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.

E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

[II]

Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro noturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.

[III]

Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.



 

No terceiro segmento do poema "Assassinato de Simonetta Vespucci", o fundo do mar é utilizado para evocar um sentido de desolação e morte: "Tu e eu vamos / No fundo do mar / Absortos e correntes e desfeitos." A imagem é carregada de melancolia e resignação, sugerindo uma união na morte ou no esquecimento. Os versos seguintes reforçam esta visão de desintegração: "Agora és transparente / À tona do teu rosto vêm peixes / E vens comigo / Morto, morto, morto". A repetição da palavra "morto" intensifica o sentimento de aniquilação. Neste contexto, o fundo do mar serve como um cenário de perda e de dissolução da identidade, em contraste com a vida vibrante e a descoberta presentes em outros poemas.

Retrato póstumo de Simonetta Vespúcio por Sandro Botticelli


Trata-se de um poema ambíguo, pois Simonetta Vespucci (1453-1476), embora tenha sido uma figura histórica real, não morreu assassinada, mas sim de tuberculose. Conhecida como uma das mulheres mais belas de Florença, Simonetta foi musa de artistas como Sandro Botticelli (1445-1510), que supostamente a retratou como figura central em suas obras "A Primavera" e "O Nascimento de Vénus" (ambas na Galleria degli Uffizi, Florença, Itália). A hipótese de que Sophia de Mello Breyner Andresen "assassina" Simonetta metaforicamente no poema pode ser explorada como uma maneira de abordar a destruição de uma idealização ou a confrontação de uma beleza eterna e imaculada com a realidade da morte e da desintegração. Esta "morte" poética de Simonetta pode representar a tentativa da autora de desconstruir a imagem idealizada e intocável que Botticelli e outros artistas perpetuaram, trazendo à tona a mortalidade e a vulnerabilidade inerentes a qualquer ser humano, por mais idealizado que seja. 

 

CAMINHO DA ÍNDIA

I

Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.

Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento.

II

Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.

Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.

E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.

 

No poema "Caminho da Índia", o fundo do mar aparece como um local histórico e mítico: "E os lemes quebrados dos capitães mortos / E os náufragos azuis do fim do mundo / Na rota de todos os portos / No fundo do mar profundo". Aqui, o fundo do mar é um repositório de memórias e de restos de jornadas passadas. É um lugar onde se depositam os vestígios das grandes explorações e das tragédias marítimas. A imagem dos "lemes quebrados" e dos "náufragos azuis" evoca a história e a tragédia dos exploradores que se aventuraram nas águas desconhecidas. O fundo do mar, neste poema, é uma metáfora para o legado da exploração e para a inevitável mortalidade daqueles que ousam desafiar o desconhecido.

 

 

DA TRANSPARÊNCIA

Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.

 

Por fim, em "Da Transparência", o fundo do mar é utilizado como uma metáfora para a alma humana: "No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas sufocado sonho". A ausência de corais e búzios — elementos típicos e belos do fundo do mar — sugere uma profundidade interna que é dominada pelo sonho e pela introspeção. Estes sonhos são descritos como "condutores silenciosos canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos desastres". A imagem do fundo do mar serve aqui para ilustrar a profundidade e a complexidade dos sonhos e desejos humanos, que são ocultos e só emergem em momentos de crise ou de revelação.

 


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Praia (Os pinheiros gemem quando passa o vento), Sophia de Mello Breyner Andresen


 

 

PRAIA

 

Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.

Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.

Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 

 

Intertextualidade

O poema “Praia”, de Sophia Andresen, estabelece um diálogo intertextual com os poemas “Horizonte” e “D.Dinis”, de Fernando Pessoa, ambos presentes na Mensagem. 

 

D. DINIS 

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio1, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho2 obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

9-2-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

HORIZONTE 

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração3,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério4
Esplendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria5 do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos6 merecidos da Verdade7.

s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 58. Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/2380

 

____________

Notas: 1 Arroio: regato. 2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas. 3 Cerração: nevoeiro denso; escuridão; trevas. 4 Sidério: sidéreo; sideral, astral, celeste. 5 “aquela fria / luz que precede a madrugada, / E é já o ir a haver o dia / Na antemanhã, confuso nada” (in “Viriato”) – fronteira entre o desconhecido e o conhecido. 6 Beijos – recompensa. 7 Verdade – conhecimento.

