segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A SERPENTE CEGA (Victor Rui Dores/Vitorino Nemésio)

Detalhe de Cleópatra, por giampietrino ~ Ca. 1526
galeria de arte da Universidade de bucknell, lewisburg, Pensilvânia




          
SERPENTE CEGA

Ondas do mar
Sepultei a serpente cega
À luz do luar
Levai a flor do sentir

Ondas do mar
Gaivota voando a lembrança
Anel de sonhar
A teia desta vida mansa

Serpente do pranto salgado
Nos abismos fundos do mar
Vai naufragar
O meu viver, cinzas do mar
Sonho que acabou
No meu olhar

Serpente do amor secreto
Trancado na prisão de mim
Raiz de ser
Barco no cais
Não há de haver mais
Amor assim
          
Victor Rui Dores




         
MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio
     
    
Texto
         
Na linha do horizonte, Angra ficara pouco a pouco reduzida a uma fiada de luzes rasas, que mal se via. A meio do avarandado, por trás dos inúteis volantes do leme, prendeu-lhe a atenção um mostradorzinho metálico e giratório, preso a uma corda tensa e oblíqua à superfície do mar. Era o conta-milhas. A agulha marcava apenas por enquanto uns cinco ou seis mil metros; e Margarida, sem nenhum pensamento preciso, pegou maquinalmente na corda. Aquele seu gesto parecia travar a torção da barquinha que, por um sábio mecanismo, pulsando lá muito ao longe, tirava às águas revoltas o segredo da distância. Mas, largando-se a corda, o calmo corropio de há pouco recobrava o seu ritmo estrangulado. Depois, progressivamente, acalmava-se, e o San Miguel parecia só então retomar a sua rota de peixe que se desloca procurando por instinto a densidade e o calor das águas que lhe convêm. Repetindo aquela experiência, Margarida foi naturalmente levada a olhar para a sua própria mão, que parecia entretida com um boneco de corda ou a corrigir um rumo. E viu o seu querido anel, a serpente de ouro e esmeraldas que herdara directamente da avó Margarida Terra, sem chegar a passar pelo dedo da mãe. Perdera há muitos anos uma das esmeraldas que serviam de olhos ao bicho; com o anel assim mutilado falara de um muro a João Garcia, deixara-lho ver na mão abandonada e alta, sentado na banqueta da quinta numa noite de temporal, depois de ter consentido que ele lhe tocasse no cabelo e examinasse a cicatriz do grande trambolhão da sua infância. E Margarida sorriu amargamente, riu com os nervos todos. Sim... João Garcia não chegara a entrar no Seminário, como o poeta Pragana. Ela, sim! Ela é que tinha tonsura, e uma castidade astral, de serpe cega, esmagada no dedo por uma maculada conceição! Por isso a mãe dizia às pessoas que davam por aquela mossa indelével, asua "pancada de veneta": "Vê?... Ficou assinalada!
