sábado, 12 de maio de 2018

Álvaro de Campos






uma arte de sentir
ÁLVARO DE CAMPOS




  • Álvaro de Campos, a refletir a insubmissão e rebeldia dos movimentos vanguardistas da segunda década do século XX, olha o mundo contemporâneo e canta o futuro.
  • Álvaro de Campos é o poeta, que, numa linguagem impetuosa, excessiva, canta o mundo contemporâneo, celebra o triunfo da máquina, da força mecânica e da velocidade. Dentro do espírito das vanguardas, exalta a sociedade e a civilização modernas com os seus valores e a sua "embriaguez" (ex.: Ode Triunfal...).
  • Diferentemente de Caeiro, que considera a sensação de forma saudável e tranquila, mas rejeita o pensamento, ou de Ricardo Reis, que advoga a indiferença olímpica, Campos procura a totalização das sensações, conforme as sente ou pensa, o que lhe causa tensões profundas.
  • Como sensacionista, é o poeta que melhor expressa as sensações da energia e do movimento, bem como as sensações de "sentir tudo de todas as maneiras". Para ele a única realidade é a sensação.
  • Em Campos há a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável, que o leva a querer "ser toda a gente e toda a parte". Numa atitude unanimista, procura unir em si toda a complexidade das sensações.
  • Mas, passada a fase eufórica, o desassossego de Campos leva-o a revelar uma face disfórica, a ponto de desejar a própria destruição. Há aí a abulia e a experiência do tédio, a deceção, o caminho do absurdo.
  • Incorporando todas as possibilidades sensoriais e emotivas, apresenta-se entre o paroxismo da dinâmica em fúria e o abatimento sincero, mas quase absurdo.
  • Depois de exaltar a beleza da força e da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida, a poesia de Campos revela um pessimismo agónico, a dissolução do "eu", a angústia existencial e uma nostalgia da infância irremediavelmente perdida.
  • Na fase intimista de abulia, observa-se a disforia do "eu", vencido e dividido entre o real objetivo e o real subjectivo que o leva à sensação do sonho e da perplexidade (ex.: Tabacaria). Verifica-se, também, a presença do niilismo em relação a si próprio, embora reconheça ter "todos os sonhos do mundo".
  • Álvaro de Campos evolui ao longo de três fases: a de influência decadentista a que pertence o Opiário, a futurista e sensacionista, de inspiração whitmaniana, onde encontramos, por exemplo, a Ode Triunfal e a Ode Marítima; e a intimista ou independente, marcada pela abulia e o tédio, pela angústia e o cansaço, com poemas como O que há em mim é sobretudo cansaço, Esta velha angústia, Apontamento, ou os de Lisbon revisited.
  • Na primeira fase, encontra-se o tédio de viver, a morbidez, o decadentismo, a sonolência, o torpor e a necessidade de novas sensações; na segunda fase, há um excesso de sensações, a tentativa de totalização de todas as possibilidades sensoriais e afetivas (unanimismo), a inquietude, a exaltação da energia, de todas as dinâmicas, da velocidade e da força até situações de paroxismo; na terceira fase, perante a incapacidade das realizações, volta o abatimento, a abulia, a revolta e o inconformismo, a dispersão e a angústia, o sono e o cansaço.



(in Preparação para o Exame Nacional 2010. Português 12º Ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora, 2010, p. 41)


Álvaro de Campos é o único heterónimo que manifesta fases poéticas diferentes:
1)         Fase decadentista, influenciado pelo Simbolismo.
2)        Fase futurista/sensacionista: está influenciado pelo Futurismo de Marinetti e o Sensacionismo de Walt Whitman:
n  Futurismo: evocação da vida moderna, dos avances da técnica. Mas há também uma visão negativa da poluição física e moral dessa vida moderna.
n  Sensacionismo: vivência em excesso das sensações.
3)        Fase abúlica: após uma série de desilusões com a existência a sua escrita chega a uma fase niilista ou intimista que lembra muito ao ortónimo.

Características da sua poesia/estilo:
·         Presença do biográfico.
·         Verso: decassílabos agrupados em quadras (“Opiário”).
·         Verso livre, longo.
·         Estilo esfuziante, torrencial (fase futurista).
·         Poetização do prosaico (“lâmpadas”, “êmbolos”, etc).
·         Estilo exclamativo, anafórico, interjetivo; recurso à reiteração de apóstrofes e enumerações.
·         Comparações, metáforas e antíteses arrojadas.



