quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O BICHO HARMONIOSO (Vitorino Nemésio)






O BICHO HARMONIOSO

Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!

Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:

Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!
     
Vitorino Nemésio
Escrito em Boulogne-sur-Seine, Páscoa de 1935
Publicado em O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938.
     
     



TEXTOS DE APOIO | LEITURA ORIENTADA
     
TEXTO 1
     
Em oito estrofes desiguais, o poema «O Bicho Harmonioso» apresenta a imagem simbólica que dá suporte ao título do livro e sugere a harmonia poética.

Começa com a expressão de um desejo de sublimidade artística: «Eu gostava de ter um alto destino de poeta.» Mas, na 6ª estrofe, o sujeito procede à autodesmistificação serena e realista do seu destino: «Mas não. Do canto necessário / Para me diluir em som e no ar que o guardasse, / Não chego a soltar senão uma vaga nota.» Em face da conformação resignada perante tal incapacidade, proclama-se o autorreconhecimento como um vil bicho harmonioso, na sua gruta sem ecos, deixando à posteridade no silêncio definitivo apenas a «ramagem fremente dos meus dedos, num pouco de terra». Apesar de harmonioso, o bicho, pelo simples facto de não ser aceite; torna-se paradoxalmente vil, um estranho fóssil. É a eterna luta entre o Poeta e o seu destinatário, indiferente à sua voz e à sua mensagem.

Ainda na 1ª e 2ª estrofes, a ironização do destino glorioso do Poeta, capaz de tocar a tristeza dos adolescentes, o sonho das raparigas e as lágrimas das mulheres, tem o sabor amargo de uma desilusão, enquanto no início da 4ª estrofe, se lamenta a impossibilidade de causar uma natural alegria aos pais, num halo de luz, como numa aparição sobrenatural. Na mesma estrofe, as imagens dessa sublimidade artística e social sugerem a sensação mítica de uma hierofania, não à semelhança das aparições das Virgens, repudiadas pelo sarcasmo («Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos»), mas de uma presença mágica da Natureza, em forma de orvalho, marcadamente sensual na figura amada de uma prima molhada.

A 3ª estrofe, em verso único, e a sexta exprimem o dilema entre o desejo de ser e a realidade que se é, na imagem de um cenário noturno propício à exploração de um sujeito autofágico: «Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino. Tudo isto seria aquele poeta que não sou, / Feito graça e memória, / Separado de mim, / Livre das minhas pretensões...» A 5ª estrofe continua a expressão desse rol de desejos não realizados, agora numa esfera acomodada de baixo voo, embalado pela inércia, ainda que do bafo morno da infância, e pela «impressão de morrer do primeiro desgosto de amor».

António Moniz, “A harmonia da Palavra”
in Para uma leitura de sete poetas contemporâneos, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 72-73.
     
     



TEXTO 2
     
Num volume que reúne tantos poemas a respeito da arte da poesia, o poema que dá título ao livro aparece numa posição muito significativa. Isso porque o poema “O bicho harmonioso” (p. 129-130), o primeiro da recolha, já se inicia pela tematização do ser poeta, por meio da afirmação que constitui o verso inicial: “Eu gostava de ter um alto destino de poeta”. Esse é um poema dedicado a uma definição da arte de seu poeta, que primeiro nos mostra o que hipoteticamente gostaria de ser em poesia, para só mais tarde nos dizer o que efetivamente é, procedimento que já denota uma reflexão a respeito do assunto, uma reflexão que levou em conta não só a questão da própria escrita, mas também a leitura da obra de outros poetas.

Há um desacordo inamovível entre as conceções de poeta que aparecem em “O bicho harmonioso”, ou seja, o poeta hipotético, que talvez possamos mesmo chamar de o poeta ideal, e o poeta real. O primeiro, a quem se destinam honras que aparentemente atraem o eu-lírico, tais como a altura que seu nome alcança, representada no verso “passam a tarde numa estrela”; a influência sobre as novas gerações e as mulheres, que se vê nos versos “Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes / E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves”; a alegria de retribuir com a glorificação de seu nome a vida que a mãe lhe deu — prazer que, no caso de Nemésio, significaria dar glória a Glória, já que esse era o nome de sua mãe —; a luz própria que poderia ser compartilhada com o pai, tirando-o da espécie de cegueira em que se encontra; a sagração de sua própria figura, que por seu turno sagraria tudo o que tocasse; a capacidade de voltar a um estado de eterna infância, sempre protegida, talvez a alternar com a inocência própria de uma juventude idílica mesmo em momentos de tristeza.

