E cercarom-mi as ondas do alto mar,
nom ei i barqueiro, nem sei remar:
eu atendend’o meu amigo,
eu atendend’o meu amigo!
Nom ei i barqueiro nem remador
morrerei eu fremosa no mar maior:
eu atendend’o meu amigo,
eu atendend’o meu amigo!
nom ei i barqueiro, nem sei remar:
eu atendend’o meu amigo,
eu atendend’o meu amigo!
Nom ei i barqueiro nem remador
morrerei eu fremosa no mar maior:
eu atendend’o meu amigo,
eu atendend’o meu amigo!
(Nuvens paradas, côr de cobre,
É temporal que se descobre)
É temporal que se descobre)
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, cap. XXIX
MAU TEMPO NO CANAL ‑ Vitorino Nemésio
CAPÍTULO XXIX – BARCAROLA
Diogo Dulmo engolira uma chávena de chá à pressa para apanhar na Madalena a primeira lancha da manhã. Margarida insistira com o pai para que comesse alguma coisa: pão com manteiga, um bocado de linguiça com ovos (era o costume); e, gracejando com Mariana, que não atinava a acender um único "palhito" da caixa meio molhada, debaixo de uma pira de urze, soprou ela mesma o lume, com todo o fôlego, até ficar com as faces em chama, a ver se aquecia a banha na sertã antes de o pai se aprontar. Mas Diogo Dulmo, prendendo a corrente do relógio, só trincou um resto de scones e partiu. Roberto também se levantara cedo e fora dar uma volta até ao Terreiro da D. Ana. Voltava à Horta à tarde, talvez na lancha; se houvesse brisa, ia à vela.
A manhã corria incolor nas coisas da casa e no céu; o vento, sobre a madrugada, descaíra um pouco a sueste; e o mar, levemente enrugado contra os cachopos da costa, seguia largo e acinzentado ao norte do Canal.
Margarida folheava um álbum de modelos de malha que Daisy lhe tinha emprestado, quando sentiu um estampido ecoar para os lados da Candelária. Pensou em voz alta: "É o bombão." Mas, reconsiderando, disse de si para si: "O bombão não pode ser. As canoas estão arrestadas; não se pode entrar no barracão. E os vigias com certeza aproveitaram para virem ter com as famílias. Param tão pouco em casa..." Mas ouviu-se outra vez um forte bufo de pólvora, e o bombão nítido, seco, rebentar dali a dois ou três segundos em direcção à Espalamaca. Margarida, correndo à janela, ainda viu uma leve fumarada desfazer-se no céu algodoado.
Seria possível?... Abrindo a vidraça, interrogou ansiosamente as casinhas da povoação. Subia de cada chaminé o fumo da panela das couves. Da torre da igreja da Candelária soava a primeira badalada do meio-dia. No caminho e pelas canadas - ninguém; só dois garotitos, acocorados e descalços, exploravam um lameiro à procura de bichas negras. Mas de repente abriu-se uma meia porta, outra, e outra, e homens e mulheres a correr encheram num abrir e fechar de olhos os visos e as canadas.
- Baleia à vista! Baleia à vista!...
- Blós! Blós!1
- Ah, Mariquinhas!, viste o meu home?...
Não havia dúvida: era o sinal de há um século, o bombão do vigia e a fogueira do Pico do Calado. O varadoiro não tardaria negro de gente - o pacato mas decidido povinho da Areia Larga a São Mateus, simples ramo das três cordinhas de povos que abraçam o Pico à roda, como a Judeia, a Galileia e a Samaria repartem as passadas nazarenas. Gente alentada, singela, de falas e gestos mansos, mas cega a tudo e a todos à voz de baleia! baleia!
Em menos de um credo, viu-se passar o Tromba tocando a buzina. Um búzio, ao longe, urrava picado.
- Menina Bidinha, olhe... olhe!... Na vê? Um espalmo2... no indireito da Ponta de Jão Dias... prò largo?... - disse a mulher do Espadinha.
Margarida, afirmando-se em vão, entrou em casa a correr e apareceu com o binóculo de Roberto. Segurando nos dentes uma ponta do lencinho encarnado que traçara ao pescoço, regulou as lentes ao máximo.
- Prà i não!... Mais contra a terra, a sotavento... Um espalmo mum alto. Que grande espermacete! Dois!... Dois!... Aquilho é qu'êles búfum! Vêm afruntados; é cardume. Dévim ter passado ò alcance do vigia do Salão... Se calhar, os botes do Cais já lá le vão no incalço! Aquilho são uns sobejos, aquêles gavinas...! Ai! qu'os nossos nã chêgum a tempo!... Qu'é do meu home?
- Vossemecê está doida!? Então não sabe que o juiz já mandou fazer o arresto e que as canoas não podem sair?!
- Antão a gente há-de deixar perder ũa riqueza daquelas?... Há meses qu'o meu nã tranca ũa baleia! Não há peixe de caldo... Se na fôssim as lanchas da lenha e o lambique do figo, tĩmos passado fôme!
