segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O PÃO E A CULPA (Vitorino Nemésio)

      



O PÃO E A CULPA


Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.

Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.

Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.

Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.

Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.

Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…

Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
      
Vitorino Nemésio, O Pão e Culpa (1955)
      



LEITURA ORIENTADA
      

Sobre este poema, refere-se Maria Madalena Gonçalves, in Poesias de Vitorino Nemésio, a «O tom de pequena narrativa, onde ressalta o culto por certas facetas da tradição: o sentimento comunitário e da partilha, o mistério das coisas simples, a oração, o conhecimento da experiência directa («desde que me conheço sei o pão»: saber/saborear).

      
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
      
1. A presença no poema de duas dimensões temporais ‑ o outrora e o hoje -‑é evidente.

1.1. A que momentos da vida do eu correspondem essas dimensões temporais?

1.2. Ilustre as afirmações de Maria Madalena Gonçalves, a seguir sublinhadas, com expressões do texto: «Ao tempo de outrora associa-se a ideia de uma plenitude física e psicológica; ao tempo de hoje, liga-se a consciência de uma carência, que é, simultaneamente, perda de qualidade, de identidade e de fraternidade.
      
2. De que forma a palavra «pão» se liga à simbólica cristã?
      
3. Sabendo que o pão tem um valor simbólico, caracterize o estado de espírito do eu poético no hoje do poema.
      

CHAVE DE RESPOSTAS
      
1.1. A infância e a idade adulta.

1.2. Outrora – plenitude física «Caía o gesto à terra, a espiga balouçava... ») e psicológica («Grelava outrora a alegria/De mim e de muita gente»); hoje ‑ perda de qualidade («falta-lhe talvez polpa»), de identidade «mão é bem o mesmo») e de fraternidade («ou pelo menos não todo nosso»).

2. A destacar:
-        pão partido em companhia, a fazer lembrar o corpo de Cristo na comunhão;
-        a «hastilha de seiva» e o «fio de luz»: pureza e claridade;
-        as alusões ao «Padre-Nosso» nos dois primeiros versos da 3ª estrofe e no 1º verso da 5ª e da 6ª estrofes.
      
Novo Ser em Português 10, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 2007.
       
      


COMENTÁRIO DE TEXTO
      
Comente o poema, explicitando e desenvolvendo os tópicos:
      
• O conteúdo simbólico do pão como salvação e o conteúdo simbólico de culpa como perda.

• Tom narrativo: acção, personagens, espaço, tempo.

• Duas dimensões temporais: passado (a infância) e o presente (a senectude).

• O passado ligado ao pão como sinal de plenitude física psicológica; presente, ligado à culpa, como consciência de um vazio proveniente da perda da identidade da fraternidade.

• A simbologia cristã:
-        referência à Oração do Pai-Nosso;
-        alusão ao pão eucarístico;
-        partilha do pão, lembrança da eucaristia.

• Estruturação do poema em dois momentos.

• O admirável ritmo da 4ª estrofe:
-        cesuras;
-        variedade métrica;
-        transportes;
-        frases curtas, alternando com frases longas;
-        verbos de movimento.
      
Aula Viva. Português B 12º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Editora, 1999.
    


      
SUGESTÃO
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/03/o.pao.e.a.culpa.aspx]

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