terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Trapo: O dia deu em chuvoso (Álvaro de Campos)

 


TRAPO

 

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? tristeza? coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser suscetível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Deem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…

O dia deu em chuvoso.

 

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

 

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Relacione o estado de espírito do sujeito poético com as condições meteorológicas referidas na primeira estrofe.

2. Interprete o sentido dos versos 8 a 13.

3. Explique a importância da referência às memórias da infância nos versos 20 a 27.

4. Indique quatro dos processos que contribuem para marcar o ritmo do poema, fundamentando a resposta com elementos do texto.

 

Explicitação de cenários de resposta.

(As respostas podem contemplar os tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.)

 

1. Na primeira estrofe do poema, a relação entre o estado de espírito do sujeito poético e as condições meteorológicas evolui de uma relação de contraste para uma relação de semelhança:

– no início do dia, o estado de espírito do sujeito poético é de alguma tristeza (v. 4), mas o céu azul indicia alegria (v. 2);

– no decurso do dia, há uma evolução das condições meteorológicas («O dia deu em chuvoso» – vv. 1, 3 e 7), tornando-se mais parecidas com o estado de tristeza do sujeito poético.

2. Nos versos 8 a 13, o sujeito poético assume uma opinião que diverge da opinião dos outros relativamente ao conceito de elegância associado ao estado do tempo:

– os outros consideram que o tempo chuvoso é elegante e o sol vulgar e desagradável;

– o sujeito poético é indiferente a essa ideia de elegância, preferindo inequivocamente o sol e o céu azul, já que para tempo chuvoso basta o do seu mundo interior.

3. A referência às memórias da infância permite realçar o contraste entre um passado feliz e um presente infeliz.

A impossibilidade de recuperar o bem perdido da infância, metaforizada em «madrugada perdida» e «céu azul verdadeiro» (v. 22), acentua a infelicidade sentida no momento presente. De facto, os afetos, que fazem parte das memórias da infância do sujeito poético, contrastam dolorosamente com um presente opaco e triste, que se associa metaforicamente ao dia chuvoso.

4. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.

O ritmo do poema é marcado pela utilização de processos como:

– a repetição do verso «O dia deu em chuvoso» (vv. 1, 3, 7, 19, 23 e 28), que funciona como um refrão;

– a anáfora (vv. 8-10);

– a enumeração (vv. 5, 13 e 20);

– as repetições lexicais em final de verso (vv. 4 e 6; 8-11; 14 e 16);

– a irregularidade métrica;

– a alternância entre frases longas e frases curtas;

– as pausas no interior dos versos.

 

Fonte: Exame Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2013, Época Especial





Texto de apoio: O significado de verso do poema Trapo (Álvaro de Campos)

 

No poema “Trapo”, de Álvaro de Campos, qual o significado do verso «Até amaria o lar, desde que o não tivesse»?

Questão colocada por Sónia Martins  Estudante  Lisboa, Portugal

Resposta:

Importa lembrar que não se pode isolar um excerto, ou mesmo uma só palavra, de um texto literário, porque o seu sentido está intimamente ligado à totalidade do discurso poético.

Fazendo parte do 7.º verso da 2.ª estrofe — «Hoje quero só sossego. Até amaria o lar, desde que o não tivesse» — do poema Trapo, a frase «Amaria o lar, desde que não o tivesse» parece, à primeira vista, absurda, insólita, o que nos pode levar a considerá-la um paradoxo ou, usando a terminologia literária, um oxímoro. E talvez se deva à estranheza que tal frase provoca em qualquer leitor a dificuldade que a consulente sente em a interpretar.

Temos, em primeiro lugar, de ter em conta a forma como é iniciado o verso em que essa frase está inserida — «Hoje quero só sossego» —, uma frase assertiva, em que o sujeito poético evidencia claramente o seu desejo, que se resume a uma única vontade, o que está explícito pelo advérbio restritor só: sossego. Ora, essa atitude de «sossego» pressupõe a total ausência de inquietação, perturbação, ansiedade, ou seja, o não envolvimento em qualquer tipo de situação diferente da habitual. Aí está nitidamente expresso o desejo de entrega a uma passividade absoluta, a um estado tal de quietude  e de anulação de reacção que o leva(ria) a aceitar, a fazer concessões em relação a todo o tipo de situações, mesmo as mais improváveis, como é o caso da de «amar o lar».

E, para realçar a ideia de excecionalidade da concessão, o sujeito poético introduz essa frase com o advérbio até, preocupando-se em marcar bem a ideia de que «amar o lar» se encontraria no domínio do hipotético, de algo não real, pois utiliza a forma do condicional amaria, sem deixar de evidenciar que a existência de tal sentimento estaria intimamente ligada à certeza da impossibilidade da sua concretização.

Este jogo entre a verbalização de uma concessão e a sua anulação imediata — «desde que não o tivesse» — transparece a atitude irónica com que este sujeito poético encara o leitor e, naturalmente, a sociedade. Porque ele tem consciência do desconcerto que esta frase provoca no outro que a lê. Mas é precisamente essa a intenção deste sujeito poético: a de se afirmar como diferente, a de ostentar o seu desprezo pelas condutas e pelos códigos sociais, a de negar a sua identificação com os demais. Assim, o que para os outros é natural e desejável — ter um lar e amá-lo —, para ele, é algo desnecessário, inútil e, até mesmo, marca de infantilidade, de imaturidade.

Se analisarmos a estrofe seguinte, apercebemo-nos de que ele associa o carinho e o afeto às crianças, relegando a afetividade para o plano da imaturidade, da ingenuidade, de algo que não deseja para si e que despreza.

Eunice Marta, 10-02-2010

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-significado-de-verso-do-poema-trapo-alvaro-de-campos/27648 [consultado em 24-02-2023]


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