Mas esse primeiro poeta apresentado em “O bicho harmonioso” não foi feito para durar: ele parece ser constituído pelo mais inapreensível dos elementos, o ar, evolando assim para longe. A sua própria leveza, aludida no verso “E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves”, anuncia isso. O mesmo acontece em outros versos que afirmam a distância que há entre esse poeta e a terra, insinuando uma sua ausência de ligação com os aspetos mais concretos, mais “pesados” da vida, como nos seguintes exemplos:

a) “Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.”
     
b) “Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata”
     
c) “Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais”
     
d) “E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco.” (indispensável, aqui, é o “hálito” citado no exemplo c)
     
e) “Ser a vida e não ter já vida — era um destino.”
     

Dada essa constituição inconsistente do “poeta ideal” é que se manifesta a passageira aparência gloriosa de seus atributos e se impõe o divórcio do poeta real com ele. Pois o poeta que Nemésio passa a descrever em seguida — e o faz com brevidade, em apenas doze versos, quando dedicara trinta e quatro ao primeiro — busca não o ar, mas a terra e por isso pode dizer do outro: “Tudo isso seria aquele poeta que não sou”.

Isso se compreende ao se notar como contrasta já o próprio ar do poeta que o eu-lírico é com o do poeta que ele sabe que não é: o seu é um “bafo individualmente podre”.

Além disso, se para aquele era possível colocar-se à margem do tempo (“Ser a vida e não ter já vida — era um destino”), para este isso não existe: o tempo é para ele uma realidade que se impõe, que o marca e que se gasta, se lhe escapa inexoravelmente: é o que se revela de maneira perfeita e angustiante nessa “noite carcomida” de que fala o verso citado no exemplo f, acima.

Também, ao contrário do outro — que não tem “porta a que se bata” —, este poeta tem seu endereço, sua morada demarcada, delimitada no mundo: o seu “buraco vil de bicho harmonioso”.

E o canto deste poeta não pode se rarefazer e vogar nos céus nem busca a influência sobre gerações e corações: é de sua natureza — “muito bem”, diz o poema em relação à violenta atitude que atribui à “noite” usando um verbo significativamente ligado ao campo semântico do conceito de “peso” e não do de “leveza” — não fazer eco:

“Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(...)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de bicho harmonioso.”
     
A ligação com a terra é também decisiva para a definição do poeta que o eu-lírico reconhece ser. Pois é dela que ele lança mão para simbolizar a marca que sua obra pode almejar deixar para além de sua própria existência no tempo e no mundo. Ao “silêncio definitivo”, claro sinal da morte, contrapõe o poeta o desenho de seu movimento sobre a terra, que, depurado até a ossatura, poderá, quem sabe, desafiar futuros decifradores.

E o que encontrarão eles? De que matéria se faz o “fóssil” do poeta real de Nemésio?

A matéria-prima dessa poesia que se quer terrena, individual, delimitada no tempo e no espaço, é o próprio ser do poeta. Isso nos foi dito pelo eu lírico logo que o poema deixa de focalizar o poeta do “gostava” para atentar no poeta do “sou”, quando vemos que a noite em que vive o eu-lírico é “carcomida”, é gasta “Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina”.

Temos no poema “O bicho harmonioso”, portanto uma poderosa definição da arte poética de Vitorino Nemésio: uma poética do conhecimento, da pesquisa, da exploração dos meandros do ser. Uma poética, no seu caso particular, que se quer marcadamente plantada no corpo da terra e no colo do tempo, individual, concreta, pesada, vorazmente indo até as profundezas. Essa é uma definição da poesia praticada por Nemésio ao longo de sua carreira e registrada também na teoria do “Prefácio: da Poesia”, em que apresenta o poeta como um pesquisador do real:

“(...) a poesia irmana-se à metafísica e à mística. Poetas e filósofos falam fundamentalmente do mesmo; e Platão, que desconfiava dos poetas, deu-lhes afinal o ponto de partida noético para uma poesia do Ser. Nem o privilégio do conceito, como órgão do conhecimento, chega a dar ao filósofo o exclusivo do acerto na interrogação do mundo. A reminiscência platónica autoriza por igual uma especulação pelo juízo e outra pela imagem e a alusão. O universo inteligível é tão conceptual como alegórico. Na própria perspetiva platónica o mundo das ideias se converte na alegoria de uma ordem superior de que o homem fosse degradado e de que conservasse virtualmente os lineamentos da figura que tem de reconstruir. Assim de um mito comum nascem as duas estirpes de pesquisadores do real: poetas e metafísicos.” (NEMÉSIO, V. - Obras completas. Vol. I e II - Poesia. Lisboa, INCM, 1989, p. 705-706)
     
“A obra poética de Vitorino Nemésio”, Carlos Francisco de Morais,
Todas as Musas, ISSN 2175-1277, Ano 01, Número 02, Janeiro-Julho de 2010, pp. 189-192. Disponível em
http://www.todasasmusas.org/02Carlos_Francisco.pdf
    

the hangover

    
SUGESTÃO
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/13/bicho.harmonioso.aspx]

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