Primeira fase
Segunda fase
Terceira fase
Designação
decadentista
futurista-sensacionista
intimista
Poemas exemplificativos
Ópiário
Ode triunfal
Lisbon revisited
Esta velha angústia
Tabacaria
Características
Tédio.
Enfado.
Náusea.
Cansaço.
Abatimento.
Necessidade de novas sensações.
Falta de sentido para a vida.
Necessidade de fuga à monotonia.
Poesia repleta de vitalidade.
Predileção pelo ar livre e pelo belo feroz.
Verso livre.
Estilo esfuziante, torrencial, anafórico, exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável.
Versos longos de duas ou três linhas.
Celebração do triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna.
Canto dos escândalos e corrupções da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo.
Intelectualização das sensações.
Excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman.
Incapacidade de realização.
Abatimento.
Sono.
Cansaço.
Desilusão.
Revolta.
Inadaptação.
Desânimo.
Frustração.


Textos de apoio

Texto 1

É o poeta cantor da vida moderna, das máquinas, da velocidade, da energia mecânica. Sente nos seus poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela civilização moderna industrial: “Ah! Não poder exprimir-me todo como um motorser completo como uma máquina!” Mas, a par desta paixão, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes…”
Álvaro de Campos aprende com Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das coisas como são”. Ele precisa de “sentir tudo de todas as maneiras”, não se contenta senão comsensações brutais”. Este desmedido sensacionismo vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a maior ruptura com a literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.
A “Ode Triunfal”, publicada no primeiro Orpheu, e a “Ode Marítima”, dada à luz no segundo, quer pela violência das sensações, à maneira do poeta norte-americano Whitman, quer pelo estilo escandalosamente novo, aparentemente desleixado, com uma grande irregularidade de estrofes e de versos (métrica), com uma imagética chocantemente arrojada, com enumerações caóticas, anáforas, aliterações e onomatopeias, constituem o ponto mais brilhante da poesia verdadeiramente Futurista.
Álvaro de Campos é, como Cesário Verde, um poeta urbano: como ele, embora de forma mais chocantemente futurista, focou a cidade e a sua multidão anónima e também o cansaço e o tédio de si mesmo. Campos evoluciona, nos poemas, de uma euforia desmedida para uma imensa angústia que muitas vezes se exprime por meio de amargas ironias. Veja-se, por exemplo, a grande ironia que transparece do poemaTabacaria”.
Toda a desordem de ritmos, toda a violência de metáforas e expressões, provêm do desespero de não poder meter nas palavras o tamanho das sensações. E o próprio Campos que afirma: “A emoção intensa não cabe na palavra: tem que baixar ao grito ou subir ao canto”.

(António Afonso Borregana, Fernando Pessoa e Heterónimos, Lisboa, Texto Editora, 1995, pp.17-18)

Texto 2

Álvaro de Campos é um poeta com um psiquismo irmão do de Pessoa mais a revolta, a afirmação. O poeta, que foi engenheiro e não tradutor comercial, não fica quieto, infiltrando-se de todas as atmosferas; mas é uma energia toda em construção, cujos limites não existem. Rompe fronteiras temporais e espaciais. Tem em si o mundo ou o desejo de o ter. Ele é o impulso constante, incontrolado até à dor. A força, o homem-deus, poderoso, o progresso técnico, o gosto dos ritmos e dos cheiros do mundo das máquinas. Uma consciência-projeto do novo, do original, do futurista, do que, sendo novo, vem destruir velhas funções. Há em Campos uma pujança, uma auto-afirmação que nãoem Pessoa, mesmo quando esta energia se exerce na afirmação da negação, energia que é motor, mola desencadeadora dum crescendo até ao paroxismo, até ao êxtase, que também é linguístico, gráfico.
Este trabalho poético acintosamente novo, gera apropriações novas da linguagem. Campos é o modernista, o terreno do que ainda não existe, mas se está a conquistar. Fome de tudo, ânsia do todo, do todo formado de todos as diferençasSentir tudo de todas as maneiras»). Esta ânsia marchando galopantemente em textos extensos e agressivos, os das odes sensacionistas, desenha píncaros, everestes de palavras, onde fôlego para gritar e, logo a seguir, cai verticalmente, angustiando-se em pausa, de ausência, de sonho de ternura, de evasão. Textos poéticos, como estes, proporcionam encenações de pequenos quadros-desejo ou recordação, catadupas de palavras evocando mundos de objectos semanticamente vinculados, numa fúria da quantidade, na euforia do grande, do maior, do mais poderoso, do super.
O mundo das odes sensacionistas é à escala do sobre-humano. Mas a poesia de Campos enraíza-se também no eu, diferenciado do mundo e, , vem o desgaste contemporâneo da energia. O desencontro (da escala humana e da escala desumana). Afinal, a desvalorização, a negação pela angústia e pela náusea desse mundo moderno que se incensa com hinos. A desmistificação do humano, a sua libertação de fantasmas e falsas Imagens, num esforço de lucidez quase também desumana. O afastamento amargo, irónico. Uma superioridade incompreendida e auto-complacente. Uma mistura de cepticismo, de esteticismo a penetrar o domínio do humano, de amoralismo, de desumanidade, de segurança na própria negação, que não está assim tão longe dos românticos. que agora «a luz suave do crepúsculo» é «a dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica» - mas o sujeito poético continua a «ter febre». Tudo que seja comandado pela energia dos desejos dos homens é fonte de regozijo, de cumplicidade, de comparticipação. (Maria Almira Soares)

