terça-feira, 1 de outubro de 2019

O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho





A TRANSMISSÃO DO SEGREDO

1. Há alguns anos, numa Universidade do Rio de Janeiro, participava num daqueles colóquios literários com diversas intervenções seguidas de comentários e perguntas mais ou menos oportunas, quando olhei de repente para os vidros da janela e percebi que, embuçada naquele pesadelo de palavras sem fim, a noite tinha chegado. Quando foi de novo a minha vez de falar, assinalei o facto com estas palavras muito simples: "e subitamente é noite". Para o poeta Albano Martins, que estava entre os participantes do colóquio (a sua obra tem sido objeto privilegiado de estudo nos meios britânicos), a minha frase cintilou como uma citação que de facto era. Eu tinha clandestinamente evocado um poema de Salvatore Quasimodo, que, na tradução que Albano Martins nos dá agora, diz o seguinte:
“Cada um de nós está só no coração da terra atravessado por um raio de sol: e subitamente é noite."
É assim que os versos funcionam como sinais noturnos que vão tecendo o silêncio das cumplicidades. Porque, como escreveu Sandro Penna, "o mundo que vos parece feito de cadeias / está todo tecido de harmonias profundas". Vou um pouco mais longe: se a memória me não atraiçoa, estes versos de Quasimodo descobri-os há muito tempo numa versão que deles me chegava num pequeno livro de José Carlos de Vasconcelos, e foi precisamente a partir daí que a poesia deste grande poeta italiano me começou a fascinar – afinal, coisas tão precárias e breves, meia-dúzia de palavras quase banais, e que nos vinculam pela vida fora. Percebo assim o estranho prazer de um poeta-tradutor que procura salvar na sua própria língua coisas tão simples como o poema Eterno de Ungaretti: "Entre uma flor colhida e outra dada / o inexprimível nada." Ou mesmo a beleza eriçada de um único verso também de Ungaretti: "Um enxame copula-se no sangue" (o poema intitula-se Babel). E compreendo também que toda a tragédia quase insuportável de Pavese se possa condensar na estranha obsessão de um único verso: ''Virá a morte e terá os teus olhos". Um magnífico fotógrafo italiano, Mario Giacomelli, tem um ciclo de fotografias sob este título. Também ele ficou preso destas palavras.
2. O livro a que me tenho estado a referir intitula-se "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" em seleção, tradução e notas de Albano Martins com um desenho de Carlos Reis nas Publicações Dom Quixote. Pertence à magnífica coleção O Aprendiz de Feiticeiro, que Cruz Santos iniciou na Oira do Dia. É da mais elementar justiça assinalar o trabalho absolutamente excecional que algumas editoras têm vindo a realizar no domínio da tradução poética. É o caso da Assírio e Alvim que há pouco tempo publicou "O tempo aprazado" de Ingeborg Bachmann, autora mais conhecida como romancista do que como poeta ou ensaísta - a seleção, introdução e tradução pertencem a Judite Berkemeier e João Barrento. O mesmo João Barrento, aparentemente incansável nestas tarefas, tinha-nos proposto anteriormente "A sede entre os limites" de Ulla Hahn, na Relógio d'Água. E é da Relógio d'Água que nos chega, em tradução de Maria de Lourdes Guimarães, "A destruição do nada e outros poemas" de Thom Gunn. Imprescindível referir também a atividade da Cotovia, salientando apenas duas iniciativas recentes do maior interesse: as "Reflexões sobre o Sr. Pessoa" de John Wain, em tradução de João Almeida Flor e com um comentário de Joaquim Manuel Magalhães, e os "Poemas" de Charles Tomlinson num volume organizado por Gualter Cunha.
Na maior parte dos casos, estas traduções aparecem em edições bilingues - felizmente. Não sucede o mesmo com os "Dez Poetas Italianos Contemporâneos" de Albano Martins, e a minha preguiça de leitor fica um pouco frustrada. Quando leio esta estrofe belíssima:
"Rapazes correm sobre a erva, e parece / que os dispersa o vento. Disperso, porém, / só o meu coração, no qual perdura um vivo / relâmpago (oh juventude) daquelas / camisas brancas estampadas no verde", eu gostaria imenso de saber no próprio momento da leitura que palavras italianas estão por detrás dos vocábulos portugueses e que ordem as reúne e de igual modo dispersa.
3. A excelente coleção Poetas em Mateus, da editora Quetzal, segue o mesmo critério. Aliás, isso não me espanta, porque esta iniciativa está ligada a um projeto inicial da Fundação Royaumont e de Rémy Hourcade, e conheço os pressupostos deste para optar por edições não bilingues. Não os vou discutir por agora, embora não os partilhe inteiramente. Sublinho apenas algumas edições recentes na Quetzal: "A magia dos números e outros poemas" de Kenneth Koch, “A Pura Verdade” de Philip Levine, "Uma onde e outros poemas" de John Asberry (espero que uma futura edição nos dê uma imagem mais completa deste extraordinário poeta), "O jardim da dor e outros poemas" de Thomas McCarthy e "Uma luz diferente" de John Montague.
A metodologia da tradução de Royaumont e Mateus é apaixonante. Durante alguns dias, na presença do autor, uma dezena de poetas trabalha à volta de uma mesa em torno da tradução de meia-dúzia de poemas. Multiplicam-se as versões, as sugestões, as correções, as indignações e os deslumbramentos. Posso pessoalmente garantir que, quando se entra neste jogo, o prazer de se descobrir e combinar os matizes de várias línguas é enorme e rapidamente se transforma num vício. E uma espécie de ritual e dança em torno da quimera de uma língua ideal – aquela com que o próprio poema de origem se confronta.
4. "A destruição do nada" de Tom Gunn é um livro esplêndido no modo como nos propõe, na sequência impessoal dos seus monólogos, uma espécie de heteronímia deambulatória que define melhor do que qualquer teoria o trabalho da tradução. O tradutor é como o poeta, escrevendo os poemas que não escreveu: um deus existindo apenas na sua criação. E transmitindo o segredo, palavra a palavra.
Na orla
da compreensão:
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa interceção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.