 

 

Para identificar as imagens no poema “Praia” de Sophia de Mello Breyner Andresen que parecem ter sido inspiradas pelos poemas “Horizonte” e “D. Dinis” de Fernando Pessoa, é importante analisar os temas e as metáforas partilhadas entre os textos.

A "antiquíssima nostalgia de ser mastro" (v. 11) que baloiça nos pinheiros sugere uma ligação com o passado marítimo de Portugal, evocando a era dos Descobrimentos e a exploração dos mares. Esta linha de pensamento liga-se com os poemas “D. Dinis” e “Horizonte”.

No poema “D. Dinis”, Pessoa explora a ligação entre a terra e o mar, simbolizada pelos pinhais que "ondulam sem se poder ver". A imagem dos pinhais, presente em ambos os poemas, serve como um ponto de conexão. Em “Praia”, os pinheiros baloiçam com nostalgia, enquanto em “D. Dinis”, eles são a voz da terra ansiando pelo mar. Ambos os textos utilizam a natureza para meditar sobre a história e a identidade nacional, evocando um sentimento de saudade em “Praia” e o desejo de exploração em “D. Dinis”.

Horizonte” também reflete um desejo de descoberta e transcendência. A ideia de um mar mítico e ancestral presente em ambos os poemas sugere uma intertextualidade. Pessoa escreve sobre o mar como um espaço anterior a nós, cheio de medos e mistérios que, uma vez desvendados, revelam uma beleza sublime. A descrição da linha severa da costa que se revela em árvores, aves e flores quando a nau se aproxima reflete um processo de revelação e desvendamento. Os pássaros de Sophia, apesar de terem uma conotação mais trágica, ainda se relacionam com a descoberta e a revelação, semelhante ao desembarque descrito por Pessoa. As ondas de Sophia (vv. 9-10) quebram contra a luz, criando uma imagem forte e arquitetónica, enquanto Pessoa descreve a revelação da paisagem à medida que a nau se aproxima (vv. 8-10). Em ambos os casos, há uma transformação visual da natureza com a proximidade e a luz.

 

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quinta-feira, 4 de julho de 2024

Canção dos rapazes da ilha, Aguinaldo Fonseca


 

CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA

 

Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.

 

Aguinaldo Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de 1958

 

Análise literária do poema

O poema "Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade do espírito e da imaginação.

O poema inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e alcançar lugares além da sua prisão insular.

O sonho do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”), encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético podem viajar e deixar uma marca.

A impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a liberdade imaginativa.

O poema constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:

Presente/Futuro: O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto o futuro é sugerido pelo sonho que irá.

Realidade/Fantasia: A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante, capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.

Pobreza/Riqueza: A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.

Prisão/Liberdade: A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.

Infelicidade/Felicidade: A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e idealizada nos sonhos que se movem.

Estes contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado e a libertação futura.

O título "Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas pelo contexto colonial e geográfico.

 

Geração do Suplemento Cultural

A Geração do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito identificada com uma verdadeira postura de revolta.

O Suplemento Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas pela censura colonial da época.

A situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana

Desta forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou, definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O "eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um "eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.

Do ponto de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de independência.

Fala do homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares, mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar vida ao elemento "terra".

Os seus textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a revelar claramente as realidades.

A sua principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente combativa da problemática do ilhéu.

Consciencializar o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.

Porto Editora – Geração do Suplemento Cultural na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-07-01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$geracao-do-suplemento-cultural

 


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Bucólica (A vida é feita de nadas), Miguel Torga


 

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

 

Miguel Torga, Diário I, Coimbra, 1941.
Poesia Completa, Círculo de Leitores, 2002

 

 

Comentário literário

Miguel Torga, conhecido pela sua poesia ligada à terra, oferece-nos em "Bucólica" uma reflexão sobre a essência da vida e os seus detalhes aparentemente insignificantes. O poema, publicado no Diário I em 1941, convida-nos a valorizar os pequenos momentos e a encontrar beleza nas coisas simples.