Texto 3 – RELAÇÕES ENTRE CAMPOS E PESSOA

Campos estabelece com Pessoa uma relação privilegiada – que tem até a base linguística de dominarem os dois o inglês perfeitamente. Existe como que uma coalescência entre a personagem e o seu autor, que tem consequências numa hesitação na atribuição, de certos textos a um ou a outro (hesitação que começou por ser do próprio Pessoa); que tem outra consequência flagrante no facto de poemas de Campos, como “Insónia”, ou de Pessoa, comoLiberdade”, terem no outro uma versão, uma como que imitação. Existe um íntimo diálogo entre Campos e Pessoa, nos seus vários sentidos: histórico (a polémica pública entre eles); poético e textual; dramático (a carta a Casais Monteiro é explícita quanto à relação catártica Pessoa-Campos: «(...) pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida», etc. — in Textos de Crítica, p. 202). Para não falar dos variados pormenores de construção da biografia (exemplo: a costela judaica de Pessoa atribuída a Campos), ou do anedotário pessoano (diversas «intervenções de Campos» na vida privada de Pessoa).

(in Poesias de Álvaro de Campos, Cabral Martins, Editorial Comunicação, 1986, p. 18)



Avalie os seus conhecimentos acerca do heterónimo pessoano Álvaro de Campos.


1. Ligue os segmentos frásicos das duas colunas.

1. Álvaro de Campos é adepto do futurismo,
a) porque é o resultado de uma busca refletida e consciente para atingir a plenitude.
2. Campos é o heterónimo que apresenta um percurso evolutivo,
b) pontos comuns com o seu criador, nomeadamente o tédio existencial e a saudade da infância.
3. Após um período de cansaço e de tédio,
c) quando se dá conta da incapacidade de realização.
4. A fase futurista-sensacionista de Campos concretiza-se
d) Campos entrega-se a um histerismo de sensações.
5. O sensacionismo de Campos é diferente do de Caeiro,
e) pois nega a visão aristotélica da arte, procurando uma nova conceção de beleza.
6. A Ode Triunfal exalta
f) pelo facto de evidenciar três fases distintas.
7. O masoquismo do poeta verifica-se quando ele pretende pôr em prática
g) em composições poéticas de um ritmo torrencial, a traduzir a euforia do "eu".
8. Walt Whitman foi sem dúvida o seu modelo,
h) o sensacionismo levado ao paroxismo, desejando até ser triturado pelas máquinas.
9. A angústia existencial volta ao poeta
i) no que diz respeito ao excesso violento de sensações.
10. Na fase intimista, Álvaro de Campos apresenta
j) a sociedade industrial e cosmopolita.

(in Das Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 12.º Ano, Ana Maria Cardoso, Célia Fonseca, Maria José Peixoto, Vítor Oliveira, Porto, Edições Asa, 2005, p. 103)


2. Leitura orientada e notas para a análise literária de poemas do heterónimo pessoano Álvaro de Campos:

Poema

Incipit

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas

Ode marcial

Inúmero rio sem água — só gente e coisas,

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Que noite serena!

Que noite serena!

Trapo

O dia deu em chuvoso.

 

 

 


3. Ficha de aferição de leitura relativa aos heterónimos pessoanos Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Aqui.




CARREIRO, José. Álvaro de Campos. Portugal, Folha de Poesia, 12-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/alvaro-de-campos.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 16-12-2011. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/FP_AlvarodeCampos.htm)