(“O concerto ao ar livre”)


“A transmissão do segredo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 19 de março de 1993.




“O estranho prazer do poeta-tradutor – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/o-estranho-prazer-do-poeta-tradutor-por.html



sábado, 28 de setembro de 2019

Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho




ESTAMOS VIVOS E NÃO TEMOS TEMPO

1. Foi uma excelente ideia ir buscar ao texto complementar de atualização que Robert Bréchon escreveu para a história da literatura portuguesa de Georges Le Gentil (Editions Michel Chandeigne) uma excelente síntese da poesia de Gastão Cruz e colocá-la nas badanas do seu último livro, "Pedras Negras". Porque as inevitavelmente breves linhas que Bréchon consagra a cada autor são sempre muito mais do que um alinhavar apressado de qualificações. E porque no caso de Gastão Cruz elas apontam em meia dúzia de palavras o essencial. Dizem o seguinte: "Um lirismo crítico em que a inteligência, a cultura (nomeadamente de língua inglesa) e a consciência da linguagem velam na orla da obscura floresta que o poema é. Na sua obra as paisagens são verdadeiramente estados de alma. E poder-se-ia dizer, retomando as suas próprias metáforas, que a poesia é ao mesmo tempo o fogo que o devora e a água que extingue este incêndio da alma".