Desde o início, o sujeito poético afirma que "A vida é feita de nadas" (v. 1), um verso que contém a filosofia subjacente ao poema. Os "nadas" aos quais se refere são descritos ao longo das estrofes: as "grandes serras paradas", as "searas onduladas pelo vento", as "casas de moradia caídas", a "poeira", a "sombra de uma figueira", e o momento sublime de "ver esta maravilha: / Meu pai a erguer uma videira" (vv. 12-13). Estes elementos, aparentemente simples e despretensiosos, ganham vida através da poesia de Torga, que os eleva à condição de símbolos poéticos.

Os "sinais/ De ninhos que outrora havia/ Nos beirais" (vv. 7-9) assumem uma importância particular dentro do poema. Representam não apenas um passado físico, mas também um passado emocional, relembrando espaços habitados e memórias que persistem no presente do sujeito poético.

O clímax emocional do poema surge no verso 13, onde o eu poético expressa admiração ao observar o pai a cuidar da videira. Este momento é carregado de ternura e reverência, destacando a figura paterna não apenas como um agricultor, mas como um ser profundamente conectado à terra e à vida que ela sustenta.

A figura de estilo presente no último verso, uma comparação entre o ato do pai e a ação maternal de trançar o cabelo de uma filha, revela a habilidade de Torga em unir o natural com o humano, sublinhando a relação íntima entre o homem e a natureza. Esta comparação não só enriquece o poema com um sentido de familiaridade e afeto, mas também ressalta a importância do trabalho árduo e do amor no ciclo da vida.

 

Proposta de escrita

Num texto bem estruturado, reflete sobre os ‘nadas’ de que a tua vida é feita, ou seja, os pequenos detalhes aparentemente insignificantes que carregam um significado profundo.

 


Poderá também gostar de:

  •  A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 


terça-feira, 2 de julho de 2024

Ai, Palavras! (Cecília Meireles)

 


Romance LIII ou das palavras aéreas

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra.

Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas;
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão, podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!

Cecília Meireles (1901-1964), “Romance 53 ou Das Palavras Aéreas” in Romanceiro da Inconfidência, Parte 3. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1953

 

Análise dos principais aspetos do poema

O poema “Romance LIII ou das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, faz parte do Romanceiro da Inconfidência, uma coleção de poemas inspirada na Conjuração Mineira, uma rebelião fracassada contra o domínio colonial português no Brasil no século XVIII.

No poema é explorada a dualidade das palavras como instrumentos de criação e destruição, de liberdade e opressão, refletindo-se sobre o seu impacto profundo e muitas vezes imprevisível na vida e história humanas.

O sujeito poético começa por enfatizar a natureza fugaz das palavras. Elas são comparadas ao vento que não retorna, indicando a sua transitoriedade e a rapidez com que tudo pode ser formado e transformado por elas.

Apesar da sua fugacidade, as palavras possuem uma potência estranha. Elas são capazes de iniciar e direcionar o sentido da vida, cristalizar emoções como o amor, incitar sonhos e audácias, mas também disseminar calúnias e causar derrotas.

As palavras são descritas como frágeis como o vidro, mas poderosas como o aço. Elas têm o poder de mover reis, impérios e povos, moldando o curso da história e influenciando destinos.

O poema aborda também a responsabilidade que vem com o uso das palavras. Elas podem acusar, vigiar, prender, julgar e condenar. Podem ser usadas como instrumentos de opressão ou libertação, dependendo de como são utilizadas.

Há um contraste entre a leveza aparente das palavras, como "tênue seda", e a sua capacidade de serem instrumentos de poder e justiça. Elas são tanto símbolos de liberdade quanto de opressão, dependendo do contexto e da intenção de quem as usa.

O poema termina com uma reflexão sobre a ironia das palavras. Onde poderia haver perdão, elas se tornam instrumentos de punição e sofrimento, exemplificado na imagem final de "um homem que se enforca", mostrando como palavras mal empregadas podem ter consequências trágicas e irreversíveis.




