Fonte: Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando
Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa:
Ática, 1956 (imp. 1990), p. 162.
Síntese escrita da análise do poema
“Maravilha-te, memória!”, de Fernando Pessoa ortónimo.
Este
poema tem como temática dominante a nostalgia da infância. A primeira estrofe
reflete uma interpelação à memória, um diálogo com esta, em que o sujeito se
fragmenta, dialogando com a memória e invocando a imaginação. Temos também presente,
ainda na primeira estrofe, um paradoxo, pois é impossível lembrar-se de algo
que nunca aconteceu, o que remete para a nostalgia da infância, onde há uma
memória vaga de algo que até pode nem ter acontecido, mas, devido ao seu
distanciamento temporal, é criada a ideia da sua existência. Vemos muito
presente uma dicotomia entre o passado e o presente, quer na primeira estrofe,
quer ao longo de todo o poema.
A
segunda estrofe apresenta o imaginário infantil, nos versos 5 e 6, ao
referir-se aos “contos de fadas”. Nos versos seguintes, é-nos apresentada uma
metáfora, que tem várias interpretações possíveis; refere-se, como todo o
poema, ao distanciamento entre a infância e o presente, indo buscar desta
maneira um pouco da temática da dor de pensar, no sentido em que o raciocínio
constante tirou-lhe a inconsciência em que vivia na infância, por isso os seus
“cansaços” são “ateus”, são cansaços inúteis, o sujeito poético não tem força
para acreditar em mais e sair desse ciclo de cansaços, os quais não têm solução.
Na
terceira estrofe, começamos com um claro contraste com o que foi dito na
estrofe anterior, sendo usado, mais uma vez, o paradoxo que vimos no segundo
verso. É usado o imperativo, como uma tentativa de voltar aos seus bons dias,
através da memória, da nostalgia da infância já referida anteriormente, e não
pela experiência factual. No último verso, para finalizar, vemos a, tão
presente ao longo do poema, dicotomia entre o presente e o passado, ao usar
tempos verbais que assim o indicam; também vemos aqui uma fragmentação do
sujeito, pois o “quem” a que o sujeito poético se refere pode ser interpretado
como sendo ele mesmo, ligando assim à infância feliz e o distanciamento dessa
altura.
Alunos Daniela Mendes, Adriana Gonçalves, Norberto Ferreira e Bernardo Martins do 12.º ano de escolaridade, na Escola Secundária de Albufeira, Ano
letivo 2017-2018
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.
Fernando
Pessoa, 23-07-1930
Fonte:
“O Pastor Amoroso”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando
Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa:
Presença, 1994, p. 108.
***
No poema “Agora que sinto
amor”, vemos como o amor faz desaprender “a aprendizagem de desaprender”, isto
é, faz “aprender” novamente. A perceção toma, então, o lugar da visão clara da
existência das coisas, e o perfume, a cor, sobrepõem-se às coisas em si. O amor
faz o interesse voltar-se ao perfume, do campo da perceção, em detrimento do
objeto. Isto é que é “novo” para o sujeito. Mais que isso, se antes a sensação
era sentida no aqui-agora; agora o que importa é a que está na memória
dos sentidos (“a respiração da parte de trás da cabeça”) – ele sente antes de
ver.
A visão perdeu a
preponderância sobre os outros sentidos. O olfato, sentido mais simples (e o
paladar, seu congênere), ligado ao irracional e ao animal (sexual, instintivo)
é que assume o papel principal.
Pedro dos Santos, Do
signo, do olhar e do funcionamento da linguagem poética de Alberto Caeiro,
heterônimo de Fernando Pessoa. Porto Alegre, UFRGS, 2013
***
PESSOA, Fernando, 1888-1935
Agora que sinto amor : [1º v.] /
[Alberto Caeiro].- 1930 Jul. 23.- 1 p. ; 27,3 x 21,3 cm
Nota(s):
Dactiloscrito a azul, com acrescentos autógrafos a tinta preta, incluindo no
final, dactiloscrito a vermelho, a menção "(examine very carefully)."
