O
PROFESSOR EXEMPLAR
1. Entre
tantas coisas de que se faz a memória e o esquecimento de uma vida, como é que
nós nos agarramos a meia dúzia delas e lhes encontramos uma espécie de sentido
absoluto? Um dia, na margem de um trabalho que apresentei numa aula de
Literatura Portuguesa do Liceu Camões, o professor pôs uma observação que tem
estado presente em tudo o que depois escrevi ao longo de mais de 30 anos. Eu
teria utilizado mais ou menos uma expressão deste tipo: ''Ventilemos agora o
seguinte assunto." E o professor fez por escrito o seguinte comentário:
"Cuidado com as ventanias neste outono traiçoeiro..." A partir daqui,
as palavras que eu pensava ir utilizar num qualquer texto passaram a ser
avaliadas em função deste critério simples: serão elas falsas e artificiosas
como este "ventilar" – definitivamente banido do elenco das minhas
metáforas –, ou merecerão outra forma de acolhimento? Havia aqui uma questão de
gosto, evidentemente, mas também uma outra coisa, algo que eu poderia designar
como uma espécie de ética da linguagem.
A
observação de Mário Dionísio – porque era este o meu professor do Liceu Camões –
tinha ainda um segundo aspeto que me deu que pensar: seria mesmo o outono que era
"traiçoeiro", ou haveria algo de mais subtil no enredamento da frase?
Por outras palavras, quando Mário Dionísio me vinha falar num "outono
traiçoeiro", não seria isto uma forma de me dizer de um modo mais concreto
e indireto que é a linguagem que muitas vezes nos trai?... A verdadeira questão
consistia em compreender que vantagens resultavam para o conjunto da frase do
facto de as palavras se redistribuírem segundo afinidades que não eram à
partida as mais evidentes. Neste caso, a ideia de "traição" tinha
acorrido em torno da palavra "ventilar”, que era manifestamente uma
metáfora excessiva, metendo o vento onde não era chamado. Mas a
"traição" também: apesar da minha frase ser infeliz, havia um certo
exagero em dizer que ela me "traíra". Até que percebi que Mário Dionísio,
ao empregar uma frase feita ("este outono traiçoeiro", isto é, frio e
ventoso, capaz de nos “trair" com constipações e gripes) estava a fazer
passar o excesso da metáfora de um lugar-comum da linguagem. Mais uma lição
sobre o valor das palavras, o seu peso, a sua luz, a necessidade de as
ponderarmos bem antes de as escrevermos nos nossos textos.
2. Tudo
isto era para mim motivo de reflexão. Até por uma razão suplementar: na minha
perspetiva adolescente, havia de um lado a instituição, com as suas leis e a
sua ordem, e aqueles que eram os representantes dessa ordem, categoria onde
colocava os professores. Ora Mário Dionísio vinha confundir por completo esta
perspetiva: as informações que me chegavam por outras vias, fundamentalmente por
intermédio dos meus pais e dos colegas da época da Faculdade, davam-me uma
outra imagem de Mário Dionísio, como alguém que punha em causa a ordem
existente, essa ordem que para mim se confundia com múltiplas coisas da "ordem
do Liceu Camões", desde o reitor e a obrigação que nos impunha de usar
gravata, até às manifestações da Mocidade Portuguesa. Mas Mário Dionísio era,
na memória de amigos e colegas, o escritor socialmente empenhado, o intelectual
ligado ao Partido Comunista, o teórico do "neorrealismo" e ainda o
combatente antifascista que sempre havia lutado contra o regime de Salazar.
Acrescentarei ainda outro ponto: os seus críticos diziam, e eu podia começar a
ler coisas dessas nos jornais, que ele não dava a importância necessária à
"forma" da linguagem, e apenas se interessava pelo
"conteúdo" dos textos, e isso colava mal na minha cabeça com a
"lição" que ele me havia dado a propósito da palavra
"ventilar" e das "traições" que aparecem acompanhadas a
certas formas. Tudo isto fazia que Mário Dionísio, com o seu inevitável
cachimbo, a serenidade irrepreensível das suas aulas, o rigor do que nos ensinava,
a simpatia um pouco distante e severa com que nos tratava, me surgisse
simultaneamente como uma espécie de enigma, combinação estranha de ordem e
contestação da ordem, de formas e conteúdos contraditórios, e como o exemplo incontestável
de "o professor" – não o "professor" enquanto funcionário
de uma ordem institucional, mas o "professor" enquanto lugar infinito
de saber e modelo de vida.
3. Enigma,
disse. E foi isso que me provocou o desejo de ler Mário Dionísio. Li tudo o que
podia. Incluindo textos antigos e de acesso difícil, como a famosa "ficha
14". Contudo, cada texto que lia aumentava o enigma – é isso a literatura:
avançarmos na clareza, no limite da transparência, de um enigma, que é tanto mais
enigma quanto mais se parece aproximar dessa transparência inalcançável. Sei agora
– Mário Dionísio anunciou-mo, ao agradecer o exemplar de "Tudo o que
não escrevi" – que existe um "diário" de Mário Dionísio, que
espero que em breve venha a ser publicado. O mais adolescentemente possível,
imagino que nestas páginas irei compreender finalmente esta distância transferencial
em que "o meu professor" tanto contribuiu para estruturar o meu
universo (tanto naquilo em que o procurei "seguir" com[o] naquilo
em que sei que o "traí", até porque há mais ventos e outonos
traiçoeiros do que nós os dois podíamos supor). Imagino, enquanto leitor que as
espera com ansiedade, que elas irão trazer a palavra esclarecedora e definitiva,
sabendo, no, mais fundo de mim próprio, que o efeito será precisamente o
contrário. Até porque não posso deixar de pensar que o enigma da escrita de
Mário Dionísio tem muito a ver com o enigma, e a tragédia, da escrita deste
século.
4. Não só
da escrita, mas da não-escrita – e este ponto parece-me fundamental. Tão
importante é aquilo que Mário Dionísio foi escrevendo e publicando como
importante é aquilo que Mário Dionísio foi silenciando, num silêncio que não
foi apenas reserva e resistência, mas ajuste de contas, terrível certamente,
com uma certa forma de impossível. Digamos por outras palavras: o impossível de
continuar a acreditar numa ideia demasiado forte e empolgante, e o impossível
de deixar de acreditar. Prende-se a isto uma questão essencial, que eu gostaria
por agora de formular deste modo: como nos será possível manter a responsabilidade
ética e política da literatura, que é não apenas a responsabilidade de romances
e livros de poesia, mas também a responsabilidade única de uma só palavra, seja
ela o infeliz verbo “ventilar", sem cairmos nas modalidades desastradas, e
por vezes intoleráveis, das figuras mais ou menos exaustas da intervenção intelectual
tradicional?
“O professor
exemplar”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do
jornal Público. Sábado, 27 de novembro de 1993.
CARREIRO, José. “Mário Dionísio, o professor exemplar – Crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 10-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/mario-dionisio-o-professor-exemplar.html
Sem comentários:
Enviar um comentário