 

Exploração de um fragmento do poema

 

AI, PALAVRAS!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...

Cecília Meireles, Obra Poética

 

O título da poesia está plenamente justificado nos três versos em que o vocativo comandado pela interjeição aparece seis vezes e isto na 1.ª parte da composição, antes da autora se espraiar em imagens significantes deste extraordinário e indefinível significado que ela tenta sugerir, desde que, na 1.ª estrofe, diz «sois de vento» , tentando já objetivar o referido significado numa imagem - o vento - que, como as palavras, não se pode agarrar, o que aponta já para a incontável e variada gama de signos que podem ser transmitidos pelas palavras.

Em toda a poesia é evidente um misto de censura, acusação, elogio e angústia em que a autora envolve - as palavras - intensificando esses sentimentos com o emprego da referida interjeição.

O ritmo ligeiro da poesia em verso de redondilha maior, sem rima consoante, e apenas, aqui e além, uma certa musicalidade dada pela rima toante em o aberto - vossa, retorna, transforma, nova, vossa, porta, rosa, derrota, elabora, retorta, poderosa, rodam - que aparece alternadamente ao longo da poesia, está ao serviço da ideia que a poetisa desenvolve desde o 3.° verso - a palavra é incorpórea, não se apanha, não se vê, é efémera, móvel, na sua pronunciação, leve como o vento. No entanto, à medida que o pensamento se desentranha, a poetisa vai concretizando a afirmação do 2.° verso do 1.º dístico - «que estranha potência a vossa!» - e, daí, a sucessão de valores denotativos e conotativos contidos nas - palavras.

A pontuação colabora com a linguagem para traduzir o pensamento. Abundam as frases exclamativas e reticentes que apontam para a função emotiva da linguagem ao serviço desta mensagem poética que está, de certo modo, empenhada numa subtil denúncia - o que está sugerido principalmente no último conjunto de versos.

«A Liberdade das almas.
ai! com letras se elabora .. »

Predomina no texto o tempo verbal presente, o qual aponta para a intemporalidade das afirmações da autora: foi, é e será sempre «estranha a potência das palavras».

A poetisa debruça-se sobre este sugestivo signo - a palavra - e vai desdobrar em sucessivos versos aquilo que ela pensa, em linguagem direta. Daí, os vocativos, os verbos na 2.ª pessoa e o possessivo vossa também na 2.ª pessoa.

A obsessão com que se debruça sobre o tema é marcada:

- pelo paralelismo: sois de vento, ides no vento

- pelas repetições: há um verso que se repete três vezes - «Ai, palavras, ai, palavras,»; o 1.º dístico repete-se no começo da 3.ª estrofe; o 4.º verso da 1.ª estrofe também se repete integralmente no dístico que constitui a 2.ª estrofe um tanto desgarrada, só formada de dois versos, mas fortemente incisiva no contexto. Estas repetições transmitem à poesia um acentuado paralelismo ideológico e uma cadência rítmica sugestivos do assombro que a poetisa sente e deixa transparecer.

Vejamos como justifica Cecília Meireles a significativa afirmação que faz no dístico exclamativo com que inicia a poesia.

Note-se que a poetisa diz: «Que estranha potência, a vossa!» e nesta expressão o significante potência já, por si, mais quantitativo e ressonante que - poder - vem ampliado pela expressão quantitativa - que - e qualificado pelo adjetivo - estranha - que também aponta para uma indefinição, alargando o seu sentido; e, de certo modo, prepara o qualificante do 4.° verso - «Sois de vento». No mesmo verso, transpõe o possessivo - vossa - para o fim, o que, numa frase elíptica do predicado, e alargada pela anástrofe - pois a ordem direta seria - «Que estranha é a vossa potência!» transpõe o pensamento mais para o indefinido e alonga-o mais do que se o possessivo acompanhasse o substantivo.

«Sois de vento, ides no vento» - Primeira definição que contrasta com a afirmação do 2.° verso e que sugere a vaga, rápida, duração da palavra, quando emitida oralmente, embora o seu efeito seja violento, forte, potente, e tanto, que condiciona a vida do mundo. Por meio dela «tudo se forma e transforma».