. - Parte do poema, muito emendado, está envolvido por traço a lápis que
culmina na indicação não autógrafa: "Retirar?", alterada depois para
"Retirado"; o mesmo lápis cancelou a composição precedente; no canto
superior direito, numeração não autógrafa a lápis vermelho "15"; na
margem esquerda "p. 101", a lápis, por A. Cruz . - Inclui, na parte
superior da página, dactiloscritos a azul, "Mother Paula - a applicação
local da Cruz de Guerra" : [inc.] e "E tudo é bello porque tu és
bella / (And all looks lovely in thy loveliness)", último verso do soneto
"Love's Blindness" de Austin (v. nota em "Poesia", Alberto
Caeiro, ed. lit. F. Cabral Martins e R. Zenith, Assírio e Alvim, 2001, p. 214),
cancelados a lápis; na metade inferior da página, dactiloscrito a vermelho,
"Todos os dias agora acordo com alegria e pena." : [1º v.]; e, no
final, um terceto autógrafo: "Quem ama é differente de quem é," : [1º
v.] . - Fragmento de folha de papel, com vincos de dobra in 4º, muito
deteriorada . - Publicado, sob o título geral "O Pastor Amoroso", em
"Poemas Completos de Alberto Caeiro", ed. lit. T. Sobral Cunha,
Presença, 1994, p. 108, incluindo em epígrafe "E tudo é bello porque tu és
bella".
1. Refira dois dos aspetos que contribuem para
caracterizar a juventude do sujeito poético, tendo em conta as duas quadras.
2. Explicite o sentido do verso 9: «E tudo se
passava numa outra vida».
3. «Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer»
(verso 11).
Apresente duas razões
que justifiquem a importância deste verso no desenvolvimento temático do poema.
4. Estabeleça uma relação entre o segundo terceto
e o título do poema, destacando dois aspetos pertinentes.
Cenários de respostas ao questionário
1.Refere
dois aspetos que contribuem para caracterizar a juventude do sujeito poético,
tendo em conta as duas quadras, desenvolvendo, adequadamente, dois tópicos seguintes,
ou outros igualmente relevantes.
Os aspetos que contribuem para caracterizar a juventude do
sujeito poético, tendo em conta as duas quadras, são os seguintes:
- a vontade de viajar (v. 2);
- o conhecimento do mundo a partir «das páginas dos livros que
já tinha lido» (v. 4);
- a perceção da beleza e da força criadora da natureza (vv.
5-6);
- o poder do sonho, que proporcionava uma experiência
imaginada da vida (vv. 7-8).
2. Explicita o sentido do verso 9,
desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes.
O verso 9, «E tudo se passava numa
outra vida»:
- sublinha a distância temporal
relativamente ao período designado como «[a] minha juventude» (v. 1);
- enfatiza a ideia de que o sonho
era sentido como real;
- sugere que as características
dessa «outra vida» lhe conferem uma singularidade que justifica a sua evocação
(saudosa) pelo sujeito poético.
3. Apresenta duas razões que
justificam a importância do verso 11 no desenvolvimento temático do poema,
desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes.
O verso 11, «Quando foi isso? Eu próprio
não o sei dizer», é importante no desenvolvimento temático do poema, porque:
- interrompe a evocação dos tempos
de juventude com uma pergunta, que sugere a intenção de datar as impressões
poéticas do passado, seguida de uma resposta que descarta essa possibilidade;
- evidencia um contraste entre a
rememoração do passado e o tempo presente;
- dá início à conclusão do poema,
introduzindo a forma verbal «sei», que será reiterada no verso seguinte.
4. Estabelece uma relação entre o
segundo terceto e o título do poema, desenvolvendo, adequadamente, os dois
tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
A relação entre o segundo terceto e
o título do poema pode ser estabelecida com base nos aspetos seguintes:
- o segundo terceto mostra que a
imaginação constitui um traço distintivo do passado («o poder duma criança» –
v. 12), expandindo a ideia sugerida pelo título;
- a inclusão do título no último
verso do poema gera uma circularidade de referências que permite associar a
vontade («era só querer» – v. 14) ao poder criativo.
Fonte:
Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino
Secundário - 11.º Ano de Escolaridade | República Portuguesa – Educação,
Ciência e Inovação / Instituto de Avaliação Educativa, I. P. (IAVE), 2024 (Decreto-Lei
n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 62/2023, de 25 de julho)
Comentário de texto
Redige
um texto, com um mínimo de 70 e um máximo de 100 palavras, em que exponhas uma
leitura do poema "E tudo era possível".