- Tenham paciência... É só mais uns dias. O senhor doutor juiz prometeu ao senhor Mateus Dulmo que ia anular a sentença. Graças a Deus, temos com que pagar as nossas dívidas! Mas, enquanto o juiz não der ordem, ninguém se pode chegar para a porta do barracão. São coisas muito sérias! Querem-se desgraçar?
Um homem passou à desfilada:
- Maneia-te, Piadade! Leva-m' ò varadoiro a saca do pão e a froca3... Vamos arrear!
As albarcas da mulher do Espadinha já sopetavam ao longe.
- Prà onde é que vossemecês vão?! - gritou Margarida, correndo a casa a buscar um agasalho e largando-se atrás da Espadinha: - Piedade! Piedade! Espera aí!... - Uma mecha de cabelo voava-lhe com o lenço encarnado; o seu passo na terra encascada e escura das chuvas batia elástico e acossado. - Piedade! (Oh, meu Deus!, que loucura!) Espere, mulher!... E, vendo um magote de rapazes que tropeavam da banda do Terreiro da D. Ana, perguntou: - Viram o senhor inglês? Vá um lá já chamá-lo, ao Josezinho! (Esta gente está doida!...)
Mas Roberto passara já para o lado do barracão. com o Intavante à frente, a pescadeirada atirara-se à porta, que, larga e de duas metades, cedera ao terceiro empurrão, como quem mete dois dedos a uma laranja e a arregoa. E, em menos de um ámen, apesar do alarido e da chusma, as tripulações das canoas estavam ali formadas, com os homens a postos.
Era um barracão largo, de paredes atarracadas, sem cal, com uma fachada triangular e uma lucarna de vidro acima da porta de couceiras besuntadas de almagre. Das pedras das empenas cresciam pequenas moitas de líquenes acinzentados, e uma espécie de lepra ou ferrugem amarela lavrava nos cunhais de lava viva. Nem todas as empresas baleeiras se davam àquele luxo de guardar as canoas debaixo de coberto enxuto; mas o velho Clark, que estivera em Nantucket e não queria ficar atrás da boa tradição de Samuel Dabney, resolvera mandar construir aquele caixotão de pedra, misto de posto de Socorros a Náufragos e de Arca de Noé que desse em seco. Do limiar da porta seguiam até ao varadoiro calhas acimentadas destinadas a dar fácil escoante às quilhas.
Das quatro canoas da armação, uma tinha as cavernas fendidas e os dormentes sem a maior parte das bussardas. Calafetada e breada nas fendas, ainda assim metia água. Como dizia o João da Cezilha, via-se o céu por elas... A outra, antiquada, fizera um rombo à popa. Com o cadasto partido, faltavam-lhe dois vaus e alguns chaços. De modo que, à parte o veleirinho comprado nas Flores com o dinheiro de André Barreto, e que esperava amarrado na Doca que se assinasse a escritura da nova sociedade, restava a canoa feita pelo Resolve de Santo Amaro (essa, afinada e "uma piorrinha a andar"), além de outra, muito batida do alto mas escoteira e firme na sua meia polegada de borda, toda em pitch-pine, aguentando muito mar. Os homens das companhas das duas canoas inúteis ainda tentaram arreá-las. O Intavante, que era o oficial da aproveitável, compadecido dos outros, tentou remediá-los com um batoque feito de um pedação de cortiça e de nesgas de oleado; mas, perante o tamanho do boeiro e o aperto do lance, desistiu. Os tripulantes logrados, com as popas das suas pobres embarcações já enterradas na água, deixaram cair os braços num gesto de desalento.
- Fica-te prà i, esquemungada! - E o punho de um remo de esparrela bateu pesadamente em cima doapter-oar.
Quando Roberto chegou ao largo do barracão já as duas canoas tripuladas iam aos cachopos para fora. Aquela atitude insensata do gentio, os gritos de baleia! baleia!, e o estrupido dos tamancos das mulheres tinham-no posto um pouco de cabeça perdida. Na pressa, voara-lhe o boné. E, correndo sempre, quase metido à água, identificado com as pragas calafonas do ti Amaro de Mirateca, vociferava:
- Come back, John! Já para terra! Son of a gun!...4 Ah! canalha... Querem-se deitar a perder?!...
O João da Cezilha, de pé à popa na canoa de trás, gesticulava:
- São dois espermacetes!... - E abria ao alto a forquilha do dedo indicador e do maior da mão direita. - Dois grandes espalmos... Tocados de noroeste!...
A sua voz perdia-se no vento, que soprava quase ponteiro da Ponta do Espartel e no progressivo afastamento da canoa impelida pelos remos picados à voz de:
- Pulaiéte! Pulaiéte! 5
- Deixe-os lá, sinhor Robertinho! - disse um pescador sorna, destes que vão ao marisco e se ficam pelas tabernas enquanto os outros rumam ao peixe do alto. - Os homens nem chêgo a bem dezer a saiir o Canal. As baleias nã vão longe... Vi margulhar a promeira entes de se oivir o bumbão. À Ponta da Ribeirinha pra fora... no risco da funduira d'ũas trezentas braças...
