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Encostei-me
para trás na cadeira de convés e fechei os olhos, |
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E o meu
destino apareceu-me na alma como um precipício. |
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A minha vida
passada misturou-se-me com a futura, |
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E houve no
meio um ruído do salão de fumo, |
5 |
Onde, aos
meus ouvidos, acabara a partida de xadrez. |
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Ah, balouçado |
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Na sensação
das ondas, |
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Ah, embalado |
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Na ideia tão
confortável de hoje ainda não ser amanhã, |
10 |
De pelo menos
neste momento não ter responsabilidades nenhumas, |
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De não ter
personalidade propriamente, mas sentir-me ali, |
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Em cima da
cadeira como um livro que a sueca ali deixasse. |
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Ah, afundado |
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Num torpor da
imaginação, sem dúvida um pouco sono, |
15 |
Irrequieto
tão sossegadamente, |
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Tão análogo
de repente à criança que fui outrora |
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Quando
brincava na quinta e não sabia álgebra, |
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Nem as outras
álgebras com x e y’s de sentimento. |
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Ah, todo eu
anseio |
20 |
Por esse
momento sem importância nenhuma |
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Na minha
vida, |
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Ah, todo eu
anseio por esse momento, como por outros análogos – |
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Aqueles
momentos em que não tive importância nenhuma, |
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Aqueles em
que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender |
25 |
E havia luar
e mar e a solidão, ó Álvaro. |
Fernando Pessoa, Poemas
de Álvaro de Campos, Lisboa, IN-CM, 1992
I - Apresente, de forma bem
estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o texto lido.
1. No poema, o sujeito evoca uma
viagem de barco. Caracterize o espaço físico representado.
2. Explicite os efeitos de ritmo e
de sentido produzidos pela repetição da interjeição «Ah» (vv. 6, 8, 13, 19,
22).
3. Interprete a comparação entre o
«eu» e «um livro» (vv. 11-12).
4. Comente o sentido da alusão à
infância (vv. 16-18).
5. Explique por que razão o sujeito
poético anseia «por esse momento, como por outros análogos» (v. 22).
Explicitação de cenários
de resposta
1. O espaço físico
evocado é o convés dum navio, numa viagem marítima, em noite de luar.
A «cadeira de convés», em que o
sujeito se representa recostado para trás, o «ruído do salão de fumo», onde
«acabara a partida de xadrez» (vv. 4 e 5), a alusão à «sueca» (v. 12) são elementos
indiciadores do ambiente requintado e cosmopolita dos paquetes de luxo. O
movimento cadenciado das ondas, balouçando a cadeira de convés (vv. 6-7), e a
presença do «luar» (v. 25) completam o quadro com a sugestão de um mar
tranquilo.
2. A interjeição
«Ah» ocorre, anaforicamente, nos versos 6, 8, 13, 19 e 22. Esta anáfora marca o
ritmo do poema.
Por outro lado, pela associação
aos adjetivos «balouçado», «embalado», «afundado», o repetir da interjeição
«Ah» assinala um crescendo no estado de torpor em que o sujeito se encontra.
As duas ocorrências finais, em
que esta anáfora se expande em unidades maiores («Ah, todo eu anseio / Por esse
momento», «Ah, todo eu anseio por esse momento»), tornam mais claro o sentimento
expresso pela interjeição: o desejo de reencontro, por parte do sujeito, desse
instante e de «outros análogos» do passado.
3. A
comparação entre o «eu» e «um livro» é interpretável de vários modos,
nomeadamente:
• a casualidade banal do livro ali deixado é aproximada à
sensação de estar ali, esquecido de si, liberto de cuidados e de obrigações;
• ao rever-se na imagem do livro deixado ali por acaso, o «eu»
sublinha o seu desejo de quietude ou de anonimato – ele está ali na «cadeira de
convés» como uma coisa em que ninguém repara;
• ...
Nota – A apresentação de uma linha de interpretação plausível
é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente
aos aspetos de conteúdo.
4. A alusão
à infância é suscitada pela analogia entre o estado de espírito do sujeito
lírico – recostado na «cadeira de convés» – e a criança que fora «outrora»,
«Quando brincava na quinta». Ignorante dos saberes e das convenções dos
adultos, o «eu» da infância vivia o presente com a despreocupação da sua
inocência. Essa pureza original é como que recuperada naquele instante privilegiado
de semiadormecimento que permite ao sujeito abandonar-se à simples vivência do momento.
5. No final
do poema, o sujeito poético expressa, reiteradamente, o seu anseio por aqueles momentos
da sua vida em que, tal como na «cadeira de convés», se entregou, sem
preocupações, ao presente, vivido e apreciado enquanto tal.
O anseio do sujeito poético por
estes momentos «sem importância nenhuma» – em que nada acontece e a própria
consciência do «eu» está como que suspensa, semiadormecida – funda-se, nomeadamente,
nas seguintes razões:
– tais instantes possibilitam ao
«eu» experienciar o próprio «vácuo da existência», sem o problematizar ou
questionar dentro de si;
– esses momentos significam
repentinas aproximações do «eu» adulto à sua infância perdida, quando viver
fora, simplesmente, fruir em pleno cada instante.
