terça-feira, 8 de outubro de 2019

Na tua face, de Vergílio Ferreira – Crónica de Eduardo Prado Coelho



LUC E LUZ

1. O milagre repete-se. Por mim, julgo poder dizer que tudo começou em 59, no momento da publicação de "Aparição". Lemos um romance de Vergílio Ferreira, e temos a sensação de que se atingiu um limite, que tudo o que havia a dizer ficou dito, que as palavras se esgotaram no seu esforço obsessivo de tocarem o essencial. Começamos a temer que o próximo romance do autor seja apenas uma versão atenuada e algo fatigada de uma irrepetível experiência anterior. Uma ou outra vez poderá ter sido assim: "Rápida, a sombra" tinha um título magnífico, mas não parecia trazer nada de novo. Contudo, na maior parte dos casos, foi o deslumbramento, e isso parece acentuar-se nas obras mais recentes. Cada uma delas surge, logo na portada, como uma espécie de declaração final. No entanto, vai ainda "mais longe", consegue encontrar novas figuras, novas imagens, novas situações. Aconteceu com o "Para Sempre" e "Até ao fim". Podemos pensar (é um pouco o que o autor sugere em páginas recentes do seu diário) que "Em nome da terra" vivia sobretudo de uma abordagem impiedosa e frontal de uma área ficcionalmente "difícil": a velhice – e daí o sucesso junto dos leitores. Contudo, "Na Tua Face" consegue ir mais longe. A verdade é que esta metáfora do "mais longe" e do “mais perto” funciona mal em literatura. Não se progrida no terreno da arte. O que eu poderia dizer em relação a "Na tua face" é que Vergílio Ferreira consegue escrever um livro em que reencontramos quase todas as manchas temáticas do romance anterior, mas o registo em que o livro se escreve, o seu plano de enunciação, tem uma juventude, uma desenvoltura, uma agilidade, um humor, que nos fascinam e subjugam. Este é um romance que esqueceu o fim, que deu a volta sobre si próprio e se recomeça no princípio dos princípios, no encantamento dos primeiros gestos e das imagens iniciais. Desde a primeira página que o leitor compreende que Vergílio Ferreira escreve numa espécie de estado de graça, e que tudo lhe vai ser permitido – pela simples razão de que a escrita repousa na serenidade de uma visão, caminha encostada ao milagre de um rosto infinito e volátil, é uma escrita que se escreve a partir da "tua face", e para ela se dirige com a nitidez de uma irrepreensível evidência.
2. Demos apenas aquele mínimo de indicações cénicas que permitirá ao leitor saber de que estou a falar. O "protagonista" do romance, aquele que assegura o fio da enunciação, é Daniel, médico escolar, que ganha uma parte da sua vida fazendo desenhos e ilustrações, e gostaria de ser um verdadeiro pintor. Daniel casou com Ângela, professora universitária de Estudos Clássicos, para quem toda a sabedoria do mundo se condensou no “De Rerum Natura” de Lucrécio, a ponto de preconizar um método para as relações sexuais tirado do Livro IV , e que é suposto favorecer a fecundação da mulher. Tiveram dois filhos, Luc e Luz. Luc é uma abreviatura de Lucrécio, evidentemente, criança taciturna e meditativa, que procura saber a razão de todas as coisas, e irá desaparecer em circunstâncias trágicas. Luz é Luzia, e toda a sua vida decorrerá na obsessão das imagens e da luz que as sustenta fará fotografia. Neste romance de tese nenhuma, mas onde as interrogações se multiplicam, Luc e Luz são os dois polos de um enigma que é o enigma tão banal da própria banalidade de as coisas serem como são, e com elas se fazer essa experiência desesperada e aflita a que se chama habitualmente "a vida".