- Uma destas! - murmurava Roberto fitando a esteira da canoa, como se não desse ouvidos à calma do pescador.
- Êls vão mais é varar os botes à' Velas, pròs livrar da pinhora... - disse o velhote coxo, o do caneco de água, compondo a correia a uma albarca. - Pudera!... Fázi êls bem! Quérim tirar o pão a quem no ganha cum suor... Vão roibar pra ũa istrada!
Roberto deitou uns olhos de censura e de pasmo ao velho. Depois, como não havia tempo a perder, e descobrindo a lanchinha do Granel amarrada de proa por um nó de tomadoiro a um canhão meio enterrado, de poita pendente de um cabo no carreto de popa, atingiu rapidamente o pequeno cais do varadoiro, puxou a corda, saltou para a lancha, que guinou sobre um bordo como uma casquinha de noz, e, dando à manivela do motorzinho de reserva - tep, tep -, fez rumo aos fugitivos.
Entretanto, Margarida, abafada num casaco de malha, surgira dos lados de Campo Raso; e, saltando de calhau em calhau, bradava pelo tio, procurando alcançá-lo:
- Róbert! Róbert!... Espere aí! Tio!... (Oh, meu Deus! Mas estão todos doidos...)
- A menina sessegue! Olhe qu'isso escorrega... O sinhor inglês, tamém, escusava inquietar-se por via d'ũa coisa à toa... Êls nã vão munto longe.
- Não quero saber!... É preciso trazê-los para terra, custe o que custar! Deite-me um barco ao mar! Vou lá e trago-os... tenho a certeza que os trago! O João da Cezilha não me desobedece... Tiraram-lhe o juízo... Róbert! Róbert!...
O vulto de Margarida, de pé numa pedra e de saia enfunada ao vento, interrogava o Canal. A lancha rumava direita à canoa dianteira; mas, além de que o motor parecia por vezes fraquejar, tirando-lhe aquele lançamento de prancha projectada, que acusa uma boa marcha, a canoa envergara o pano, até ali murcho e escondido, aquartelando a giba à proa no endireito da Areia Larga e esperando jaziga6 para fazer cabeça à boca do Canal no rumo da Ribeirinha. A canoa de trás, que era a do João da Cezilha, atrasara-se; e, primeiro ciando, logo descrevendo sobre a popa uma laçada no mar, rumou a terra. Direito aos cachopos onde Margarida parara, o João da Cezilha esbracejava.
Margarida ainda procurou apanhar o sentido da voz do baleeiro, apontando-lhe o barracão ao fundo do varadoiro, onde a maré estendia com vagarosa indiferença a sua regaçada de água. Mas acabou por perceber que os gestos do João da Cezilha se dirigiam a alguém para trás dela, e, voltando-se, descobriu o vulto do ti Amaro de Mírateca, que avançava afrontado. O velho, num momento, pisava o calhau junto dela.
- Ajude-me, ti Amaro! Veja se os traz para terra...
Mas ti Amaro, esbofando, nem podia dizer "Deus te salve". A sua respiração acelerada e difícil balançava-lhe a barba como o mar levantado embala a embarcação; os seus olhos grandes e ingénuos bebiam o traço do horizonte.
Entretanto a canoa do João da Cezilha tocava quase nos cachopos que fechavam ali uma enseadazinha propícia como a tenaz de uma santola.
- Salte lá, ti Amaro! - disse o João da Cezilha. - Um cardume daqueles na se pode perder...
- Vocês arréium bem!... - respondeu o velho, severo e enigmático. - Vamos a ver o varar...! Ê bem os avisei... Na vos pudestes sojigar. Agora... ala, cum Deus!
- Dê-me a sua mão, ti Amaro! - disse Margarida, afoita, arregaçando a saia.
- Pràdonde?! A menina perdoe-me, p'amor-Dês!, mãis a menina nã stá im sê juízo...!
- O João é que perdeu a cabeça!, não fui eu... Já que não faz o que lhe mandam, quero ir ter com meu tio! Salto para a lancha… vamos para Porto Pim! Ao menos, do Pasteleiro não se vêem as grades da cadeia, quando vossemecês vierem de rota batida à frente do patrão-mor, como os contrabandistas!... É o que vale! Vamos lá... Dê-me a mão!
Então o velho, já agarrado ao alcatrate de popa logo que a canoa acuou, e encarando Margarida, tanto quanto lho permitia a posição, com um misto de estranheza melindrada e o ar de quem vai ao canto da sereia, deixou-se escorregar, de pantalonas arreadas até acima do joelho; e, abraçando-a pela cintura, um pouco derreado, estendeu-a nos braços, como um trofeu, aos pulsos do João da Cezilha, saltando a borda após ela.