No caso de "Pedras Negras", livro publicado pela Relógio d'Agua no final de 95, estamos diante de um texto que confirma e reforça todas as observações de Bréchon - só que a intensidade e a coerência deste livro são aqui levadas a um extremo que nunca tinha sido atingido por este autor. Sabemos que Gastão Cruz é um nome ligado à dinâmica criada em torno da revista "Poesia 61", de que foi ao mesmo tempo animador e teorizador. Sabemos ainda como os anos 60 foram os derradeiros de um processo que definiu o avanço da modernidade, e que consistia em fazer emergir em cada geração um pico de radicalidade simultaneamente polémica e afirmativa polarizada em torno de uma teoria e de uma revista ou de uma coleção. "Poesia 61" apareceu assim como a manifestação de uma elevada e mesmo exaltada consciência da densidade textual do poema, apoiada numa leitura muito atenta dos clássicos (de Camões a Sá de Miranda, da lírica medieval a Blake, de Dante a Camilo Pessanha), e que recusava as explosões discursivas para valorizar a emoção implosiva: o poema rebentava para dentro e disseminava os estilhaços da sua catástrofe num reduto extremamente concentrado de palavras. Atitude de recusa às facilidades de uma exausta hemorragia surrealista, mesmo quando em Luiza Neto Jorge o surrealismo reaparecia sob outras formas mais violentas. Atitude que, por outro lado, sufocava o sujeito lírico numa cápsula de linguagem, o que poderia talvez encontrar metáforas e referências de primeira qualidade na evolução teórica e criativa de Carlos de Oliveira. De qualquer modo, é entre esta atenção à materialidade da escrita e a distração deambulatória e voluntariamente fragmentada da grande poesia dos anos 70 que se colocam os parâmetros de toda a literatura dos nossos dias.
2. Tem razão Bréchon quando nos diz que "na sua obra as paisagens são verdadeiros estados de alma", desde que não se deduza daqui que estamos perante uma atitude de espiritualização do real. As paisagens são estados de alma porque elas reenviam para uma visibilidade evaporada - é mais por defeito do que por afirmação. E os estados de alma são paisagens porque há neles um acentuado índice de impessoalidade (ou melhor, de uma subjetividade impessoal, de rosto velado e mãos errantes). E isto que nos situa no inconfundível registo da poesia de Gastão Cruz: uma oscilação entre uma escassez de apoio referencial e um excesso de espessura do lado do objetual. Donde, o poema não se fecha em si próprio, longe disso, mas remete para qualquer coisa que nos aparece como "uma matéria negra" (para utilizar a excelente expressão de um interessante livro de teoria literária de Manuel Frias Martins). Ou, se quisermos, nos termos de Bréchon, para “a orla obscura da floresta". Se neste último livro nos sentimos tão intimamente afetados, é porque nunca esta obscuridade foi tão obscura.
Saliento ainda outro ponto. Por manifesta influência camoniana, Gastão Cruz, foi sempre um poeta sensível às reversibilidades dialéticas: citando de novo Bréchon, a poesia é ao mesmo tempo o fogo que destrói e a água que extingue o fogo. Mas este processo recorta-se contra um fundo indialetizável. O que define o livro "Pedras Negras" é o facto de que o indialetizável cresce, o deserto cresce, o não-tempo cresce, a morte avança sobre os lugares da vida. Há uma luta entre "o líquido frio indivisível" e “os veios do visível divisível". Assim se lê no belíssimo poema "No mar": "Queremos ouvir-te respirar, / mundo mudado, os que no mar excêntrico / soltam braços, lembrados de que / o ar / não os pode salvar. Mas é idêntico / ao ar o mar sem / centro, figura // que fulgura fora do teu / corpo de mármore, lavrado / pelo tempo, mundo a / que não pertencem os náufragos / amados e um dia perdidos / nesse líquido frio / indivisível. Se pudessem ouvir // o teu sopro, seriam / devolvidos aos veios do visível / divisível? As estrelas de / sombra desfazendo / um céu sem falhas deixariam / cair sobre eles / de novo a sua cinza." Sublinhe-se: se a respiração pudesse porventura salvar os náufragos, as estrelas da sombra acabariam por vencer: sobre eles cairia de novo a implacável cinza.
E porquê? Porque o domínio da "mão escura" é hoje simultaneamente do lado da vida e do lado da morte. Que a morte seja cada vez mais morte, isso apenas significa que a intensidade do negro é infinita (a pintura de Soulages não diz outra coisa): "Sem formas igualmente está a casa / o que a torna infinita". Mas que a vida seja cada vez mais algo que se inclina para o lado da morte, isso quer dizer que o indialetizável aumenta na medida em que o tempo se retira do próprio tempo: "É outra vez setembro. A tarde / rege o dia / O presente regressa Chove de // leve na areia fria / Os meses não começam Estamos sempre / encerrados no corpo que nos resta // O passado escurece / Os meses não regressam / Estamos vivos e já não temos tempo."
Pedras negras? Sim, aquelas que atravessam o tempo: "Manishutsu rei de Akhad fez narrar / que os seus barcos cruzaram / o mar inferior / e depois de vencidos trinta e dois / reis extraiu dos montes pedras negras // Atravessou o mar para buscar / a pedra onde a mensagem perdurasse / Mil quinhentas e dezanove casas / de escrita no obelisco estão gravadas / Mais de quatro mil anos já passaram". Donde, as pedras negras atravessam o tempo. O desejo louco que move este livro é que as pedras atravessem o tempo e o não-tempo, o dialetizável e o indialetizável – que sejam negras para isso, para poderem passar. Assim: "Tu, // guia, que dormiste o derradeiro / sono do fogo ouvindo no abismo / o sopro da serpente e me guardaste / desse vento que se move / o mar do pensamento, / busca, pedi, do mar profundo a porta // que na selva da luz se oculta, cava / na parede do / dia a realidade Para / fora do sonho me guiaste / Das palavras passadas descuidado / cego do anjo que o gelado rio // como serpente outra serpente guarda / as suas asas como escada usaste / para subir à cúpula fechada / Na clausura do tempo abriste um / arco e saímos por / ele a ver de novo os astros"


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 1 de junho de 1996.




Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 28-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/gastao-cruz-por-eduardo-prado-coelho.html



quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho



COMO FALAR DE HERBERTO HELDER?