O
teu texto deve incluir:
uma parte inicial, em que indiques o título do poema e o nome do seu autor e na
qual identifiques o momento da vida que é recordado no poema;
uma parte de desenvolvimento, em que refiras a importância que o «eu» atribui
ao momento que identificaste, justificando a tua interpretação com um elemento
do texto e explicando a expressão «o poder duma criança» (verso 12);
uma parte final, em que identifiques um dos sentimentos dominantes no poema,
relacionando esse sentimento com o título.
Cenário de resposta
Apresenta
o texto objeto de leitura, indicando o título do poema e o nome do seu autor:
(a)
«E tudo era possível».
(b)
Ruy Belo.
Identifica
o momento da vida recordado no poema:
(c)
juventude / antes de ter saído da casa dos pais / momento no passado.
Refere
a importância atribuída a esse momento:
(d)
o «eu» considera esse momento da sua vida muito importante.
Justifica
a interpretação com um dos elementos seguintes.
Por
exemplo:
(e)
«era tudo florido» (verso 5) / «havia para as coisas sempre uma saída» (verso
10) / «entre as coisas e mim havia vizinhança» (verso 13) / «tudo era possível
era só querer» (verso 14).
Explica
o significado da expressão.
Por
exemplo:
(f)
esta expressão sugere que, quando se é criança, parece não haver limites.
Identifica
um dos sentimentos dominantes no poema.
Por
exemplo:
(g)
nostalgia / saudade (da juventude) / tristeza (pelo tempo que já passou) / perda
do poder de sonhar.
OU
felicidade
(pela recordação da infância).
Estabelece
uma relação coerente entre o sentimento dominante identificado e o título do
poema.
Por
exemplo:
(h)
evidencia a existência de uma relação de contraste entre o sentimento referido
e o tempo evocado pelo título, em que «tudo era possível».
OU
evidencia
a existência de uma relação de identificação entre o sentimento referido e a
ideia de um poder sem limites, evocada pelo título.
Fonte: Teste Intermédio
de Língua Portuguesa. 9.º Ano de Escolaridade (Decreto Lei n.º 6/2001, de 18 de
Janeiro). Portugal, GAVE, 2010
Textualização
No poema "E tudo era possível", de Ruy Belo, o
momento da vida recordado é a juventude, antes de o sujeito poético ter saído
da casa dos pais. Esse período é valorizado pelo "eu" lírico como
muito importante. A expressão "entre as coisas e mim havia
vizinhança" (verso 13) indica uma proximidade e familiaridade com o mundo,
refletindo a visão ilimitada da juventude. A expressão "o poder duma
criança" (verso 12) sugere a sensação de que, quando se é jovem, tudo
parece alcançável. O sentimento dominante é a nostalgia, ligada ao título, que
evoca um tempo onde tudo parecia possível.
Ruy Belo (1933-1978)
Doutorado em Direito Canónico pela Universidade
de S. Tomás de Aquino, em Roma, e licenciado em
Filologia Românica e em Direito pela Universidade de Lisboa, lecionou no ensino
secundário e foi leitor de Português na Universidade de Madrid. Foi diretor
literário de uma editora; chefe de redação da revista Rumo; adjunto do Diretor do Serviço de Escolha de Livros do
Ministério da Educação Nacional; bolseiro de investigação da Fundação Calouste
Gulbenkian; tradutor de numerosos autores
franceses e colaborador em várias publicações periódicas. Vítima de um edema
pulmonar, a sua morte precoce, em 1978, colheu de surpresa uma série de
escritores que lhe dedicam, no mesmo ano, uma Homenagem a Ruy Belo.
Iniciada em 1961, mas mantendo-se, na confluência da poesia dos anos 50,
equidistante quer de um dogmatismo neorrealista quer do excesso surrealista,
mas incorporando aquisições dessas duas formas de comunicação estética, para António Ramos Rosa, "A poesia de Ruy Belo é uma incessante
reflexão sobre o tempo e a morte e a incerta identidade do sujeito que em vão
procura o lugar originário onde se encontraria o ser na sua totalidade [...]. A
incerteza e uma profunda frustração, muitas vezes impregnada de uma trágica
ironia, dominam esta procura do lugar ontológico e da degradação
existencial". (Incisões Oblíquas, Lisboa, 1987, p. 66).