Com o anel no mesmo estado conversava vezes sem conta com o tio Roberto no torreão da Poça. Uma tarde, ele dissera, sempre calmo e enigmático, pegando-lhe nas pontas dos dedos: "Essa tua serpente é um segundo Camões!" Depois, já perto de casar, o barão da Urzelina, chegando à Horta para fazer o pedido oficial à família (pedir ao pai a mão que ali estava na corda...), lamentara que jóia tão bonita estivesse assim desvalorizada. E, como Margarida se recusasse a mandar consertá-la, André teve artes de lha pedir por uns tempos para servir de modelo a um anel que uma amiga de Clarinha encomendara no Porto. Veio de lá com duas esmeraldas novas e com a pedrinha antiga sepulta num pouco de algodão, no estojo dopendantif de rubis e brilhantes, presente de núpcias dos sogros. Margarida tivera um desgosto tão grande que levara a chorar dias e dias... E agora, vendo as esmeraldas bicudas e trabalhadas à lupa na cabeça da serpente, enroscada ali no seu dedo como se o bicho bífido enbugalhasse os olhos, Margarida abriu desmedidamente os seus, e, abanando três vezes a cabeça, calçando e descalçando um dos sapatos com a flexão sinuosa e rápida do próprio pé, tomou-se de um furor irreprimível, cheio de rubor e de lágrimas. Carregou com brutalidade o anel contra a trança da corda e fez-lhe saltar sucessiva e inexoravelmente as duas pedras. Depois, tomada de um terror supersticioso e sem saber como explicar aos sogros e ao marido o triste estado da jóia, separou-a cuidadosamente da sua aliança de casamento com os dedos da outra mão. E, considerando um segundo a espuma que saía das hélices daquela serpe enroscada e mesquinha como uma minhoca seca, atirou o anel ao mar.
Com o olhar ainda preso à esteira do navio, Margarida sentiu uma mão suave no ombro e teve um pequeno sobressalto.
- Estavas aqui, minha filha?... Tenho-te procurado por toda a parte... Dei a volta ao navio. São horas de descansar... Vê?... como tens esses olhos pisados! Foi daquele espectáculo do toureiro... São saudades da Horta?... Fala! Não queres descer?...
Margarida deixou-se beijar na testa e disse baixinho:
- Pois sim... Vamos, André! Dá-me o braço...
André pegou-lhe carinhosamente na mão esquerda; e, fazendo rodar com ternura a aliança de casamento, disse, muito espantado:
- Quê?! Perdeste o anel?...
- Estava debruçada na borda e, distraidamente, tirei-o do dedo... Caiu ao mar.
André beijou-a de novo:
- Não te aflijas... Manda-se fazer outro.
E, pegando-lhe no braço, como quem leva um doente, os passos desiguais de ambos, a caminho do camarote, soavam pausadamente nos degraus impermeáveis e percintados de metal.
Enquanto Margarida se deitava, André foi ao camarote dos pais dar-lhes a boa-noite; e, com a ideia fixa no desgosto de sua mulher, não se pôde conter que lhes não desse a novidade. Depois, voltando ao seu camarote, cerrou mais a cortina do beliche inferior, da mulher, supondo-a adormecida e para se despir com recato, trepou ao beliche de cima e apagou a luz mais forte.
              