A manobra, apesar da segurança daquele pontal de cachopos, tivera de fazer-se depressa e aproveitando bem a impa da maré. Mas o velho, decidido e firme, não obstante a corrida e os seus quase oitenta anos, saíra-se do lance com o desempeno de um rapaz. Leve como uma pena, Margarida alcançara o frade de popa, por trás do lugar do mestre. Os baleeiros, metendo os remos aos raloques, deram o primeiro empuxão.
A primeira canoa que se fizera ao largo seguia de ló a meio Canal para diante, tendo deixado à popa o baixio de Chapman das cartas de marear - "o Roque". A lancha de Roberto ia-lhe sempre no encalço, mas agora descaída à terra, navegando nas sombras do Pico à altura do pé do monte. O motorzinho não trabalhava bem - pois, passados uns minutos de guinada, percebia-se o vulto de Roberto curvado sobre o volante, e o movimento brusco de uma mise-en-marche que falha. Margarida, ansiosa, distinguia-lhe os braços em asa, as mãos levadas desoladamente à cintura; e, concentrada naquela direcção até à última gota do seu sangue, afigurava-se-lhe ouvir uma expiração de cansaço e uma praga em inglês.
- Remem mais para a costa! - gritava. - A lancha não adianta! O motor vai a falhar...
Mas os baleeiros, fitos na outra canoa, que dobrara a Ponta de João Dias, remavam como danados; e o João da Cezilha, vergastando o mastro para desembaraçar as adriças, já tinha uma boa trouxa de pano enfiada no braço, o que fez dizer a um baleeiro:
- Oh João!, vais lovar a menina à mestra?...
Além disso, o motor da lancha parecia agora pegado, e Roberto navegava um pouco a corta-mar em direcção à canoa onde descobrira Margarida. O vento avivara bastante; e a pouca vaga, rolando já larga e menos lenta, parecia vistoriar o muralhão da Doca, como o ferroviário que percorre os rodados e engates de um expresso formado na gare, e segue para os lados do túnel, de bandeira enrolada no sovaco. Ao alto da Espalamaca, o camaroeiro chegara a içar o sinal de tempo rofe7: uma espécie de grande funil de bico para baixo; mas os ventos fortes de SE a NW rodando ao S pareciam arrependidos. O mastro do camaroeiro ficou seco e nu contra o céu.
- Caça essa vela, João! Olha que o tio não nos alcança... Ai, meu Deus!
Ti Amaro, apesar de já ter posto o pé no lagaiéte8 e de ter na testa os vincos de baleia à vista!, ainda se virou para dizer:
- Não oives a menina, João? Poi' não era milhor dar um cabo de reboque a essa lancha que vem atrás?...
Mas o João da Cezilha, entusiasmado com a manobra, deixava correr. A canoa ia quase à bolina arrasada, e a lancha, embora cada vez mais recuada, parecia andar bem. Margarida, agora embalada naquela surpresa de vento, vela, água e miragem de baleia, ia deixando-se levar. A canoa, às vezes adornada da manobra, roçava a borda no gume fresco e vivo do mar. As nuvens açorianas, a princípio paradas e aos pares
(Nuvens paradas cor de cobre,
É temporal que se descobre),
deslaçavam-se agora finas e leves, como se o Pico fosse um açafate de penas sopradas. Vinha de terra um cheirinho a figueira e a bafo de lava quente. E como um belo arco-íris, armado para os lados de São Jorge, arroxeasse o horizonte, o João da Cezilha, voltando-se para Margarida com cara de criança apanhada de boca na botija, disse manhosamente:
- Hã... menina Bidinha! Olha o arco-da-velha... A menina estreia-se cum sorte!
Manhẽ cum arco, mal vai ò barco!
S'à tarde vem, é pra tê bem!
"Nã s'afreime...! O sinhor Robertinho tá caise a chigar à fala... A menina vai aqui a desbancar!... Vai mais a gente...
Semelhante voz, ouvida naquela canoa comprada com dinheiro dos seus, naquele mar verde e belo que parecia o quintal da sua casa, solta por aquele homem agigantado e peludo e apesar disso dócil como um menino ou como um pescador de Tiberíade, soava-lhe lá dentro de outro mundo, do fim da memória e da vida, como se Maria das Angústias ou a Mariana do Pico cantassem para a adormecer. E o tio Roberto, perdido naquela lanchinha ronceira, que já mal se avistava, pareceu-lhe recuado aos tempos em que uma carta de Londres, com selo de Jorge V, os punha lá em casa à espera dele. Sentada no banco do mestre de uma baleeira do Pico, de costas para Campo Raso, Margarida ia talvez na nau do capitão Fernão Dulmo, o seu tetravô flamengo, aproada ao mormaço e ao fantasma de uma terra suposta, para a banda das ilhas da Fortuna... E o tio Roberto, com o seu cachimbo aceso - à ré, na ponte de outra...