Abarcando a crítica irónica da realidade social
e a denúncia das diversas problemáticas que equacionam o homem, desde a sua
vivência espiritual e religiosa até ao envolvimento concreto e existencial, a
poesia de Ruy Belo é uma "forma de intervenção, de compromisso, de luta
por um mundo melhor [...] sem [...] o poeta pactuar com a demagogia, com o
oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de
beleza, construção de objetos tanto quanto possível belos em si mesmos"
("Nota do Autor" a País Possível, 1973).
Porto Editora – Ruy Belo na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora.
[consult. 2021-10-29]. Disponível em
Ruy Belo | Perfil literário
Representações do contemporâneo
• O poeta apresenta uma sociedade conservadora e antiquada,
profundamente hierarquizada, em que o regime político condiciona os cidadãos.
Ex.: “O portugal futuro”, “Uma vez que já tudo se
perdeu”
• O poeta valoriza na sua obra a temática religiosa, criticando a
Igreja católica por colaborar com o regime, denunciando a sua hipocrisia ao
ignorar os problemas dos mais desfavorecidos.
Ex.: “Nós os vencidos do
catolicismo”, “Versos do pobre católico”
• Muitos poemas apresentam uma reflexão sobre o real quotidiano,
muitas vezes de cariz irónico.
Ex.: “Exercício”, “Algumas proposições com
pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração”
Tradição literária
• Para além das ligações que este poeta estabelece com os
movimentos literários do seu tempo e que se caracterizam pela inovação e
subversão, a sua poesia reflete influências da tradição literária ocidental,
nomeadamente do texto bíblico.
Ex.: “Elogio da amada”, “Cólofon ou epitáfio”
• O poeta recupera ainda a tradição clássica com referências e alusões
a Homero e a Horácio.
Ex.: Toda a terra
• Na perspetiva pessimista da existência humana, na consciência da
efemeridade da vida, verifica-se uma influência da poesia barroca.
Ex.: “Um dia não muito perto não
muito longe”
• Cesário foi também um poeta que influenciou Ruy Belo,
nomeadamente na representação do quotidiano e nas cenas da vida urbana.
Ex.: “Rua do sol de Sant’ana”
• Camilo Pessanha, a dimensão musical e a importância do símbolo
surgem também em alguns poemas.
Ex.: “Morte ao meio-dia”
• A poesia de Fernando Pessoa apresenta ainda traços intertextuais
com a poesia do poeta, nas referências à dor de pensar e no pendor abúlico de
alguns poemas.
Ex.: “Ah, poder ser tu, sendo
eu!” “Os estivadores”
• Retoma o soneto nem sempre rimado, numa variante menos rígida
que a forma tradicional.
Ex.: “E tudo era possível”
Questões-tipo de exame
Figurações do Poeta
• O poeta é alguém que é cidadão e que intervém na sociedade,
através da sua poesia.
Ex.: “Portugal sacro-profano”, “josé o homem dos sonhos”
• O poeta é aquele que evoca a infância como uma forma de
reposição da harmonia.
Ex.: “E tudo era possível”
• O poeta é alguém que sonha um país e um mundo diferentes.
Ex.: “A mão no arado”, “Peregrino e hóspede sobre
a terra”
Arte poética
• O símbolo ganha grande importância na poesia de Ruy Belo: a
“criança” é o futuro, a “casa” é o país, a família.
Ex.: “Oh as casas as casas as
casas”, “Génese e desenvolvimento do poema”
• A sua poesia valoriza a musicalidade das palavras, abdicando dos
vocábulos do
quotidiano.
Ex.: “O Valor do Vento”, “Esta rua é alegre”
• A pontuação é muitas vezes subversiva, libertando a frase das
regras gramaticais.
Ex.: “Autorretrato”, “Cólofon ou epitáfio”
Fonte: Preparar o
Exame Nacional - Português 12º ano, Fernanda Bela Delindro e Maria João
Pereira. Areal Editores, agosto de 2021. ISBN: 978-989-767-729-8. Disponível em:
https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=22081888
CARREIRO, José. “E
tudo era possível, Ruy Belo”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2021. Última atualização: 19-07-2024. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/e-tudo-era-possivel-ruy-belo.html