1. Em parte, é claro, pela altíssima qualidade desta poesia, mas também pelo halo de silêncio com que o autor a rodeia, e que nem exclui o recurso ao arame farpado, a verdade é que leitores e críticos sentem uma espécie de pânico, ou terror, em falarem ou escreverem de Herbert Helder. Talvez o problema resida neste "sobre". A poesia de Herbert Helder desaloja qualquer posição de sobranceria ou arrogância em relação ao texto. O resultado desta humilhação consentida é uma espécie de afasia. Poderemos resolver a questão dizendo que se escreve "a partir de Herberto Helder", ou então, num ombro a ombro incerto, numa fraternidade de escrita forçosamente assimétrica, “com Herberto Helder''? Experimentemos.
2. Um texto recente de José F. Salgado, "Herberto Helder e a Arte d'os Selos: apontamentos para uma poética herbertiana", publicado no magnífico volume I dos "Santa Barbara Portuguesa Studies", coloca muito bem as coisas:"Na sua condição de híbrido irredutível - nem inocência, nem demoníaco, 'nem música nem cantaria'- a poesia escapa a qualquer tentativa de totalização, a qualquer esforço de interpretação. Como assinala Lindeza Diogo, 'o texto herbertiano é muito crítico do leitor, porque este, interessado na captação de energia através de representações significativas, leva para o meio dos enigmas um medo menor'. Trata-se de uma poesia resistente, reticente, à leitura. Porventura, mesmo à de Deus. 'Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?’”.
Donde, o leitor deve levar para o meio dos enigmas um medo maior. Mas como falar com a boca selada de pavor?
3. A inibição crítica começa por ser o reconhecimento da impossibilidade da totalização. Isso nos é dito desde o título: na sua talha clássica, "do mundo" dá-nos a indicação de uma linha de fuga. Não "o mundo", entidade composta e fixada, mas "do mundo", fala ostensivamente em hemorragia e disseminação. Talvez por isso mesmo o crítico, ou, mais modestamente, o leitor-comentador, deveria falar, quando fala de Herberto Helder, em falar "de Herberto Helder" - à semelhança "do mundo". Em pura perda de sentido e de si. Em desequilíbrio: um "do" a mais, um "de" a mais, e tudo se perde, ou de nós foge.
4. "Do Mundo" apresenta-se como o prolongamento de um conjunto anterior, "Os Selos", e como a (re)escrita de um outro livro, "Retrato em Movimento", aqui recuperado naquilo "que foi possível fragmentariamente salvar". Este implacável rigor em relação a si mesmo, esta capacidade de devastação generalizada a que apenas escapam provisoriamente alguns destroços luminosos, não pode deixar de contribuir para aumentar o terror nas letras, e imobilizar sadicamente o leitor. Necessidade de ler sobre um horizonte de morte e destruição, com palavras sobreviventes e gestos náufragos. Política de terra queimada - onde tentaremos dar alguns passos hesitantes. Em desequilíbrio, em queda.
5. Toda esta poesia nos ajuda a aprender a arte do desequilíbrio. E, sobretudo, de como fazer desse desequilíbrio uma forma de andar, um diálogo com o vento, uma prática do "surf” poético: aprendizagem do uso produtivo da vaga, ou da memória bíblica de caminhar sobre as águas. O desequilíbrio como "miraculação do mundo".
Ao começar no desequilíbrio que move as próprias palavras. Leia-se na página 29: "a uma devagarosa mulher com cinco dedos potentes". Um "de" enreda a palavra para dentro de si mesma, mas, no processo de fragmentação interior, emerge, na permanente vacilação entre o nome comum (será que existe?) e o nome próprio, a palavra "rosa". Na página 37, "rosas divagadas pelas roseiras" imprimem o vago no cerne do vagar. No mesmo poema, o importante é a rosa no seu esplendor de corpo e nome: "E esperar que a lepra cubra os dedos, escrever: Rosa - I encadeado na rotação do nome. / Ir colher ao último alfabeto a rosa extremamente escrita." Repare-se mais uma vez na importância dos advérbios de modo. Na sua reticência, no seu retardamento, no seu retesamento, eles servem para "devagarar" os versos, fazendo que a demora se deixe habitar por uma expectativa erótica, femininamente intensificada.
6. Compreender também que tudo é lugar. Numa formulação pedante e pedestre, diríamos que há um processo expansivo de topologização. Não são apenas as coisas que funcionam como lugares - são também as palavras. Veja-se um exemplo da página 31: "as crianças entram no sono que as aguardava como uma sala". Portanto, as crianças não "adormecem", mas "entram no sono", e o sono é como uma sala (a aliteração ajuda a convecer-nos). Note-se ainda que a sala não "aguarda", mas "aguardava”, isto é, espetava desde sempre, intemporalidade do sono, as crianças que aí entram. Sala vazia, forrada de inconsciente e memória do mundo.
Veja-se agora na página 45 o verso em que se diz: "glicínias em declive pelo perfume dentro". Primeiro, a reversibilidade: não é o perfume que está nas glicínias, são as glicínias que estão no perfume. Segundo, estão "em declive".
Este ponto é importante. Ele permite-nos notar os principais eixos de deslocação no espaço da poesia de Herberto Helder: na zona mais forte, a verticalidade ascensional e eufórica ("este que chegou ao seu poema pelo mais alto que os poemas têm"), e que tende sempre a funcionar como uma explosão, uma abertura para o exterior; em contrapartida, a queda, a vertigem de cair no interior de si mesmo: processo de concentração, área de implosão e acumulação noturna de energias; por fim, a declinação dos corpos, o declive, a inclinação amorosa: “Beleza ou ciência: uma nova maneira súbita/ - os frutos unidos à sua árvore, / precipícios,I as mãos embriagadas.I E os animais aprofundam-se, encurvam-se os dias,I as pêras brilham,I o teu vestido é grande se te olho devagar.I O teu corpo transmite-se ao vestido.I Penso na glória do teu corpo./ E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis./ A terra move-se sobre os lados, ensinas-me/ o que não saberei nunca: a água ronda".
Notar que, neste feixe de correntes, o que se omite é a horizontalidade - homenagem ao desequilíbrio, evidentemente. A não ser sob a forma de círculo (os passos em volta, a água ronda, a forma redonda da iluminação) que aparece como emanação transparente do núcleo mais puro das coisas.
Porque coisas e pessoas (qual a diferença em termos de amor?) adensam-se e soltam-se em sístoles e diástoles que correspondem à pulsação do mundo. Privilégio das crianças e dos animais. Nesse ponto, os comentários de José F. Salgado são extremamente pertinentes: "A localização do animal é indeterminável, indecidível: entre a objetividade da coisa e a subjetividade do humano, o animal põe em causa a oposição humano/coisa, é o meio termo intangível entre a familiaridade da subjetividade absoluta e a absoluta distância da coisa irremediavelmente estranha. Nem Absoluto Outro nem Mesmo, o animal faz desmoronar-se a aparente polidez dos lugares do sujeito e do objeto."
Os animais, sem dúvida, mas também as crianças -todos os seres que sabem toccar no centro de si próprios. Tocar - como o pé toca a água, no milagre da poesia que caminha sobre o mundo, transportando o seu cardume de palavras sôfregas.
Mas não vamos ficar por aqui.