A baleeira da frente seguia cega na cola do cardume invisível. Os homens do João da Cezilha, com o ti Amaro à proa, já em atitudes de discóbolo, dobravam a força da vela remando como forçados. Na lembrança de Margarida projectou-se então, como num filme, a noite do ciclone, o capote do pai rondando o muro da quinta, a leitura da carta de Inglaterra à luz do velho candeeiro de petróleo, o tio Roberto que vinha aí... Depois, os seus projectos de transformação dos móveis e bibelots do Granel para instalar o hóspede... a campainha que tocara lá em baixo... a chuva a potes nas orelhas da Jóia parada... ninguém... depois o pai e o navio do Typhoon quase a soçobrar nos mares da China...
Já se devia ver o telhado do Granel, distinguir as janelas... E, caindo mais em si, Margarida recordou a regra de referência daquela travessia, tão familiar desde a infância que se sentia quase capaz de tentá-la sozinha, a nado ou em side-board: "Da Horta para a Madalena: igreja da Praia do Almoxarife à vista... Espalamaca fora... - meio Canal passado. Da Madalena para a Horta: reja da Praia do Almoxarife encoberta pela Espalamaca a estibordo... - meio Canal à proa."
Mas, afirmando-se bem, vendo as rochas da Ribeirinha e da Parede azuladas e nuas longe, à popa da canoa, Margarida deu um salto brusco no banco, virou-se para trás. A lancha do tio Roberto, a meio do Canal, não se mexia. O motorzinho adaptado à embarcação de recreio do tempo da avó Margarida Terra parara agora de vez.
Vendo a golfada de um grande cachalote perto, o João da Cezilha meteu à antegalha, arriou a vela e o mastro, que emechava de dobradice, e empunhou o remo de esparrela. Os baleeiros, encaixando os remos longos no fundo da canoa, armaram as seis pás. E, sem pinga de sangue, contendo o fôlego, como uma quadrilha de gangsters à beira de um golpe desesperado, aproximaram-se do Leviatã.
1 Ingl.: She blows; "ela esguicha", falando-se do jacto da baleia.
2 Jacto de baleia.
3 Ingl. Frock: espécie de blusa de homem.
4 Filho de uma espingarda.
5 Ingl. Pull ahead!: puxa!
6 Jaziga. Na fala picareta: oportunidade para a manobra.
7 Ingl. Rough: áspero, agitado.
8 Ingl. Log head: cepo cilíndrico fixado verticalmente no leito da proa das canoas baleeiras, em torno do qual corre a linha presa ao arpão enterrado no cachalote.
8 Ingl. Log head: cepo cilíndrico fixado verticalmente no leito da proa das canoas baleeiras, em torno do qual corre a linha presa ao arpão enterrado no cachalote.
ANÁLISE TEXTUAL DO CAPÍTULO XXIX DE MAU TEMPO NO CANAL
[A AVENTURA DE MARGARIDA]
Barcarola é uma composição poético-musical que canta o mar e/ou a viagem marítima, de acordo com a respetiva expressividade fono-rítmica. O título do Capítulo XXIX, «Barcarola», confere, pois, um significado poético-musical à aventura de Margarida no Canal das ilhas centrais, entre o Pico e S. Jorge.
Tudo começou com o sinal de baleia à vista e a corrida dos baleeiros às canoas que o Juiz da Horta, em razão da falência económica da firma Clark, havia apresado. Da pacatez do meio passa-se repentinamente à agitação frenética de toda uma povoação:
«No caminho e pelas carradas - ninguém; só dois garotitos, acocorados e descalços, exploravam um lameiro à procura de bichas negras. Mas de repente abriu-se uma meia porta, outra e outra, e homens e mulheres a correr encheram num abrir e fechar de olhos os visas e as canadas.
- Baleia à vista! Baleia à vista!...»
O ritual de há cem anos cumpria-se como sempre: «o bombão do vigia e a fogueira do Pico do Calado [...]. O varadoiro não tardaria negro de gente [...]. Em menos de um credo, viu-se passar o Tromba tocando a buzina. Um búzio, ao longe, urrava picado» - sons, movimento, correria, avidez de participar na aventura. A baleia era a vida daquela gente, como as «passadas nazarenas», os passos de Jesus, uniram a Judeia, a Galileia e a Samaria, na metáfora do «simples ramo das três cordinhas de povos». «Gente alentada, singela, de falas e gestos mansos, mas cega a tudo e a todos à voz debaleia! baleia!»:
«- [...] Há meses qu'o meu nã tranca ũa baleia! [...] Se nã fôssim as lanchas da lenha e o lambique do figo, tîmes passado fôme!»
Margarida, porém, ainda que sensível a este argumento vital, não perde o sentido da responsabilidade, persuadindo, em vão, aquela gente, ávida da faina habitual:
«- Tenham paciência! É só mais uns dias. O senhor Doutor juiz prometeu ao senhor Mateus Dulmo que ia anular a sentença...»
A voz da razão, em obediência à ordem constituída, não ouve, todavia, a voz da emoção, nem sequer vibrada em tom patético:
«- [ ... ] Piedade! (Oh, meu Deus!, que loucura!) Espere, mulher!...»
