sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Dar tempo ao tempo – crónica de Eduardo Prado Coelho




DAR TEMPO AO TEMPO

1. O número 129/130 da revista "Colóquio-Letras" é, como se tornou habitual nesta publicação, um deslumbramento. Não me refiro apenas ao aspeto gráfico, brilhante como sempre, mesmo se às vezes o leitor fica um pouco embaraçado com uns bilhetinhos que lhe caem no colo durante a leituras e não sabe bem onde os pôr. Refiro-me também à qualidade e diversidade dos textos que nos propõe, a começar neste número pela belíssima e comovedora homenagem a Azeredo Perdigão redigida por Eduardo Lourenço. Um único aspeto me inquieta um pouco: o atraso das recensões críticas, algumas relativas a livros que foram publicados há quatro anos. Mas talvez seja inevitável...
Se me detenho um pouco no caso do "Colóquio-Letras", é porque ela é um excelente exemplo de uma revista que melhora, e se vai tornando cada vez mais atraente para o leitor, sem ter necessidade de sê aligeirar – o que é certamente um caso raríssimo na Imprensa portuguesa.
No copioso e aliciante sumário do número de julho-dezembro de 93 gostaria de pôr em relevo um excelente texto de Maria Alzira Seixo, que se intitula "Que fazem os estudos portugueses com os estudos literários?", e que é uma análise extremamente interessante do "estado das coisas" da cultura portuguesa, pelo menos no campo mais diretamente ligado à literatura. Mas a literatura é aqui a plataforma emblemática de que podemos partir para a compreensão do resto.
Que diz a Maria Alzira? Que "o trabalho sobre o literário apresenta, em Portugal, alguns sintomas que, muito a contragosto, terei de classificar de subdesenvolvimento" por um lado e, por outro lado, de lamentável deterioração". É muito curioso, mas extremamente sagaz, que a Maria Alzira vá buscar como exemplo de subdesenvolvimento o facto de por vezes não vermos o que os autores nos põem diante dos olhos pela simples razão de que os lemos com óculos que foram concebidos para conjunturas já ultrapassadas. Daí que seja "significativa a posição quase global que em Portugal se tem tomado perante a corrente do chamado Pós-Modernismo". E surgem então dois inesperados exemplos: a "Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires, toda marcada por um "relativismo sociopolítico" muito distante da ótica ideológica com que foi acolhida, e ainda o "Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago, que se caracteriza, segundo Maria Alzira Seixo, por “traçar sequências alternativas para os acontecimentos históricos" (e a Maria Alzira poderia já ir buscar o exemplo anterior da "História do Cerco de Lisboa").


2. No que diz respeito à lamentável deterioração, exemplos não faltam. Mas não deixa de ser divertido encontrarmos no texto já um pouco antigo de Maria Alzira Seixo esta frase que hoje podemos acolher com uma triste ironia: "Quanto à Televisão, aguarda-se a todo o momento que a multiplicação dos seus canais atribua à Literatura o lugar que merece nos sectores da informação e do comentário e que poucas vezes até agora foi atingido." Pois é, bem podemos nós continuar a aguardar...
O problema é de ordem mais geral. Passa também pelo modo exemplarmente desastroso com que se pretendeu acabar com a Rádio Cultura. Devo dizer que a minha ecologia mental fica um pouco abalada quando não posso deixar de aplaudir na mesma semana duas intervenções de Pacheco Pereira. Mas a verdade é que tanto o que ele disse sobre os riscos de um retorno às facilidades de um discurso de nacionalismo moralizante como ao erro cometido na tentativa de "aligeirar", a Rádio Cultura me parece absolutamente modelar. No fundo, são as duas faces de uma mesma moeda. É como se estivéssemos fatigados de manter o combate pelos valores essenciais da Modernidade e começássemos a sucumbir à tradição de um Portugal "profundo" feito de coisas "simples" e "naturais". Ora a Democracia é um combate permanente contra os seus inimigos, e contra nós próprios. A Modernidade também. E poderemos recordar que, para um liberal como Dewey, o liberalismo nunca era um dado natural mas uma luta a travar sem concessões?
3. Não cheguei a ter tempo para ficar com uma ideia de conjunto do projeto da Rádio Cultura Sei apenas que não é fácil conciliar os adeptos de um programa dirigido especialmente para a escuta da música clássica com aqueles que procuram falar em termos simples mas exigentes sobre problemas culturais do nosso tempo. Para os primeiros, os segundos serão sempre pessoas incomodativas que abusam da palavra a todo o momento. Por isso mesmo existe em França uma France Musique e uma France Culture. Na medida em que João Paes precisava de meter as duas numa só, a estratégia a adotar era particularmente delicada. Dificilmente possa avaliar os resultados. Pelo que ouvi. pareceu-me que havia um esforço extremamente meritório. Mas julgo que o projeto poderia melhorar se tivesse em conta três tipos de críticas: em primeiro lugar, era preciso evitar a imagem da cultura como algo que remete para uma espécie de prática bolorenta da rádio, segundo modelos e tecnologias manifestamente ultrapassadas. Por outras palavras, no plano cultural exige-se muito imaginação, muito sentido de inovação, e meios técnicos para isso.
Em segundo lugar, é extremamente importante a ligação à atualidade. A ideia de que a cultura é tanto mais pura quanto se mostra desligada das vicissitudes do tempo é obviamente funesta. E isto conduz-nos a um terceiro ponto: há a tendência para supor que uma emissão cultural apenas se deve ocupar de "objetos culturais", o que suscita a imagem de um circuito fechado. Ora é precisamente o contrário: a cultura é sobretudo um modelo de abordar toda a realidade, mas de a abordar em termos específicos. De que especificidade estamos a falar? A questão é complexa, mas julgo que fundamental.
4. A minha tese poderia formular-se deste modo: a cultura não é tratar as coisas fora do tempo, mas é um outro tempo no modo de tratar as coisas. Para utilizarmos uma belíssima e inesgotável expressão, podemos dizer que o gesto cultural por excelência é aquele que corresponde a um saber dar tempo ao tempo. Toda a barbárie contemporânea resulta essencialmente de se estar a cada passo a roubar tempo ao tempo. É preciso falar um pouco mais demoradamente em televisão? – impossível, não há tempo... Pretende-se num jornal tratar um tema com algum cuidado e profundidade? – não é possível, o leitor não terá tempo para ler... Pretende-se um verdadeiro debate de ideias? – impossível, quem é que tem tempo para ouvir falar de ideias? Procura-se que um projeto cultural (como o de Rádio Cultura) vá lentamente criando o seu público, atraindo-o, modelando-o, formulando-o? – logo o contabilista das audiências vem dizer que não há tempo para isso. Não bastam hoje associações de consumidores. Precisamos urgentemente de associações de defensores daqueles que pretendem dar tempo ao tempo.

“Dar tempo ao tempo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 26 de março de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Dar tempo ao tempo – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 25-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/dar-tempo-ao-tempo-por-eduardo-prado.html


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