Acordo
de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São – tictac visível – quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela diretamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!
Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.
Quem serás? Doente, moedeiro falso1, insone2 simples como
eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.
Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.
Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita…
Tem graça: não tens luz elétrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!
Álvaro de Campos, Poesia,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002
____________
1
moedeiro falso: pessoa que falsifica moeda.
2
insone: pessoa que tem insónias.
Apresente, de
forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Identifique
os sentimentos do «eu» expressos nas três primeiras estrofes.
2. Refira
as sensações representadas no poema, transcrevendo os elementos do texto em que
se fundamenta.
3. Apresente
uma interpretação possível para o seguinte verso: «O coração latente das nossas
duas luzes» (v. 13).
4. Comente
o sentido da apóstrofe do último verso, tendo em conta a globalidade do poema.
Explicitação
de cenários de resposta.
1. Os sentimentos do «eu»
expressos nas três primeiras estrofes são, nomeadamente, os seguintes:
– «desespero» pela «insónia» que o afeta, em plena
noite;
– surpresa e júbilo, quando abre a janela e depara
com luz na janela de uma casa, sinalizando a presença de outro ser humano
acordado àquela hora;
– interesse pelo desconhecido também em vigília noturna;
– «Fraternidade» face a esse outro ser, também
acordado àquela hora da noite.
2. No poema, encontram-se
representadas sensações visuais, auditivas e tácteis, nomeadamente, através dos
seguintes elementos do texto:
– «O quadrado com cruz de uma janela iluminada!»
(v. 5), «Tom amarelo cheio da tua janela» (v. 21), «luz» (v. 9), «nossas duas
luzes» (v. 13), «janela com luz» (v. 19), elementos relativos a sensações visuais;
– «no silêncio todo» (v. 1), «tictac visível» (v.
2), «Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!» (v. 18), elementos
relativos a sensações auditivas;
– «Sobre o parapeito da janela da traseira da
casa, / Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro» (vv. 15-16), elementos
relativos a sensações tácteis.
3. O verso referido pode ser interpretado
nos seguintes termos:
– a perceção das «duas luzes» e do seu tremeluzir
convoca a ideia de um «coração» que pulsa, unindo aqueles dois seres, na
solidão da noite;
– as «duas luzes» assinalam a presença do humano
na noite «eterna, informe, infinita» e apelam a um sentimento de partilha de
«humanidade» entre os dois únicos seres acordados;
– as «duas luzes» são sinal da presença de duas
consciências despertas na noite «informe»;
– ...
4. A apóstrofe «Ó candeeiros
de petróleo da minha infância perdida!» faz intervir, no final do poema, a
nostalgia da infância e a consciência da sua perda, por parte do «eu». Este
facto pode ter, entre outras, as interpretações seguintes:
– o texto encerra, tal como se inicia, com a
representação de uma atitude interior negativa (ou disfórica) do sujeito
poético. Deste modo, a apóstrofe do último verso instaura (ou reinstaura), no final
do poema, a angústia do «eu» como o eixo central dos sentidos expressos no
texto;
– o verso final traz a lembrança, ou a saudade, da
infância como novo sentimento despertado pela sensação visual da luz ao longe,
pois essa luz é, tal como na infância do sujeito poético, produzida por um
candeeiro a petróleo. A apóstrofe é, assim, a irrupção dessa recordação nostálgica
num ambiente marcado por sensações e por considerações sobre o presente;
– ...
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º
639 (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto – Programas novos e Decreto-Lei
n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Português / Português B - 12.º
Ano de Escolaridade. Portugal, GAVE-Gabinete
de Avaliação Educacional, 2007, 1.ª Fase
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- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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