|
Ah a
frescura na face de não cumprir um dever! |
|
Faltar é
positivamente estar no campo! |
|
Que refúgio
o não se poder ter confiança em nós! |
|
Respiro
melhor agora que passaram as horas dos encontros. |
5 |
Faltei a
todos, com uma deliberação do desleixo, |
|
Fiquei
esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha. |
|
Sou livre,
contra a sociedade organizada e vestida. |
|
Estou nu,
e mergulho na água da minha imaginação. |
|
É tarde
para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora, |
10 |
Deliberadamente
à mesma hora ... |
|
Está bem,
ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico. |
|
É tão
engraçada esta parte assistente da vida! |
|
Até não
consigo acender o cigarro seguinte ... Se é um gesto, |
|
Fique com
os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida. |
Apresente, de
forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.
1. Indique
as relações de sentido que se estabelecem entre os quatro primeiros versos.
2. Explique
como se concretiza a atitude de «deliberação do desleixo» (v. 5).
3. Explicite
dois valores expressivos da antítese «vestida» / «nu» (vv. 7 e 8).
4. Caracterize
os lugares representados pelos advérbios «lá» (v. 6) e «aqui» (v. 11).
5. Comente
a importância dos dois últimos versos no contexto global do poema.
Explicitação
de cenários de resposta.
1. A satisfação de «não
cumprir um dever», expressa no primeiro verso, é reiterada em cada um dos três
versos seguintes, com diferentes modulações.
Esse sentimento de
satisfação, que a interjeição e a tonalidade exclamativa sublinham, é
traduzido, no primeiro verso, pelo evocar de uma sensação física agradável, «a
frescura na face», que é amplificada na imagem do segundo verso - «estar no
campo» -, e em cada um dos dois versos seguintes: «refúgio», «Respiro melhor».
O não cumprimento de «um
dever», referido no primeiro verso como causa de autocomprazimento ou de
agrado, é, sucessivamente, concretizado no acto de «Faltar» (v. 2), realçado na
sua consequência - «não se poder ter confiança em nós» (v. 3) - e identificado,
por fim, com o facto de o «eu» ter falhado encontros - «agora que passaram as
horas dos encontros» (v. 4).
2. A atitude de «deliberação
do desleixo» concretiza-se através dos seguintes atos do sujeito poético:
- faltar deliberadamente a
todos os encontros marcados, deixando passar as «horas» combinadas e fingindo
estar a aguardar o que «saberia» ser impossível: «a vontade de ir para lá»;
- marcar deliberadamente
para a mesma hora encontros em dois locais diferentes (cf. vv. 9 e 10), inviabilizando,
à partida, a sua comparência;
- …
3. A antítese «vestida» /
«nu», marcando a oposição entre a «sociedade organizada e vestida» e o estar
«nu» do sujeito poético, evoca, entre outros valores expressivos, a tensão
entre:
- aparência / verdade;
- prisão (conveniências,
regras exteriores) / liberdade (interior);
- organização / devaneio;
- sociedade / indivíduo;
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta
requer a apresentação de dois valores expressivos.
4. O advérbio «lá» refere o
lugar dos «encontros», da «sociedade», das regras, das conveniências, do exterior,
dos «outros».
O advérbio «aqui»
representa o lugar do «eu» que é «assistente da vida», do «eu» sonhador, do «eu»
como sujeito da imaginação, do «eu» poeta, criador, livre, descomprometido.
O contraste entre «lá» e
«aqui» é homólogo da oposição entre o longe (aquilo de que o sujeito se quer
afastado) e o perto (aquilo que ele define como o mundo interior da imaginação
poética e do sonho - «ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico»).
5. Os dois últimos versos
desenvolvem até ao absurdo a recusa do «eu» em sair do seu lugar de «assistente
da vida», em se comprometer com a ação exterior, prescindindo até do gesto de «acender
o cigarro seguinte», porque este, como gesto que é, participa da exterioridade
e da ação, pertence ao mundo da «sociedade organizada e vestida», dos «outros»
que esperam o «eu» nos «encontros» sempre falhados. A ausência de tal gesto é
uma imagem que conota (para além da suspensão no tempo) a recusa de
participação na vida social balizada pelo «dever».
O comentário «Se é um
gesto, / Fique com os outros», apresentando, em registo irónico, tal «gesto» recusado
como um símbolo do «desencontro que é a vida», constitui uma opção
(aparentemente definitiva) pela vida de devaneio, de imobilidade e de solidão,
apesar de o sujeito poético saber que terá de regressar ao «desencontro».
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
Sem comentários:
Enviar um comentário