Poder-se-á dizer que neste livro, como em quase todos os romances de Vergílio Ferreira, "não há histórias". É verdade, se por isso entendermos uma narração em que a sequência dos acontecimentos suscita relações de consequência. Não é o caso. Vergílio Ferreira aprendeu de Lucrécio que as imagens têm uma velocidade própria, e atravessam agilmente os ares, sendo capazes de percorrerem num só ponto do tempo um espaço indizível, conseguindo, no seu curso alado, atravessar e penetrar em todas as coisas. O modelo deste livro está nos versos em que Lucrécio nos fala nas visões do espírito e nos diz que "muitas imagens das coisas erram de muitas maneiras em todos os sentidos e em todo o lado, subtis como teias de aranha ou folhas de ouro, unindo-se nos ares ao acaso dos encontros". E aquele sentimento de que este livro combina a experiência de um mundo enclausurado na própria memória com um sentido contagiante da incessante juventude das coisas poderá encontrar a sua fórmula mágica nestes versos de Lucrécio: "Quanto mais o teatro está fechado na estreiteza dos seus muros, mais as coisas se dispersam com uma graça difusa na luz captiva que as inunda".
3. Diria mais: o "tema" deste livro, se entendermos por esta palavra a designação daquilo que o move, é algo que constitui precisamente a matéria do Livro IV de "De Rerum Natura". Para Lucrécio, existem imagens que aparecem como duplos das coisas: são membranas que se desprendem da superfície dos corpos ("quasi membranae summo de corpore rerum/ dereptae"). É dessas membranas vagabundas que se vai tecendo o romance de Vergílio Ferreira. Tudo se duplica: “Luzia jogava muito ao espelho em miúda, não o disse já?, para inventar o imaginário na distância do real. Porque todo o real precisa de outro real para existir." Lucrécio ensina-nos: se colocarmos a mão debaixo dos olhos e os pressionarmos, verificamos que tudo se duplica: tornam-se duplas as chamas dos archotes, duplos os móveis da casa, duplos os rostos dos homens, e gémeos os corpos. "Na Tua Face" multiplica as circunstâncias em que esta experiência se refaz: é a relação permanente com Ângela e a imagem de Bárbara que a duplica, é a experiência da radiografia e a sua generalização imaginária a um mundo todo ele radiografado, e o trabalho de Luz com a fotografia e a sua estranha relação com os seres fotografados.
A experiência do duplo, ou do invisível das coisas ("a fotografia realiza o impossível de se apoiar no real e de o dissolver na sua própria aparência"), ou do reverso das coisas, conduz-nos inevitavelmente ao grande motivo deste livro, que é o de que todo o horror faz parte da beleza Algumas das páginas mais terríveis de "Na Tua Face" resultam de uma infatigável alucinação do monstruoso (e que nos dá o lado Raul Brandão do autor). Recusando a leitura da Beleza que um antigo colega faz de Plotino, o protagonista obriga-nos a percorrer o mundo como uma galeria de horrores que participam da beleza do mundo tal como Deus a inventou. Este livro funciona como espécie de harmónio metafísico em que tudo acaba por se redimir em tudo numa permanente oscilação de sublimações e des-sublimações. Porque há uma beleza que é feita da recusa da fealdade. "Mas há outra beleza, outra, e se calhar tem de se lhe dar outro nome para não haver contrabando. A força das coisas."
É desta beleza outra que se fazem algumas das páginas inesquecíveis deste livro: a visita dos pais a casa de Luzia, a filha, e o espanto de descobrirem que ela fotografa os amantes nus, coleciona as suas imagens e os considera mortos pelo facto de os ter fotografado; ou o suicídio de Luc; ou, por fim, num dos mais belos momentos de toda a ficção portuguesa, o modo como Daniel inventa para Ângela a realidade que ela deseja, e deixou de ver, e como ela lhe pede que ele continue a ver por ela, e como, no instante final, o que ela ainda pede é a fórmula enigmática de qualquer amor: “vê se vês os meus olhos a verem-te".


Luc e Luz”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 15 de outubro de 1993.




Na tua face, de Vergílio Ferreira – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 08-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/na-tua-face-vergilio-ferreira.html



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