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 10 de junho de 1995.




QUESTÃO DE TACTO

1. Continuemos a ler “Do Mundo", de Herberto Helder (Assírio e Alvim).
No texto anterior, referia-me aos seres que se tornam opacos à força de se acumularem no centro de si mesmos. Falava de animais, falava de crianças. Na página 37, lê-se: "Porque a criança atravessa tudo e toca já no centro de si mesma." Tentemos compreender. Primeiro, a criança atravessa tudo. Gostaria de sublinhar que, em Herberto Helder, existe uma vacilação permanente entre o micro e o macro, o doméstico e o cósmico. Podemos caracterizá-la como uma incessante e brutal mudança de escala. Quando se diz que a criança "atravessa tudo", isso significa que a sua correria (no quarto, no pátio da escola) é ao mesmo tempo, e desde sempre, uma correria cósmica – algo que percorre o mundo, que o divide, o corta como um sabre, uma espécie de "laser" ruidoso e ladino. Porque "cada criança / arranca-se à criança lustral com as pratas eriçadas na cabeça, a química / floração trazida acesa". O mesmo se a gente falar no "quotidiano estelar das matérias". Ou ainda: “E quem tem tanta memória que a massa de átomos, / quando passe, / encrespe, acorde, alumie a última criança? / O mistério é só esse; primeiro são cor de pólen, transfundem-se depois em palavras siderais, botânicas." Ou por vezes encontramos o movimento inverso, do cósmico ao doméstico: "Uma volta atmosférica num astro uma / volta do astro no forno uma volta·do forno / em si mesmo."
A ideia de fechamento explica o uso inesperado de certos verbos: por exemplo, a imagem dos seres abotoados. Assim: "e o avesso e o direito, pulmões, estômago, sangue que o corpo todo abotoa". Mas não poderemos deixar de notar como estes botões, frequentes, têm também uma outra função. A imagem do corpo em Herberto Helder pertence à tradição esquizofrénica: por mais que se abotoe, é um corpo furado, e os furos são os próprios botões que o abotoam. Por outras palavras, o exterior e o interior, o direito e o avesso estão num processo de permanente reversibilidade. O corpo é apenas um lugar de passagem entre a sublevação dos órgãos e as grandes massas do mundo. Daí a proliferação de botões que são feridas, chagas, válvulas, buracos, queimaduras. Daí também que a poesia seja como uma ciência do corpo a corpo, do corpo contra o corpo, através de uma forma de ver que seja uma iluminação da matéria mais espessa, das trevas intestinais, das vísceras em brasa: na medida em que "o olhar é um pensamento", esta ciência, ciência última ou poesia mais alta, "é ver com o corpo o corpo iluminado". E então? "E então a luz une-se a toda a volta e cai no abismo dos espelhos."
Outro ponto importante, este, o do infinito das simetrias. Ou, se preferirem, o dos espelhos: o corpo a corpo é também um espelho diante de outro espelho, ilimitadamente outro. "Um espelho em frente de um espelho: imagem / que arranca da imagem, oh / maravilha do profundo de si, fonte fechada / na sua obra, luz que se faz / para se ver a luz."
2. Poderemos falar num "tema" deste livro? A expressão é arriscada. Alguém poderia supor que alguns dos tópicos que tenho vindo a inventariar (o desequilíbrio que precipita as palavras umas para dentro das outras, o devir-lugar de todas as coisas, a reversibilidade generalizada, a ascensionalidade eufórica, a queda implosiva, a circularidade emergente, a oscilação entre o cósmico e o doméstico, o corpo furado, o jogo itinerante dos espelhos, a simetria iluminada) seriam como que "processos". Não, se os entendermos como "técnicas do discurso poético". Sim, se tomarmos a palavra na aceção de Whitehead. Isto é, o único “tema" são os “processos".