E são precisamente «o alarido e a chusma», ainda que o não pareça, os grandes impulsionadores da rápida movimentação preparatória do empreendimento coletivo, como na metáfora hiperbólica do ámen responsorial se sugere:
«E em menos de um ámen, apesar do alarido e da chusma, os tripulantes das canoas estavam ali formadas, com os homens a postos.»
Numa breve pausa respiratória, a descrição do armazém das canoas baleeiras do velho Clark repousa a azáfama da narração e da leitura, esclarecendo a razão de tal «luxo» em virtude da influência cultural exercida pela viagem à América, luxo em relação à situação generalizada, apesar do primitivismo que as imagens arquitetónicas do «posto de Socorros a Náufragos» e da «Arca de Noé» projetam. A linguagem é desconfortante («paredes atarracadas, sem cal»), na evocação de um ambiente gorduroso («besuntadas de almagre»), descuidado («moitas de líquenes acinzentados») e enferrujado («espécie de lepra ou ferrugem»), apesar do pitoresco da «lava viva»:
«Era um barracão largo, de paredes atarracadas, sem cal, com uma fachada triangular e uma lucarna de vidro acima da porta de couceiras besuntadas de almagre. Das pedras das empenas cresciam pequenas moitas de líquenes acinzentados, e uma espécie de lepra ou ferrugem amarela lavrava nos cunhais de lava viva. Nem todas as empresas baleeiras se davam àquele luxo de guardar as canoas debaixo de coberto enxuto; mas o velho Clark, que estivera em Nantucket e não queria ficar atrás da boa tradição de Samuel Dabussy, resolvera mandar construir aquele caixotão de pedra, misto de posto de Socorros a Náufragos e de Arca de Noé que desce em seco.»
No mesmo impulso descritivo, ressalta o panorama degradante das canoas, que completa a imagem já esboçada do armazém: «as cavernas fendidas e os dormentes sem a maior parte das bussardas», de uma; outra, «antiquada», com «um rombo à popa», com a falta de «dois vaus e alguns chaços». Sobravam, então, «o veleirinho comprado nas Flores com o dinheiro de André Barreto», ainda à espera de «escritura da nova sociedade» e a canoa considerada «escoteira», pela sua firmeza e valentia, «aguentando muito mar». A tentativa de remediação com «cortiça» e «nesgas de oleado» não surtiu efeito, «perante o tamanho do boeiro e aperto do lance».
A primeira reação de Roberto Clark foi de desorientação («Aquela atitude insensata do gentio, os gritos de baleia! baleia!, e o estrupido dos tamancos das mulheres tinham-no posto um pouco de cabeça perdida. Na pressa, voara-lhe o boné» - p. 306). Contrariamente à fleuma britânica que rodeava o seu habitat natural, corre contra vento e maré, procurando deter, os baleeiros. As suas «pragas calafonas» ou californianas, no «dialeto» açoriano, semelhantes às do Ti Amaro de Mirateca, tornam-se uma voz ainda que potente, como indica o verbo vociferar, a bradar no deserto:
«- Come back, John! Já para terra! Son of a gun... Ah! canalha... Querem-se deitar a perder?!»
De nada serve a interpretação apaziguadora, como quem põe água na fervura, de «um pescador sorna, destes que vão ao marisco e se ficam pelas tabernas enquanto os outros rumam ao peixe do alto», porque o luso-britânico não dá ouvidos à «calma do pescador», embora recrimine com «olhos de censura e pasmo» o velho coxo que também minimiza a gravidade da situação, com ares de revolucionário:
«- «Êls vão mãis é varar os botes à'Velas, pròs livrar da pinhora... [...]. Pudera!... F’zi eIs bem! Quérim tirar o pão a quem no ganha com suor: Vão roibar pra ũa istrada!»
E das palavras e dos gestos de indignação, Roberto passa, sem tempo a perder, a uma ação direta de perseguição aos fugitivos, saltando para a lancha do Granel, depois de a desamarrar.
É, então, que tem lugar a aventura de Margarida, como resposta à insensatez coletiva:
«- Róbert! Róbert... Espere aí! Tio!... (Oh, meu Deus! Mas estão todos doidos ...)»
Após este momento de grande agitação narrativa, o olhar do narrador, tal como o grande plano de uma câmara cinematográfica, detém-se no vulto da personagem feminina, vertical, em diálogo com o mar: «O vulto de Margarida, de pé numa pedra e de saia enfunada ao vento, interrogava o Canal».
A focalização da cena marítima incide, agora, sobre os movimentos das canoas, perseguidas pela lancha dissuasora, numa descrição de grande rigor técnico («envergara o pano», «aquartelando a giba à proa», «ciando»), que não diminui o valor literário, patente no equilíbrio de forças e tensões do jogo cinético em causa, a que o gerúndio narrativo confere plena expressão representativa: o contraste entre canoa dianteira e traseira, entre «aquele lançamento de prancha projetada, que acusa uma boa marcha» e o «pano, até ali murcho e escondido».