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXXVII – Epílogo (Andante; Poi Allegro, Non Troppo)





"A morte de Cleópatra" (pormenor), Giampietrino (1500)
       
                               

ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
                
         
[A serpente cega]
         
No excerto transcrito movimentam-se duas personagens - Margarida e André - recém-casados em viagem de núpcias no paquete San Miguel. É, no entanto, a personagem feminina que preenche todo o texto, pois o narrador segue-lhe os passos, os gestos e as atitudes.
Tratando-se de um barco, o espaço onde decorre a ação apresenta-se em movimento. Não é ele, aliás, determinante para o desenrolar da intriga mas tudo o que está para além dele. «Na linha do horizonte, Angra ficara pouco a pouco reduzida a uma fiada de luzes rosas, que mal se via.»
É convicção de que esta viagem seria para Margarida a libertação de um espaço que a pressiona, fechado e sufocante, imbuído de uma mentalidade «pequena» e retrógrada, pautada pelo conservadorismo. A consciência, por parte da personagem, da impossibilidade de fuga suscita esta parte do epílogo onde se valoriza um objeto, o anel em forma de serpente com duas esmeraldas. Trata-se de um objeto elevado à categoria de símbolo, objeto esse que surge logo no início da obra, insinuado até no título do Capítulo I - A Serpente Cega.
Ainda nesse capítulo podemos encontrar várias alusões à dita serpente:«Margarida, agora entretida a rolar a serpente do anel...»; «Queres ver o anel?... É uma serpente. João Garcia procurava a cabeça da serpente com o polegar comovido nos dedos de Margarida. Os olhos são verdes... Não vês, não; falta-lhe uma esmeralda...»
Neste excerto que é alvo de análise retoma-se a informação e faz-se a ligação ao Capítulo I: «Perdera há muitos anos uma das esmeraldas que serviam.de olhos ao bicho; com anel assim mutilado falara de um muro a João Garcia, deixara-lhe ver na mão abandonada alta, sentado na banqueta da quinta numa ,noite de temporal...»
O anel de serpente provoca uma catadupa de memória. Com efeito, para além desta recordação relacionada com João Garcia, surge também a lembrança do tio Roberto Clark («Com o anel no mesmo estado conversava vezes sem conta com tio Roberto no torreão da Poça.» [...] «Essa tua serpente é um segundo Camões!») e, por último, a da sua ligação com André: «Veio de lá com duas esmeraldas novas com a pedrinha antiga sepulta num pouco de algodão, no estojo do pendantif de rubis e brilhantes, presente de núpcias dos sogros.»
Por fim, a memória de um passado próximo, anterior ao seu casamento e a esta viagem: «Margarida tivera um desgosto tão grande, que levara a chorar dias dias...»
O desfiar destas memórias culmina na situação atual de Margarida, debruçada no varandim do navio em confronto com o seu próprio presente e as suas aspirações passadas assim organizadas no conserto de uma jóia. O anel fá-la confrontar-se com um sonho perdido, com a sua espontaneidade mal interpretada, com, enfim, uma «viagem» sem rumo definido. Essa «viagem» pessoal é equiparada, aliás, à viagem física que a personagem realiza - viagem essa que nunca chega ao fim, que não passa de uma passagem onde se dá conta dos objetivos perdidos.
Daí o gesto simbólico de Margarida: «E, considerando um segundo a espuma que saía das hélices daquela serpe enroscada mesquinha como uma minhoca seca, atirouanel ao mar.»
Note-se a comparação depreciativa utilizada pelo autor para desmistificar a magia daquele objeto - como uma minhoca seca é a ausência de vida e de mito, base de um tempo irreversível e sem esperança que é, por extensão, o tempo da vivência da personagem. Neste contexto, é de assinalar a forma como André remedeia a perda da jóia, aventando a hipótese de comprar outra. A André falta a sensibilidade para descobrir na mulher a feminilidade vexada e impotente para se assumir numa sociedade machista e castradora. A materialidade da sua resposta é antagónica ao sentir de Margarida, o que se reflete na sua relação - «E, pegando-lhe no braço, como quem leva um doente, os passos desiguais de ambos...»
Esta relação entre as duas personagens é supostamente pacífica, mas bem elucidativa de um modo de estar e de um modo de ser genéricos. André cumpre o seu dever de marido afetuoso cioso do seu estatuto, assim como os pais, embora de outra geração, cumprem o que é suposto socialmente cumprir. Repare-se como André, antes de se deitar, vai cumprimentar os pais e, de volta, «supondo-a adormecida para se despir com recato, trepou ao beliche de cima apagou a luz mais forte!».
No excerto de texto final que se segue a este podemos verificar que um relacionamento idêntico acontece entre o barão da Urzelina e a mulher:
«-Já dormes, Angélica?
»-Não. Ainda estou a rezar... Faltam-me só dez avé-marias para acabar meu terço. Não te prendas comigo!»
E é mesmo no momento final do livro que entendemos a simbologia da serpente cega. Afinal, agora, estendida no camarote, no meio de uma viagem que é, ao fim e ao cabo, um círculo vicioso, donde se quer sair e onde sempre se regressa, é Margarida que se sente cega, perdida numa escuridão onde nenhum pedaço de luz se vislumbra.
Esta circularidade comprova uma certa derrota e frustração da personagem feminina, a quem o sogro apelida de «levantada», pelo seu comportamento fora dos parâmetros que a sociedade açoriana achava próprios de uma mulher.
Num universo assim fechado e tendo, por razões exteriores a ela, perdido as hipóteses de fugir às regras sociais que a oprimem, nada mais resta a Margarida que permanecer cega e, quem sabe?, entregar-se nas «águas» turvas desse universo que não é possível evitar e muito menos combater.
         
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.


Bracelete dourada representando cobra de duas cabeças com olhos de vidro 
segurando um medalhão da deusa Diana. Pompeia, séc. I
         
    
  SUGESTÕES DE LEITURA

      

Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/17/serpente.cega.aspx]

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