Se lermos com alguma atenção, e um desmedido enleio, os poemas deste livro de Herberto Helder, verificamos que em todos eles existe um processo de transmissão de energia. Transmissão ou intensificação, mas a diferença é secundária. Transmite-se normalmente do mesmo ao outro. A intensificação é uma transmissão do mesmo ao mesmo, nada mais. Daí que cada poema agite uma interrogação: como passa a energia da mãe ao filho? como passa a energia do oleiro ao vaso? como passa a energia da dança ritual aos astros? como passa a energia do mestre ao discípulo? e do poeta ao poema? e da matéria ou ouro? e da palavra comum ao nome único e próprio? e do amante à amada? e da amada ao amante ("ensina-me o que não saberei nunca")?
A trama de leitura que nos favorece o acesso a cada poema tece-se em dois lances distintos: em primeiro lugar, precisamos de identificar o movimento dominante (por exemplo, no primeiro poema, a imagem do nascimento, a relação mãe-filho); em segundo lugar, verificarmos como este tema dominante está sobredeterminado por todos os outros. Mas existem ainda dois outros aspetos que merecem ser valorizados. Por um lado, todos os processos de transmissão de energia são dominados por dois paradigmas: o da criação poética (a mãe que dá à luz um filho é um modelo de arte poética), o da relação sexual (a distância que a energia percorre é sempre a da diferença entre os sexos: "o espaço entre os dois nomes: / eu e o mundo, mundo e poema, poema e nascimento. / Ou a morte, substantivo que raia"). Por outro lado, o ensinamento destes dois paradigmas mostra-nos que estamos perante polos com cargas diferentes: há sempre um polo positivo e um polo negativo, há sempre uma assimetria primordial.
Poderíamos dizer que o sexual visa a fusão (redução do outro ao mesmo: 1 + 1 = 1) e que o poético visa a disseminação (resistência do outro ao mesmo: 1+ 1 = infinito), mas seria uma simplificação abusiva. Nesta poesia, existe uma constante contaminação entre o poético e o sexual: a disseminação explode na fusão, a fusão implode na disseminação. "E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites / caem dentro dos dias – e eu estudo / astros desmoronados, mananciais, o segredo."
3. Como passa a energia? Repare-se que esta pergunta é apenas uma variação sobre a pergunta de que partimos: como falar de Herberto Helder?
Digamos que o que passa é muito pouco, ou nada: apenas a possibilidade de continuar a passar, e, por pouco que seja, passar cada vez mais: "a arte do ar queimado que passa pela boca". Podemos enumerar algumas modalidades da passagem. Por exemplo, a emanação: "como no corpo se forma o vestido". Por exemplo, a epidemia, os vírus, a expansão da lepra. Ou ainda: a devoração ("se se pudesse, se um inseto exímio pudesse, / com o seu nome de princípio, / entrar numa turquesa, monstruosa pela amplitude / da cor e do exemplo, / se até ao coração da pedra e dele mesmo / devorasse a matéria exaltada”).
Mas em todos estes processos há um que me apetece privilegiar. Nos cumes da altura em que o poema se arqueia existe um lugar que, muito banalmente (para quê sermos originais onde não há razão para isso?), é acima de tudo um lugar de harmonia: ouro, rosa. "É essa coisa que fazes / obscuramente – se um dia és lenha suada ardes / da tua própria resina se / torneias o vaso dás-lhe pela cinta quieta / uma pancada salgada um donaire / de onda, e tocas na curva da bilha: e ficas harmonioso –“.
O processo é – já o sentiram na pele – o de tocar. Aproximação com reserva, retraimento, um medo ainda maior, mas também acesso ao limiar do acesso, ao mais aceso do absoluto. O tocar declina-se em múltiplas formas de incitamento e recuo: no frémito, no arrepio, nos estremecimento, no corpo eriçado de prata e sal. Questão de tacto.

Questão de tacto”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 17 de junho de 1995, p. 12.




“Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/como-falar-de-herberto-helder.html



segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Vulcão, de Luís Miguel Nava – Crónica de Eduardo Prado Coelho



