Que noite
serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando no mar!
Suave, todo o passado - o que foi aqui de Lisboa - me surge ...
O terceiro-andar das tias, o sossego de outrora,
Sossego de várias espécies,
A infância sem o futuro pensado,
O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas,
E tudo bom e a horas,
De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.
Meu Deus, que fiz eu da vida?
Que noite serena, etc.
Quem é que cantava isso?
Isso estava lá.
Lembro-me mas esqueço.
E dói, dói, dói...
Álvaro de Campos. Poesias.
Lisboa, Ática, 1993
Apresente, de
forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Neste
poema, o sujeito poético evoca o passado. Refira os traços caracterizadores
desse passado.
2. Os
quatro primeiros versos são a citação de uma cantiga, parcialmente retomada no
verso 13. Explique a função de cada uma destas citações.
3. Explicite
o sentido da oposição adverbial «aqui» (v. 5) e «lá» (v. 15).
4. Comente
o efeito expressivo da repetição «E dói, dói, dói...» (v. 17).
5. Analise
os sentimentos do sujeito poético, relativamente ao presente.
Explicitação
de cenários de resposta
1. O tempo evocado é o da
infância feliz vivida em Lisboa, caracterizado como:
- um tempo de encantamento, trazido pela cantiga
que a memória convoca;
- um tempo de «Sossego de várias espécies»,
físicas e mentais, vivido como um tempo despreocupado («A infância sem o futuro
pensado»);
- um tempo de harmonia, tranquilo e organizado, de
vivências familiares e domésticas, representado pelo «terceiro-andar das tias»,
com o «ruído aparentemente continuo da máquina de costura», e em que «tudo» era
«bom e a horas».
2. A primeira citação induz a
memória encantada da infância, o tempo em que o «eu» ouvia a cantiga evocada.
A segunda citação surge
quando a consciência do presente se interpõe entre o «eu» e a recordação da
infância. Continuando a ecoar, como que mecanicamente, na memória do sujeito, a
cantiga do tempo da infância revela-se um resto do passado morto, já sem
sentido, uma memória avulsa e incómoda, que o sujeito tenta inutilmente
racionalizar (situando-o) ou calar.
3. A oposição adverbial
«aqui» e «lá» marca o distanciamento que se opera na consciência do sujeito em
relação à memória convocada. O advérbio «aqui» refere o lugar do presente,
percebido como sendo o mesmo lugar da infância; «lá» remete para a infância,
que já só existe na memória do sujeito e está irremediavelmente distante do
«eu» presente.
4. A repetição de «dói»
produz o efeito de superlativação da dor do sujeito, efeito induzido cumulativamente
pelo valor semântico e rítmico da repetição. De facto. esta, construindo um
verso curto tripartido, escandido pela repetição do monossílabo de sons abertos
«dói», confere a essa dor o carácter de uma presença insuportável, de que o
sujeito não consegue libertar-se.
5. A consciência do presente,
surgindo do confronto com o passado evocado (v. 11), traduz-se no sentimento de
perda irremediável que domina o sujeito poético, relativamente ao passado, à
vida e à própria memória. Esta agudiza, no presente, a saudade de um tempo
definitivamente perdido («Lembro-me, mas esqueço.»). O verso final é expressão
do desespero do «eu», confrontado com a dolorosa impossibilidade de esquecer a
cantiga e, ao mesmo tempo, de recuperar a infância.
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Fernando Pessoa - Apresentação crítica,
seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa,
por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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