O PÃO E A CULPA
Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.
Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.
Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.
Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.
Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.
Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…
Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.
Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.
Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.
Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.
Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.
Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…
Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa (1955)
LEITURA ORIENTADA
Sobre este poema, refere-se Maria Madalena Gonçalves, in Poesias de Vitorino Nemésio, a «O tom de pequena narrativa, onde ressalta o culto por certas facetas da tradição: o sentimento comunitário e da partilha, o mistério das coisas simples, a oração, o conhecimento da experiência directa («desde que me conheço sei o pão»: saber/saborear).
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
1. A presença no poema de duas dimensões temporais ‑ o outrora e o hoje -‑é evidente.
1.1. A que momentos da vida do eu correspondem essas dimensões temporais?
1.2. Ilustre as afirmações de Maria Madalena Gonçalves, a seguir sublinhadas, com expressões do texto: «Ao tempo de outrora associa-se a ideia de uma plenitude física e psicológica; ao tempo de hoje, liga-se a consciência de uma carência, que é, simultaneamente, perda de qualidade, de identidade e de fraternidade.
2. De que forma a palavra «pão» se liga à simbólica cristã?
3. Sabendo que o pão tem um valor simbólico, caracterize o estado de espírito do eu poético no hoje do poema.
CHAVE DE RESPOSTAS
1.1. A infância e a idade adulta.
1.2. Outrora – plenitude física «Caía o gesto à terra, a espiga balouçava... ») e psicológica («Grelava outrora a alegria/De mim e de muita gente»); hoje ‑ perda de qualidade («falta-lhe talvez polpa»), de identidade «mão é bem o mesmo») e de fraternidade («ou pelo menos não todo nosso»).
2. A destacar:
- o pão partido em companhia, a fazer lembrar o corpo de Cristo na comunhão;
- a «hastilha de seiva» e o «fio de luz»: pureza e claridade;
- as alusões ao «Padre-Nosso» nos dois primeiros versos da 3ª estrofe e no 1º verso da 5ª e da 6ª estrofes.
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
COMENTÁRIO DE TEXTO
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:
• O conteúdo simbólico do pão como salvação e o conteúdo simbólico de culpa como perda.
• Tom narrativo: acção, personagens, espaço, tempo.
• Duas dimensões temporais: o passado (a infância) e o presente (a senectude).
• O passado ligado ao pão como sinal de plenitude física e psicológica; o presente, ligado à culpa, como consciência de um vazio proveniente da perda da identidade e da fraternidade.
• A simbologia cristã:
- a referência à Oração do Pai-Nosso;
- a alusão ao pão eucarístico;
- a partilha do pão, lembrança da eucaristia.
• Estruturação do poema em dois momentos.
• O admirável ritmo da 4ª estrofe:
- cesuras;
- variedade métrica;
- transportes;
- frases curtas, alternando com frases longas;
- verbos de movimento.
Aula Viva. Português B 12º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Editora, 1999.
SUGESTÃO
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/03/o.pao.e.a.culpa.aspx]
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