Combinando com este movimento persecutório de lancha e canoas, a luta persistente e tenaz de Margarida revela um temperamento decidido, num tom algo autoritário, com João da Cezilha («- Não quero saber!... É preciso trazê-los para terra, custe o que custar! Deite-me um barco ao mar! Vou lá e trago-os... tenho a certeza que os trago! O João da Cezilha não me desobedece...), em contraste com o tom suplicativo para com o Ti Amaro:
«- Ajude-me Ti Amaro! Veja se os traz para terra... »
É uma luta nada fácil, porque voltada contra o tempo e os preconceitos de uma tradição cultural que segrega os papéis e as funções do homem e da mulher, resistências profundas difíceis de vencer.
A figura marítima de Ti Amaro, como sugere a comparação «balançava-le a barba como o mar levantado embala a embarcação», surge, então, de modo imponente, conferindo à cena maior dramaticidade, com a «sua respiração acelerada e difícil» e o seu olhar perscrutador do futuro: «os seus olhos grandes e ingénuos bebiam o traço do horizonte».
Dividido entre a solicitude para com Margarida e o imperativo categórico da paixão do ofício e da solidariedade de classe, Ti Amaro não sabe o que responder ao seu pedido:
«- Dê-me a sua mão, Ti Amaro! - disse Margarida, afoita, arregaçando a saia.
Pràdonde?! A menina perdoe-me, p'amor - Dês! mãis a menina não stá im sê juízo...!»
Aproveitando a reação indecisa do velho, a heroína do século feminista aumenta o tom autoritário da sua luta, censurando o baleeiro que não lhe obedecia («O João é que perdeu a cabeça! não fui eu... Já que não faz o que lhe mandam, quero ir ter com meu tio! Salto para a lancha... vamos para o Porto de Pim!»), ordenando a viagem para a Horta, com o recurso à ironia, ao acenar com o destino da cadeia, e a comparação com os contrabandistas: «Ao menos, do Pasteleiro não se veem as grades do patrão-mor, como os contrabandistas!... É o que vale! Vamos lá... Dê-me a mão!»
Vencido pelo seu tom autoritário e pela sedução feminina, «com um misto de estranheza melindrada e o ar de quem cai ao encontro da sereia», Ti Amaro, «de pantalonas arreadas até acima do joelho», contrariamente ao que era de esperar ante a reivindicação de uma autonomia feminista, surge como uma figura titânica ou gigantesca acolhendo e sustentando nos braços uma ninfa, como Polifemo e Galateia numa postura de vitória desportiva: «e abraçando-a pela cintura, um pouco derreado, estendeu-a nos braços, como um troféu, aos pulsos de João da Cezilha, saltando a bordo após ela».
A manobra, descrita com rigor técnico, confere ao velho de oitenta anos a aura de um jovem, ao lado da leveza de pluma de Margarida, sugerindo um quadro balético depas de deux desenhado no ar, enquanto em coro os marinheiros iniciam a marcha:
«Mas o velho, decidido e firme, não obstante a corrida e os seus quase oitenta anos. saíra-se do lance com o desempenho de um rapaz. Leve como uma pena, Margarida alcançara o frade de popa, por trás do lugar do mestre. Os baleeiros, metendo os remos aos raloques, deram o primeiro empuxão.»
Em idêntica combinação da linguagem náutica («seguia de ló», «cartas de marear», «baixio») com a pintura impressionista, desenvolvem-se três planos de focalização cinética da cena persecutória: o plano, mais longínquo, da primeira canoa, abrandando a marcha; o plano intermédio, da lancha de Roberto, fraca perseguidora da canoa, no atabalhoamento dos problemas do motor; o plano mais próximo da focalização narrativa, o de Margarida, divisando ao longe os restantes planos. Movimento, ansiedade, luta dramática, desolação, cansaço são sensações dominantes nesta conseguida descrição, a que os estrangeirismos (mise-en-marche, «praga em inglês», «chapman») conferem um ar cosmopolita. A silhueta das «sombras do Pico», o esboço visual da figura de Roberto, ao longe, com «os braços em asa», a perceção auditiva da sua respiração e das suas palavras, são sinais claros deste impressionismo descritivo:
«A primeira canoa [...] seguia de ló a meio Canal para diante [...]. A lancha de Roberto ia-lhe sempre no encalço, mas agora descaída à terra, navegando nas sombras do Pico à altura do pé do monte. O motorzinho não trabalhava bem - pois, passados uns minutos de guinada, percebia-se o vulto de Roberto curvado sobre o volante, e o movimento brusco de uma mise-en-marche que falha. Margarida, ansiosa, distinguia-lhe os braços em asa, as mãos levadas desoladamente à cintura; e, concentrada naquela direção até à última gota do seu sangue, afigurava-se-lhe ouvir uma expiração de cansaço e uma praga em inglês.»
