DAR
TEMPO AO TEMPO
1.
O número 129/130 da revista "Colóquio-Letras" é, como se
tornou habitual nesta publicação, um deslumbramento. Não me refiro apenas ao
aspeto gráfico, brilhante como sempre, mesmo se às vezes o leitor fica um pouco
embaraçado com uns bilhetinhos que lhe caem no colo durante a leituras e não
sabe bem onde os pôr. Refiro-me também à qualidade e diversidade dos textos que
nos propõe, a começar neste número pela belíssima e comovedora homenagem a
Azeredo Perdigão redigida por Eduardo Lourenço. Um único aspeto me inquieta um pouco:
o atraso das recensões críticas, algumas relativas a livros que foram
publicados há quatro anos. Mas talvez seja inevitável...
Se
me detenho um pouco no caso do "Colóquio-Letras", é porque ela é um
excelente exemplo de uma revista que melhora, e se vai tornando cada vez mais
atraente para o leitor, sem ter necessidade de sê aligeirar – o que é certamente
um caso raríssimo na Imprensa portuguesa.
No
copioso e aliciante sumário do número de julho-dezembro de 93 gostaria de pôr
em relevo um excelente texto de Maria Alzira Seixo, que se intitula "Que fazem os estudos portugueses com os estudos literários?",
e que é uma análise extremamente interessante do "estado das coisas"
da cultura portuguesa, pelo menos no campo mais diretamente ligado à literatura.
Mas a literatura é aqui a plataforma emblemática de que podemos partir para a
compreensão do resto.
Que
diz a Maria Alzira? Que "o trabalho sobre o literário apresenta, em
Portugal, alguns sintomas que, muito a contragosto, terei de classificar de
subdesenvolvimento" por um lado e, por outro lado, de lamentável
deterioração". É muito curioso, mas extremamente sagaz, que a Maria Alzira
vá buscar como exemplo de subdesenvolvimento o facto de por vezes não vermos o
que os autores nos põem diante dos olhos pela simples razão de que os lemos com
óculos que foram concebidos para conjunturas já ultrapassadas. Daí que seja
"significativa a posição quase global que em Portugal se tem tomado perante
a corrente do chamado Pós-Modernismo". E surgem então dois inesperados
exemplos: a "Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires, toda
marcada por um "relativismo sociopolítico" muito distante da ótica
ideológica com que foi acolhida, e ainda o "Evangelho segundo Jesus
Cristo", de José Saramago, que se caracteriza, segundo Maria Alzira Seixo,
por “traçar sequências alternativas para os acontecimentos históricos" (e
a Maria Alzira poderia já ir buscar o exemplo anterior da "História do
Cerco de Lisboa").
2.
No que diz respeito à lamentável deterioração, exemplos não faltam. Mas não
deixa de ser divertido encontrarmos no texto já um pouco antigo de Maria Alzira
Seixo esta frase que hoje podemos acolher com uma triste ironia: "Quanto à
Televisão, aguarda-se a todo o momento que a multiplicação dos seus canais
atribua à Literatura o lugar que merece nos sectores da informação e do
comentário e que poucas vezes até agora foi atingido." Pois é, bem podemos
nós continuar a aguardar...
O
problema é de ordem mais geral. Passa também pelo modo exemplarmente desastroso
com que se pretendeu acabar com a Rádio Cultura. Devo dizer que a minha
ecologia mental fica um pouco abalada quando não posso deixar de aplaudir na
mesma semana duas intervenções de Pacheco Pereira. Mas a verdade é que tanto o
que ele disse sobre os riscos de um retorno às facilidades de um discurso de
nacionalismo moralizante como ao erro cometido na tentativa de
"aligeirar", a Rádio Cultura me parece absolutamente modelar. No fundo,
são as duas faces de uma mesma moeda. É como se estivéssemos fatigados de
manter o combate pelos valores essenciais da Modernidade e começássemos a
sucumbir à tradição de um Portugal "profundo" feito de coisas
"simples" e "naturais". Ora a Democracia é um combate
permanente contra os seus inimigos, e contra nós próprios. A Modernidade também.
E poderemos recordar que, para um liberal como Dewey, o liberalismo nunca era
um dado natural mas uma luta a travar sem concessões?
3.
Não cheguei a ter tempo para ficar com uma ideia de conjunto do projeto da
Rádio Cultura Sei apenas que não é fácil conciliar os adeptos de um programa dirigido
especialmente para a escuta da música clássica com aqueles que procuram falar
em termos simples mas exigentes sobre problemas culturais do nosso tempo. Para
os primeiros, os segundos serão sempre pessoas incomodativas que abusam da
palavra a todo o momento. Por isso mesmo existe em França uma France Musique e
uma France Culture. Na medida em que João Paes precisava de meter as duas numa
só, a estratégia a adotar era particularmente delicada. Dificilmente possa avaliar
os resultados. Pelo que ouvi. pareceu-me que havia um esforço extremamente
meritório. Mas julgo que o projeto poderia melhorar se tivesse em conta três tipos
de críticas: em primeiro lugar, era preciso evitar a imagem da cultura como
algo que remete para uma espécie de prática bolorenta da rádio, segundo modelos
e tecnologias manifestamente ultrapassadas. Por outras palavras, no plano
cultural exige-se muito imaginação, muito sentido de inovação, e meios técnicos
para isso.
Em
segundo lugar, é extremamente importante a ligação à atualidade. A ideia de que
a cultura é tanto mais pura quanto se mostra desligada das vicissitudes do tempo
é obviamente funesta. E isto conduz-nos a um terceiro ponto: há a tendência
para supor que uma emissão cultural apenas se deve ocupar de "objetos culturais",
o que suscita a imagem de um circuito fechado. Ora é precisamente o contrário:
a cultura é sobretudo um modelo de abordar toda a realidade, mas de a abordar
em termos específicos. De que especificidade estamos a falar? A questão é complexa,
mas julgo que fundamental.
4.
A minha tese poderia formular-se deste modo: a cultura não é tratar as coisas
fora do tempo, mas é um outro tempo no modo de tratar as coisas. Para
utilizarmos uma belíssima e inesgotável expressão, podemos dizer que o gesto
cultural por excelência é aquele que corresponde a um saber dar tempo ao tempo.
Toda a barbárie contemporânea resulta essencialmente de se estar a cada passo a
roubar tempo ao tempo. É preciso falar um pouco mais demoradamente em
televisão? – impossível, não há tempo... Pretende-se num jornal tratar um tema
com algum cuidado e profundidade? – não é possível, o leitor não terá tempo
para ler... Pretende-se um verdadeiro debate de ideias? – impossível, quem é
que tem tempo para ouvir falar de ideias? Procura-se que um projeto cultural
(como o de Rádio Cultura) vá lentamente criando o seu público, atraindo-o,
modelando-o, formulando-o? – logo o contabilista das audiências vem dizer que
não há tempo para isso. Não bastam hoje associações de consumidores. Precisamos
urgentemente de associações de defensores daqueles que pretendem dar tempo ao
tempo.
“Dar tempo ao tempo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o
suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 26 de março
de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “Dar tempo ao tempo – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 25-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/dar-tempo-ao-tempo-por-eduardo-prado.html
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