Logo nesta estrofe, pois, paradoxalmente, diz das palavras - «sois de vento, ides no vento». Note-se que neste verso, nas duas frases marcadas pelo paralelismo já sugerido, se aponta para a fluidez da palavra, o que é reforçado pela repetição do signo – vento – em especial à maneira de leixa-pren do 4.º para o 5.º verso - ides no vento / no vento que não retorna. E, no entanto, apesar da fugacidade da sua existência, é à custa dela, palavra, já se disse, que «tudo se forma e transforma». Note-se, nestes dois últimos versos, o contraste entre rápido e tudo, o jogo etimológico – forma e transforma – e a rima interna, a fazer incisão sobre o poder da palavra e, de raspão, a apontar, mesmo aqui, para o tema da mudança e para a irreversibilidade - no vento que não retorna. O tempo passa, as palavras ficam, mas ajustadas a novas ideias. O que foi denotação pode vir a ser conotação, mas fica.

No dístico que constitui a 2.ª estrofe, a autora leva-nos a constatar mais um paradoxo que é vincado pelo emprego de um verbo de movimento - ides - em antítese com um verbo de estabilidade - quedais. Afinal, a palavra é frágil - «Sois de vento, ides no vento -» (verba volant - as palavras voam, diziam os latinos) e (contudo) «quedais com sorte nova!» Vai, mesmo, mais longe e o ponto de exclamação traduz o espanto experimentado: não só quedam, como quedam com sorte nova - isto significa a possibilidade que a mesma palavra tem de se aplicar a sentidos vários e renovados, e de passar de elemento caduco a elemento renovado, sempre rico de seiva que queda teimosamente. Alarga, pois, neste dístico, o pensamento que começou a desdobrar-se com o mesmo verso na 1.ª estrofe.

Na 3.ª estrofe só aparece um adjetivo - estranha - num verso de um dístico que se repete como um refrão, obsessivamente. A justificação da afirmação feita no 1.° dístico é transmitida, aqui, por substantivos predominantemente abstratos - amor, sonho, audácia, calúnia, fúria, derrota... e outros não expressos, mas que as reticências deixam supor. Note-se que, nesta série de definições sugestivas de palavras, umas apontam para o seu aspeto positivo - amor, sonho, audácia; outras para o negativo – calúnia, fúria, derrota – os dois primeiros com a tónica em u e terminados em ditongo decrescente fazem rima e anotam o sinal negativo que transmitem, e marcam uma certa gradação crescente pois a calúnia leva à fúria e sucessivamente à derrota onde a tónica em o aberta aponta para o nada, a destruição. Serve-se, assim, de várias conotações mais restritivas que desdobram a 1.ª afirmação de sentido genérico, coisificando a palavra quando a faz - porta de saída para a expressão do pensamento. Também, nesta estrofe, coisifica o estranho poder das palavras com uma imagem sinestésica - gustativa (mel) e olfativa (perfume), a exprimir o amor que sugestivamente cristaliza na objetivação expressiva da metáfora - em vossa rosa. Através desta sugestiva e poética perífrase, traduz simplesmente a força expressiva do sentimento que a palavra amor significa numa gama variada de sensações. Note-se a sugestão dada pelo verbo cristalizar - o qual polariza a fina essência do sentimento amoroso.

Nesta mesma estrofe merecem um comentário especial os dois últimos versos «Sois o sonho e sois o audácia». É, aparentemente, um verso mais curto, a sugerir a rapidez do sonho e a violência da audácia, é um verso copulado, marcado pelo paralelismo em que o 2.º membro marca já a transição para a série de sugestões expressivas do último verso, as quais se desbobinam em frase assindética, dissociando os vários momentos negativos do emprego das palavras, numa gradação crescente, como já sugerimos.