UMA ESTRADA QUE LEVASSE AO MAR

1. Talvez a temática mais insistente de Luís Miguel Nava possa transgredir a pauta de expectativas que o "leitor normal" tem em relação ao lirismo. Talvez a construção enredada, e extremamente meticulosa, dos seus poemas seja uma provocação para os apreciadores de formas escultoricamente elegantes e supostamente espontâneas. Talvez ainda a visceralidade desta escrita possa aparecer a alguns como uma falta de tacto ou um defeito de gosto. Talvez. Mas estas mesmas razões levam-me a pensar que nos encontramos, e sobretudo com o seu livro mais recente, "Vulcão" (Quetzal), perante uma das experiências literárias mais originais, perturbantes e apaixonantes da poesia portuguesa contemporânea.
Seja nos testos de configuração mais tradicional, seja nos fragmentos em prosa, que se aproximam por vezes da pura ficção narrativa, a marca inicial na obra de Luís Miguel Nava pode ser designada como uma forma emaranhada de dispor das palavras e de desenrolar o fio sintático da exposição. E isto verifica-se não apenas pela recusa de uma ordenação sequencial de sujeito a predicado, mas também pelo gosto de começar quase sempre por uma ponta perdida, um complemento desgarrado, uma circunstância fortuita, para depois nos impor um verdadeiro percurso por entre as palavras - "uma estrada que levasse ao mar"; e o leitor só pode repetir com o autor que "tinha de por ali haver uma estrada que levasse ao mar, que no seu halo matinal nos envolvesse, entre neblinas e fragrâncias, dessas que, até quando o escuro se apodera das raízes, continuam sempre a verdejar". Significa isto que o trabalho de leitura implica um esforço de desenredamento que corresponda à densidade do emaranhado textual. Contudo, nada mais fácil para um leitor que goste de avançar por dentro das palavras e do tecido que as une, e vá deixando nelas, como marcas na floresta, incisões de cumplicidade e reconhecimento. Esta poesia é sempre um movimento de simplificação. Quando a ele se adere, e aceitamos o rigor na sinalização dos caminhos, tudo se toma fácil e partilhável.
Existe ainda uma segunda marca distintiva, que á a iniludível crueldade, entre a memória erótica e a brutalidade cirúrgica, das formas de abordar a matéria do corpo. Embora o tema essencial seja deliberadamente “clássico”, tanto na poesia como na filosofia, e tenha essencialmente a ver com as relações entre a alma e o corpo, o que em nós resiste de início a esta forma de abordagem é o modo insistentemente imaterial como o corpo se decompõe e o modo pesadamente físico como a alma se encosta em nós à roupa e às vísceras, mas sobretudo o brutal curto-circuito que se opera do lugar do sujeito e da consciência: “estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida...". Entre o poço e o céu, entre o pus e a luz, não há lugar, bem previsto nem cativo, para o sujeito lírico, e sobretudo não há identidade confortável que se possa assumir. Com enorme precisão no traço, e uma sempre vincada visualidade, cada texto de Luís Miguel Nava implica a construção em nós próprios de um corpo glorioso, isto é, de um lugar de encontro, sideração e amor.
2. Leia-se O primeiro poema: "A carne que os guindastes/ suspendem, minha,/ rente à fosforência/ no abismo dos dias,// a mesma onde a rasura/ do tempo abre interstícios/ estendendo-a no mármore,// as máquinas que os astros/ perfuram erguem-na às alturas/ do espaço ou das colunas/ de que se nutre o tempo,// noite onde os astros/ escondem as raízes/ ou ramo de glicínias/ em dedos sufocados, carne/ onde inda vibram/ do extinto amor os ecos."
Como se pode facilmente ver, a entrada na matéria (expressão perfeitamente adequada às circunstâncias) não é sintaticamente evidente, uma vez que "a carne que... as máquinas erguem-na às alturas", embora este fio de sentido se duplique no facto de as máquinas que erguem serem aparentemente equivalentes aos "guindastes que suspendem" que aparecem na proposição relativa. De caminho, essa carne subjetiva-se através de um possessivo, "minha", e ganha um estatuto de fronteira "rente à fosforência" (que se irá repetir na vibração final proposta pela forma clássica "do extinto amor os ecos"), mas, ao mesmo tempo, torna-se mortuariamente anónima, ao deixar que "o tempo nela abra interstícios", "estendendo-a no mármore". Também não podemos deixar de vacilar um pouco na expressão "que os astros perfuram" (e que é mais facilmente compreensível se lermos noutra ordem: "as máquinas que perfuram os astros", o que designa nelas uma espécie de gigantismo e violência), tendo em conta que os mesmos astros vão também surgir na sua relação com as “raízes”, imagem que aparece comparada a uma outra em que se inscreve a dureza muda da relação amorosa: "ou ramo de glicínias em dedos sufocados". Note-se que um processo de transporte poético suspende esta “carne" ao verso anterior, isto é, aos "dedos sufocados”, tal como um guindaste a ergue antes de entregar o corpo ao demorado esvaziamento da sua carga afetiva (e podemos ler "carga" no sentido elétrico, como uma pilha carregável e descarregável).
Toda a experiência do leitor é deste tipo, isto é, corresponde a um percurso rigorosamente balizado pela surpresa das palavras, pela guinada das viragens semânticas, pela passagem incessante do exterior e do interior, do microcosmos ao macrocosmos, pelos ângulos sintáticos, e pelas convulsões e espasmos da matéria verbal. Alguns poderão pensar que estamos aqui perante a superstição formal da textualidade, o que seria, ou será, um rastro dos anos 60, mas é preciso sublinhar que em Luís Miguel Nava todo o poema é sempre muito mais do que isso, é um corpo que a si mesmo se agride, de si mesmo se desenreda, e em si mesmo se inventa como palavra, luz, irradiação, apelo ou chama libidinal, e as palavras acabam por ser, também elas, remetidas para o estatuto de pensos, ligaduras, restos de um lívido imaginário hospitalar, como gazes antiaderentes que emudecem as feridas e as iluminam por dentro. Que fica depois disto? Uma forma extrema, e agudíssima, de pensamento, mas de um pensamento reduzido à mais volátil e precária das marcas: "O que comera ao meio-dia encostou-se-lhe à memória, como a única coisa a que naquele momento ainda pudesse ir buscar alguma claridade. Vira nessa manhã um abutre poisado sobre o lavatório. Por causa disso, esquecera-se da cafeteira ao lume, tendo-a já depois encontrado quase vazia e o vidro da janela todo embaciado. Será também assim o pensamento, perguntou para si própria: algo volátil, capaz de embaciar um vidro?"
Num texto final, Luís Miguel Nava explica os mecanismos e fitos do seu trabalho: "Não foi sem dificuldade que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá Carneiro, a saudade se trava." As dificuldades também nós as sentimos. A errância dos desertos está presente nesta leitura. Mas compensa: em cada instante, em cada página, "entre as nossas mãos e a alma", alguma coisa acontece. Podem chamar-lhe amor. Ou, se preferirem, "a ininterrupta convulsão do oceano".


