quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TOU CO A PESTE, MEU AMO!... (Vitorino Nemésio)

        
            
Parecia que a febre tinha pele...
     
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXII
     
       
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!
[…]
E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
[…]
Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”
            

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
[…]
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
          
Cesário Verde, “Nós”
            
                             
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MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio

      
Texto
      
Outra vez interessados pela sombra maciça do Canal, ficaram à janela espiando. Mas o silêncio de tudo - casa e tempo parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo e de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade e resigna. Roberto retomara o passeio sem fim no soalho velho, sugara o cachimbo apagado, desaparecera para os lados do seu quarto. Margarida, à luz do candeeiro americano, marcava o ritmo do petróleo com o pique da agulha no bordado. Uma pomba de filosel repetia o seu corpo esquemático e o seu raminho no bico ao largo de uma tira de pano riscada a papel químico.
Deu meia-noite... Deu uma hora... Os passos de Roberto descreveram a volta toda do fundo da casa deserta; um gemido remoto obrigou Margarida a abafar o ruído do papel de seda nos dedos e a apurar bem o ouvido. - O Manuel Bana, que acordava. Margarida atravessou o quarto da Mariana, desceu os degraus que davam para a adega.
A vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico. Um piso alto, com mirante na empena, flanqueava a adega funda e metida em casa. Em regra, seguia-se à adega uma cozinha com as paredes em osso. Mas o Sr. Roberto velho,british subject, sem alterar o castiço da arquitectura picarota, acumulara por trás e aos lados da adega os quartos e esconsos exigidos pelo crescimento da família e pelo seu amor ao conforto. Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro e de alfândegas desconfiadas resolvesse reforçar os camarotes para a tripulação e reacomodar a carga. A adega, com o seu lagar profundo, a madre imensa, o peso de pedra chumbado à finura do fuso de rosca até ao tecto, e os vastos canteiros de pipas irremovíveis e de tamanhos descrentes, era o porão. Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério. A escada era fraca e parecia descer de um portaló. Ela apanhava a saia numa mão, empunhava uma vela na outra; o seu passo furtivo agitava os ratos na falsa. E as sombras das pipas e dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.
- Então, Manuel... Sentes-te melhorzinho?
Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados. Roberto deu mais força ao candeeiro. Manuel Bana; inquieto e a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça e das "cruzes"; queria andar. E, descendo o braço ao longo da pilha de cobertores, parou a mão a medo:
- O pior é o matulo... - E, para Roberto, em voz baixa, aproveitando o movimento de distracção voluntária que Margarida fizera em direcção ao avarandado interior que dava do quarto sobre a adega: - Aqui, meu amo; caise im riba das partes...
Margarida desabafou o bule pousado num tinote, e, enchendo de alto uma grande caneca vidrada, enquanto Roberto o amparava pelos ombros, deu-lhe a beber. Manuel Bana estava realmente trémulo. Parecia que a febre tinha pele e que, como um anelídeo invisível, se lhe enroscara aos tendões, ao peito, ao corpo todo. Por cima da maçã-de-adão, que subia e descia como um êmbolo, a borda do bigode molhava-lhe de chá forte os beiços secos.
- Im o sinhor dòtor chigando, a menina ajunte a sua roipinha e vaia e mais ele. Mandaro recado a minha irmã pró Capelo, como ê disse? Ela é que tem obrigação de ficar aqui a pé de mim. São doenças mum ruins...
- Qual! - disse Roberto. - Apanhaste um resfriamento, é o que foi... Uma madrugada daquelas, na subida do Pico... Não era de esperar outra coisa. Se não fosse o senhor Diogo teimar para teres a vaca descansada e mugi-la ao romper do Sol, nada disto acontecia...
- Tou co a peste, meu amo!...
               
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXII – 4º Nocturno (Lento)
      
      


ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
      
      
O excerto desenvolve-se em dois momentos distintos, cada um deles estando dependente da mudança da temporalidade e de espacialidade. Como elo entre estes dois momentos destacam-se duas personagens que percorrem os espaços e os tempos, unidas por uma preocupação: a doença de uma terceira personagem.
primeiro destes momentos é determinado pela utilização preferencial de dois modos de representação: a descrição e a narração. A ausência de diálogo é explicada logo no início:
«Mas silêncio de tudo casa tempo - parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo de recessivo que diminuía pouco a pouco a vivacidade e o sentido das palavras trocadas, esgotando aquela expectativa a dois, como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade resigna."
Deste pedaço ressalta um tempo e um espaço ilusórios, que transcendem as personagens, remetendo-as, através do silêncio, para um outro silêncio profundo onde elas (onde o Homem) encontra razão de existência na reflexão sobre a condição humana.
Mas de tempo e espaço «reais» nos dá conta este excerto. O espaço da permanência - «a vivenda dos Clarks, conhecida pela Pedra da Burra, no sítio de Campo Raso, era a casa tradicional das vinhas queimadas do Pico" - e um espaço de passagem, do para além de... - «a sombra maciça do Canal". ,
A descrição do espaço físico é pormenorizada, minuciosa, ultrapassando as características meramente materiais para invadir o afetivo e o psicológico: «Margarida atravessava sempre à noite aquela arca de bafio com uma sensação de mistério.»
Como é comum na escrita nemesiana surgem-nos variadas comparações, algumas delas enquadradas no momento descritivo: «Do todo resultara uma impressão de polipeiro, como se o capitão de um navio retido indefinidamente num porto estrangeiro..»; «E as sombras das pipas dos madeiros velhos dançavam na parede tracejada da conta de milhares de canadas de vinho, embebidas no tempo como numa esponja oculta.»
Neste espaço profundo (a adega funda, o lagar profundo) ressalta o tempo que, apesar de pontualizado (Deu meia-noite... Deu uma hora...) se assume como um tempo psicológico, face à situação que se vive. Notem-se expressões como «parecia ganhá-los para alguma coisa de profundo de recessivo», ou «esgotando aquela expectativa a dois como os sobreviventes de uma equipa polar que a neve invade resigna».
Nesta última frase sublinhou-se ainda uma comparação, recurso que, como vimos anteriormente, é utilizado frequentemente por Nemésio.
E deste primeiro momento resta-nos as personagens: vivendo um momento que os faz estar presos a uma terceira personagem que está ausente «de cena» neste passo do texto, mostram-se nervosas, inquietas, fechadas no espaço e no tempo. Deste tempo é deste espaço só conseguem fugir através da mente, da memória das coisas por viver e do altruísmo das pequenas coisas vividas.
Enquanto Roberto Clark apresenta a sua inquietude andando de um lado para o outro e sugando o cachimbo apagado, Margarida vai preenchendo o seu bordado, uma pomba de filosel, símbolo - quem sabe? - de liberdade, de voo, de esperança, embora fixa na tira de pano riscada a papel químico.
Finalmente, o som do pretexto de mudança de espaço: um gemido remoto - Manuel Bana acordava. Repare-se no adjetivo remoto, a lembrar que ele se encontrava num local que dista deste outro e que só é alcançado devido à passagem pelo interior de toda a vivenda dos Clark, que, como foi referido anteriormente, é descrita ao pormenor à medida que as personagens a atravessam.
E assim chegamos à adega, perto do doente Manuel Bana, e assim inicia o nosso segundo momento, pautado pela descrição e pelo diálogo. Quer num, quer noutro se realça a doença pela qual a personagem foi acometida: «Responderam a Margarida dois olhos vermelhos e encovados»; «…inquieto a arder em febre, gemia. Queixou-se da cabeça das 'cruzes'...»; «Manuel Bana estava realmente trémulo».
Também nesta descrição, Nemésio não foge à comparação como recurso para melhor determinar os factos que quer sublinhar. Repare-se: «Parecia que a febre tinha pele... »; «Por cima da maçã-de-adão, que subia descia como um êmbolo...»
No diálogo destacaremos também dois momentos distintos: um, reporta-se à conversa normal entre Margarida e Manuel Bana ou Roberto e Manuel Bana. No entanto, um excerto da conversa entre as personagens masculinas não é ouvido pela personagem feminina, o que prova que, além do respeito que poderia parecer lógico entre a patroa e criado, um estatuto da mulher que a remete para o tabu de certos assuntos: «pior é o matulo... Aqui, meu amo; caise im riba das partes...»
Deste modo, fica-nos também a perícia com que Nemésio maneja o falar açoriano, bem dele conhecido, por experiência vivida. Efetivamente, da boca de Manuel Bana só pode sair a linguagem que conhece, do povo, e com a pronúncia que é característica do açoriano. Esta utilização marca, portanto, o estatuto social, visto que nem Roberto nem Margarida, embora vivendo no mesmo espaço mostram a cultura erudita a que tiveram acesso pelo seu nível social e económico.
A parte final do diálogo é marcada pelas frases reticentes utilizadas por Roberto Clark, provavelmente a denotar uma certa ambiguidade e a vontade de esconder a evidência ao empregado da família. Mas como sabemos da vida real, comprova-se que o doente é habitualmente lúcido da doença que o mina e, por conseguinte, e espantosamente, o excerto termina com a revelação da doença «Tou co a peste, meu amo...», pronunciada por Manuel Bana, por contraste com a indecisão que se tinha verificado latente em Roberto Clark.
      
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
       


       
SUGESTÃO
      





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