Em suma, nestes momentos
realiza-se o anseio do sujeito poético pelo abrandamento da racionalidade, pela
vivência do imediato apreendido pelos sentidos («Na sensação das ondas», v. 7;
«sentir-me ali», v. 11).
II
– Comentário de texto
Elabore
um comentário global do poema transcrito, tendo em conta os níveis formal,
fónico, morfossintático e semântico, de modo a evidenciar, entre outros, os
seguintes aspetos:
- o
confronto de uma situação concreta com o sentimento intimo de vida expresso;
- a dialética
temporal na sua relação com uma determinada vivência do 'eu ';
- as
marcas de expressão do desejo de um "momento sem importância
nenhuma";
- relação
com a poesia de Álvaro de Campos por si estudada.
Fonte: Exame Nacional
do Ensino Secundário n.º 134. 12.º Ano de Escolaridade - Via de Ensino (4.º
curso). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 1997, 1.ª fase, 2.ª chamada
Sugestão de comentário
textual:
O
poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos"
de Álvaro de Campos apresenta um confronto entre a situação concreta em que
o eu lírico se encontra (no convés de um navio) e o sentimento íntimo de vida do eu-lírico, que se assemelha a um
"precipício" (v. 2). A vida passada mistura-se com a futura (v. 3), e
o eu lírico encontra-se num estado de transição entre o que foi e o que ainda
será. A sensação de balanço das ondas (v. 6) e a ideia de que hoje ainda não é
amanhã (v. 9) oferecem uma sensação de conforto e segurança para o eu lírico.
O
ruído do salão de fumo, onde a partida de xadrez acabara, é o único som que o
eu-lírico ouve, e ele sente-se balançado pela sensação das ondas, embalado na
ideia reconfortante de que hoje ainda não é amanhã e que, pelo menos neste
momento, ele não tem nenhuma responsabilidade.
A
dialética temporal na relação com a vivência do eu é uma característica
marcante do poema. O eu lírico encontra-se num estado de transição, em que o
passado e o futuro se fundem e se confundem. A alusão à infância (v. 16) sugere
a presença de um eu primordial, livre da responsabilidade e das preocupações
adultas. Esse eu primordial é como que recuperado no momento presente em que o
eu lírico se encontra, em que ele anseia por um "momento sem importância
nenhuma" (v. 23), em que possa se entregar à vivência do imediato
apreendido pelos sentidos.
As
marcas de expressão do desejo por um "momento sem importância
nenhuma" (v. 23) são uma constante ao longo do poema. O eu lírico
anseia por um momento de abrandamento da racionalidade, em que possa se
entregar à vivência do presente de forma simples e despreocupada. Ele deseja
sentir-se como um livro deixado na cadeira de convés por alguém que joga sueca
(v. 12), sem personalidade propriamente dita, mas sentindo-se presente ali, em
cima da cadeira. Esse desejo de um momento sem importância nenhuma é expresso
de forma intensa, como uma ânsia que percorre todo o poema.
O
poema "Encostei-me para trás na cadeira de convés" contém várias características
típicas da última fase do heterónimo Álvaro de Campos. A seguir, listarei
algumas delas:
Sensação
de vazio e angústia existencial: O poema reflete a sensação de vazio e de uma
existência sem sentido que permeia a última fase da obra de Álvaro de Campos.
Isso fica evidente nos versos "A minha vida passada misturou-se-me com a
futura, / E houve no meio um ruído do salão de fumo" (vv. 4-5) e "Ah,
todo eu anseio / Por esse momento sem importância nenhuma / Na minha vida"
(vv. 19-21).
O
poema reflete a preocupação de Álvaro de Campos com a falta de sentido da vida
e a inevitabilidade do vazio existencial, como indicado pela referência ao
"vácuo da existência" (v. 24) e à "solidão" (v. 25).
Consciência
da fugacidade do tempo: No poema, há uma forte consciência da passagem do tempo
e da fugacidade da vida, como indicado pela mistura da vida passada com a
futura e o anseio por momentos sem importância, em que o sujeito é capaz de se
livrar das responsabilidades e sentir-se como uma criança novamente.
Desejo
de escapar da racionalidade e da rotina: O poema reflete o desejo de Álvaro de
Campos de escapar da rotina e da racionalidade da vida quotidiana e se entregar
à simples vivência do momento. Essa necessidade de escapar é representada pela
imagem do sujeito lírico recostado na cadeira de convés, balançando suavemente
com o movimento das ondas, e pela analogia com a criança que brinca na quinta.
Em
suma, o poema de Álvaro de Campos apresenta uma reflexão sobre a passagem do
tempo e a pressão da responsabilidade na vida adulta. O sujeito poético
procura, através do desejo pelo "momento sem importância nenhuma",
escapar a essa pressão e regressar a um estado de inocência e despreocupação.
No entanto, o confronto entre a situação concreta e o sentimento interno revela
a complexidade e a inevitabilidade da dialética temporal.
ChatGPT (Feb 13 Version),
disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-20 (texto adaptado)
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- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
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