"Uma estrada que levasse ao mar", crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 20 de maio de 1995.




Vulcão, de Luís Miguel Nava – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 23-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/luis-miguel-nava-por-eduardo-prado.html



sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Sensinatos, de Henrique Levy



JÁ NÃO ME MATA A VIDA!

A Luis Levy

imóvel sobre uma pedra de negro basalto quente
o teu corpo nu desfia a noite
no tormento vazio das minhas mãos
sem te tocar
soam instantes intensos na tibiez do encoberto mar
existe um corpo de homem cabeça tronco membros despido
pelo cosmos desenhado em cores de lua percorrendo num
voo o escarpado desejo de amar

vozes resvalam talvez esteja louco
oiço seivas falantes procurando pensamentos obnubilados
é noite
já me perdi…
encontro sem do corpo desviar receios voltado para os teus
olhos o grito dos galos que vai tecendo na ténue luz a matéria
viva da tua face
a manhã insinua-se curiosa
livre invoca com um sopro rouco o mundo que nos alcança
somos duas vidas ansiosas deslizando ao ritmo das águas
não ignoro o regato do teu jardim
sabes o que quero!
por ti jorra a dança do rubor alongado pelos dedos rasgando
em desespero curvados desejos e segredos

ao longe marcha lento um canto
desvenda-se o mistério esse eco de sonhos a cantar esperança
surge o amor atado aos navios como uma sombra na firmeza
da areia percorrendo o olhar do tempo por onde passo
para depois ao teu abraço me abandonar

conheço da noite o cheiro a pérola o rendilhar quente
da escuridão que chega errante em sopro abre ramagens
no teu torso e decide convocar sobre a pedra negra de basalto
nesse altar
um sono a implorar por beijos prateados no rumor do mar
cedes ao nosso voo
unidos acordam nus os corpos desmaiados
no fulgor das praias
vertendo as bocas
nas dunas envolvidas por ventos
beijos

agora que conheço a luz
já não me mata a vida!

Henrique Levy, Sensinatos, Ribeira Grande, Confraria do Silêncio, setembro de 2019


* * * 

O amor e a poesia são as “visões febris do quotidiano” (H. Levy), sendo o poema e o corpo metáforas da procura e da realização.
O caminho para o outro é o caminho para o conhecimento, “em todas as suas dimensões” (I. Mata).
Essa “pedra negra de basalto”, depositada no poema “Já não me mata a vida!”, é “altar” e leito do desejo e da vontade concertados entre duas pulsões vitais.
No texto, é visual a representação dessa concertação corpo a corpo: no “regato do teu jardim”, “jorra a dança do rubor alongado pelos dedos rasgando em desespero curvados desejos e segredos”.
E assim dois corpos, dois seres, por força da Vida, correm ao “ritmo das águas” num inteiro conhecimento um do outro.

José Carreiro

* * * 


SENSINATOS: UMA AFECTIVA PROFUNDIDADE CULTURAL

O homem é, nesse conjunto, o elemento mais celebrado - celebrado por sua vez, também em todas as suas dimensões, como, aliás, o autor explicita em nota paratextual ao "Caríssimo leitor":
[E]stes poemas não são fruto de um trabalho linguístico, mas, antes, de visões febris do quotidiano dos elementos da Natureza, das coisas, das sociedades humanas, das impossibilidades ou capacidades que o Homem e todas as coisas têm para lançar um olhar de reconhecimento sobre a realidade invisível que os circunda, sobre o amor ou a impossibilidade deste nas diversas etapas da vida e da morte (...)

Inocência Mata, Lisboa, março de 2019




Sensinatos, de Henrique Levy” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 20-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/sensinatos-henrique-levy.html