É, porém, na última estrofe que o pensamento da poetisa se vai abrir definitivamente a transmitir a mensagem poética que vem sendo anunciada desde o princípio. A poesia é uma chamada de atenção para a estranha potência das palavras, não empenhada, fundamentalmente, como Manuel Alegre no soneto intitulado - As Palavras - que é poesia de combate, de denúncia, ou como Eugénio de Andrade que, com a poesia, igualmente intitulada, se situa no cruzamento dos dois, numa poesia carregada de conotação e, por isso, menos objetiva na sua mensagem, mais próxima da pintura abstrata e mais pessoal. Também Ruy Belo em «Homens de palavra(s)» e Egito Gonçalves no poema «Com palavras» põem à nossa consideração a referida estranha potência das palavras que de cada um de nós faz um dicionário (mais ou menos volumoso). como diz o prosador, ou um arquivo, como sugere o segundo. O mesmo tema inspira, pois, cinco artistas que, embora se toquem em alguns pontos, têm, contudo, uma marca própria.

Cecília Meireles oferece ao nosso pensamento uma poesia, fruto de uma análise marcadamente objetiva, alertando-nos, sem nos obrigar a esforços para descobrir o que ela não teve interesse em esconder.

Por isso a 4.ª estrofe é a cúpula e sugestivamente nela predomina a imagem concreta para provar essa estranha potência das palavras. Novamente o contraste entre:

- o valor positivo delas - pois que, com letras - com palavras - se dá ou se tira a liberdade (note-se o seu quê de amargura que traduz a interjeição ai! e a insegurança sugerida pejas reticências);

- e o valor negativo - são fina retorta onde se contêm os venenos humanos. Na química, é a retorta elemento de trabalho para o bem e para o mal. Pois a autora conota, com este objeto. o poder destruidor, negativo das palavras. O seu aspeto negativo é significado concretamente e conotativamente por uma retorta onde se fabricam os venenos humanos - alguns dos quais já foram sugeridos no último verso da estrofe anterior. E, novamente, a poetisa nos leva a constatar essa estranha potência, nas duas comparações concretizantes e paradoxais

frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!

a primeira superlativada pela repetição do adjetivo frágil onde a comparação é feita com o vidro, estabelecendo o mesmo grau de fragilidade; a segunda, determinada pelo adjetivo poderosa, faz-se com o aço (e aço, aqui, pode conotar, por sinédoque, armas) e marca a superioridade das palavras em relação às armas. A exclamação que fecha estes quatro versos vinca bem o assombro que tal paradoxo determina.

Assinale-se, nestes dois versos comparativos, uma espécie de quiasmo: - os adjetivos estão nos extremos e os substantivos no meio, obrigando o 2.º verso a uma anástrofe um tanto violenta. Colocando os adjetivos em lugar de relevo, a nosso ver, torna mais expressivo o paradoxo.

A poesia termina com dois versos que polarizam o pensamento que, gradualmente, se foi desentranhando - as palavras são o grande motor do mundo -, pensamento que é transmitido num crescendo de valores que o penúltimo verso sugere: os Reis são superados pelos impérios e tudo pelos tempos. Veja-se a ligação assindética destes quatro elementos que, dissociados. marcam melhor os quatro valores.

Estes dois versos são reticentes pois que o que foi enunciado no penúltimo verso não abarca toda a incalculável missão das palavras. Muito mais situações poderiam ser equacionadas, e, mesmo assim, nunca cobririam toda a estranha potência das palavras. Até o verbo rodar indica essa gravitação do mundo rotativamente a partir do centro vital que são as palavras.

Poucos são os adjetivos no texto e os poucos que há são abstratizantes.

Predominam os substantivos, marcadamente abstratos, ao serviço da mensagem poética que roda em torno de uma definição, o que solicita, naturalmente, o predomínio do substantivo.

Dois sons têm um certo relevo na poesia: a sibilante e a labiovelar (f, v). Parece-nos que eles poderão ajudar a sugerir a mobilidade e a fluidez das palavras e também a sua potência, (f. v.) - o que é principalmente sensível nas duas primeiras estrofes.

Cecília Meireles foi, pois, muito feliz nesta poesia, quer pelo rico conteúdo ideológico que encerra, quer pela leveza e naturalidade com que conseguiu sugeri-lo.

 

Lilás Carriço, “Exploração do poema – Ai, Palavras!” in Literatura Prática 11.º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4.ª ed.) (1.ª ed.: 1977)