Num equilíbrio entre tensão e distensão, dramaticidade e comicidade, a observação de um baleeiro a João de Cezilha, chamando a atenção para o efeito humorístico de «uma boa trouxa de pano enfiada no braço», na tentativa de «desembaraçar as adriças», atenua o ambiente descrito:
«- Oh! João!, vais levar a menina à mestra?...»
Roberto, entretanto descobrira a sobrinha, navegando «um barco a corta-mar, em direção à canoa» onde ele vinha. Em vão, porém, se realiza tal movimento de aproximação, já que, qual Ulisses astucioso, João de Cezilha, «entusiasmado com a manobra, deixara correr» ao encontro do objetivo pretendido, fechando ouvidos ao apelo de Margarida e à advertência diplomática de Ti Amaro.
Entretanto, os sinais de temporal avivam-se no horizonte distante. Primeiro, é a comparação da vaga com o ferroviário, na sua tarefa de «vistoriar o muralhão da Doca», como aquele «que percorre os rodados e engates de um expresso formado na gare, e segue para os lados do túnel, de bandeira enrolada no sovaco». Depois, é o anúncio do «tempo rofe» (áspero, rough, em inglês), «uma espécie de grande funil de bico para baixo», apesar de um certo arrependimento dos ventos, na bela personificação usada. Até o arco-íris, para os lados de S. Jorge, conjugado 'com as «nuvens açorianas, a princípio paradas e aos pares», segundo o ditado popular «Nuvens paradas cor de cobre, / é temporal que se descobre», vem coroar tal anúncio, numa poética comparação do Pico com «um açafate de penas sopradas». É esta poesia que faz sonhar Margarida, «agora embalada naquela surpresa de vento, vela, água e miragem de baleia», deixando-se arrastar na corrente de seus pensamentos.
Ainda astuciosamente, João de Cezilha, «com cara de criança apanhada de boca na botija», relaciona o arco-íris com a superstição popular da fortuna, logo justificada com a sabedoria do adágio:
«- Ai... menina Bidinha! Olhe o arco-da-velha... A menina estreia-se cum sorte! Manhã num arco, mal vai ò barco! S'à tarde vem, é pra tê bem!»
Com efeito, em S. Jorge, Margarida encontrará, no acolhimento da família de André Barreto, o caminho que transformará o seu destino, como se João de Cezilha, através da sabedoria popular, vaticinasse tal percurso sinuoso.
Embalada na sua corrente de consciência, Margarida, porém, quase não ouvia a justificação astuciosa «daquele homem agigantado e peludo e apesar disso dócil como um menino ou como um pescador de Tiberíade», à voz de Cristo na Palestina. Na familiaridade daquela «canoa comprada com dinheiro dos seus e daquele mar verde e belo que parecia o quintal da sua casa», como o exprime uma das cascatas de comparações utilizadas em catadupa, «semelhante» voz e semelhante apelo, em dialecto baleeiro («Nã s'afreime... ! O Sinhor Robertinho tá caise a chigar à fala... A menina vai aqui a desbancar!... Vai mais a gente... »), reenviam a personagem para o mundo da infância, «do fim da memória e da vida, como se Maria das Angústias ou a Mariana do Pico cantassem para a adormecer».
Perdida no mundo da memória e do imaginário, o perigo real do tio «naquela lanchinha ronceira, que já mal se avistava», pareceu-lhe longínquo, num recuo temporal e fantasioso que ia até ao tetravô flamengo, numa miscelânea de personagens e épocas, em harmonioso convívio náutico:
«Sentada no banco do mestre de uma baleeira do Pico, de costas voltadas para Campo Raso, Margarida ia talvez na nau do capitão Fernão Dulmo, o seu tetravô flamengo, aproada ao mormaço e ao fantasma de uma terra suposta, para a banda das ilhas da Fortuna... E o tio Roberto, com o seu cachimbo aceso, à ré, na ponte de outra...»
Enquanto Margarida se perdia no tempo e no espaço psicológicos, os baleeiros aproximavam-se do seu objectivo, «remando como forçados», em atitudes que a escultura helenística do discóbolo, ou lançador do disco nos jogos olímpicos, bem traduziam. Caminhando, então, do sonho para a realidade, a personagem feminina, a partir da experiência familiar da travessia do Canal, dá-se conta do afastamento progressivo da Horta, já não divisando a igreja da Praia do Almoxarife nem a Espalamaca mas «as rochas da Ribeirinha e da Parede azuladas e nuas longe».
O capítulo termina com a investida firme e decidida, comparada à de uma quadrilha de gangsters, contra o cachalote metaforicamente baptizado com o nome do monstro bíblico Leviatã, que, perto, lançava a golfada:
«Os baleeiros, encaixando os remos longos no fundo da canoa, armaram as seis pás. E, sem pinga de sangue, contendo o fôlego, como uma quadrilha degangsters à beira de um golpe desesperado, aproximaram-se do Leviatã.»
António Moniz, Para uma leitura de MAU TEMPO NO CANAL de Vitorino Nemésio,Lisboa, Editorial Presença, 1996, pp. 36-44.
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