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Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa. Pormenor do mural de Almada Negreiros, 1958, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. |
uma arte de viver
Ricardo Reis
Ricardo Reis
nasce no Porto, forma-se em Medicina e tem de se exilar ao Brasil por ser
monárquico. Os principais traços da sua escrita são:
Neoclassicismo: latinismo e semi-helenismo (odes).
Intemporalidade das suas preocupações:
brevidade da vida, morte, sofrimento....
Na poesia
de Ricardo Reis, há um
sentimento da fugacidade da vida, mas ao mesmo tempo uma grande serenidade na
aceitação da relatividade das coisas e da miséria da vida.
A vida é efémera e o futuro imprevisível.
"Amanhã não existe", afirma o Poeta. Estas certezas levam-no a
estabelecer uma filosofia de vida, de inspiração horaciana e epicurista, capaz
de conduzir o homem numa existência sem inquietações nem angústias.
Reconhecendo
a fraqueza humana e a inevitabilidade da morte, Reis procura uma forma de viver
com um mínimo de
sofrimento. Por isso, defende um esforço lúcido e disciplinado para obter uma
calma qualquer.
Na linha do
poeta latino Horácio, Reis
considera importante o carpe diem, o aproveitar o momento, o prazer de
cada instante.
Sendo um
epicurista, o Poeta advoga a procura do prazer sabiamente gerido, com moderação e afastado da dor. Para isso, é
necessário encontrar a ataraxia, a tranquilidade capaz de evitar qualquer
perturbação. O ser humano deve ordenar a sua conduta de forma a viver feliz,
procurando o que lhe agrada.
A obra de
Ricardo Reis apresenta um epicurismo triste, uma vez que busca o prazer
relativo, uma verdadeira ilusão da felicidade por saber que tudo é transitório (ex.: Vem
sentar-te, comigo, Lídia).
A apatia,
ou seja, a indiferença, constitui o ideal ético, pois, de acordo com o Poeta, há necessidade
de saber viver com calma e tranquilidade, abstendo-se de esforços inúteis para
obter uma glória ou virtude, que nada acrescentam à vida.
Próximo de Caeiro, há na sua poesia a aurea
mediocritas, o sossego do campo, o fascínio pela natureza onde busca a
felicidade relativa.
Discípulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis
refugia-se na aparente felicidade pagã que lhe atenua o desassossego. Procura
alcançar a quietude e a perfeição dos deuses, desenhando um novo mundo à sua
medida, que se encontra por detrás das aparências.
Afirma uma
crença nos
deuses e nas presenças quase-divinas que habitam todas as coisas. Afirma que os
homens se devem considerar "deidades exiladas", com direito a vida
própria.
Considera
que sendo o destino "calmo e inexorável" acima dos próprios deuses, temos necessidade do autodomínio,
de nos portarmos "altivamente" como "donos de nós-mesmos",
construindo o nosso "fado voluntário". Devemos procurar,
voluntariamente, submetermo-nos, ainda que só possamos ter a ilusão da
liberdade.
Pagão por caráter e pela formação helénica
e latina, há na sua poesia uma actualização de estoicismo e epicurismo,
juntamente com uma postura ética e um constante diálogo entre o passado e o
presente.
(in Preparação para o Exame
Nacional 2010. Português 12º Ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto
Editora, 2010, pp. 40-41)
TEXTOS DE APOIO
Texto 1
Representa o poeta clássico, quer
na mentalidade, quer
no estilo. É pagão,
acreditando em todos
os deuses antigos
e segue uma ética entre
o epicurismo e o estoicismo:
em tudo
procurar moderação, quer
no prazer, quer
na dor. A moderação, a calma, a tranquilidade, deve ser
a grande regra
do homem. Há uma velada tristeza
nos seus
poemas, talvez
o disfarce de um
esforço lúcido
para se adaptar ou para evitar
os piores efeitos
da fatalidade:
Estás só.
Ninguém o sabe. Cala
e finge
Mas finge sem
fingimento,
Nada esperes que
em ti já
não exista,
Cada um
consigo é triste.
Tens sol se há sol,
ramos se ramos
buscas,
Sorte se a sorte
é dada.
O estilo
das Odes
de Ricardo Reis utiliza todos os ingredientes
do Classicismo: o epicurismo
do Carpe Diem (vive o dia de hoje) e
a áurea mediocritas de Horácio, a teoria do fluir inexorável da vida,
de Heráclito, o uso estilístico de ordem inversa (hipérbato),
o emprego de latinismos, quer de palavras
(termos eruditos,
gerúndio dos verbos),
quer de construções.
Reis distancia-se de Caeiro porque
aceita a força ordenadora da razão, porque pensa que “as coisas devem ser sentidas não só como são mas também de modo a integrarem-se num certo
ideal de medida
e regra clássicas” (F.Pessoa).
O próprio estilo
de Ricardo Reis, elegante
e cuidado, manifesta
bem a tentativa de adequar a linguagem
(a forma) a uma concepção
do mundo e da vida.
Ao contrário, Caeiro julga que “as coisas não têm significado:
têm existência”.
Aproxima-se de Caeiro no seu
paganismo (“Cristo
é apenas um
deus a mais”)
e no seu apego
à natureza campestre
(áurea mediania). Note-se, porém, que em Caeiro a observação
da natureza se realiza numa aceitação alegre, ao passo que em Ricardo Reis
há apenas uma satisfação
aparente, uma serenidade
que esconde um
recôndito desespero,
como se o poeta
fosse um desterrado num mundo estranho.
(António Afonso Borregana, Fernando Pessoa
e Heterónimos, Lisboa, Texto
Editora, 1995).
TEXTO 2
Angustiado perante
um Destino mudo que o
arrasta na voragem, Reis
procura na sabedoria
dos antigos um
remédio para os seus males. Também os Gregos
sofreram agudamente a dor da caducidade
e o peso da Moira
cruel. Simplesmente,
optaram por aceitar
com altivez
o destino que
lhes era
imposto. Reconhecendo que a vida terrena outorgada a cada
um, não
obstante a sua
instabilidade e contingência,
é o único bem
em que
podemos, até certo
ponto firmar-nos, souberam construir
a partir dele uma felicidade
relativa, encarando com
lucidez o mundo
e compensando a sua radical
imperfeição pela
criação estética,
fazendo da própria vida
uma arte.
Reis copia-lhes o exemplo. Não hesita em confessar a Lídia que,
de qualquer modo,
prefere o presente precário
a um futuro
que teme porque
o desconhece. Mas como
habilmente fruir do pouco
que nos
é dado - o dia
que passa?
O poeta deixa-se tentar pelo ópio
da perfeita inconsciência.
Considera o contentamento dos que
vivem distraídos: o sábio
austero, entregue
á sua estéril
ocupação, o lavrador
que «goza
incerto / A não pensada vida”. Ele próprio algumas vezes
experimentou viver exterior
a si, como
os campos, regressar
ao Caos e à Noite.
Mas a noção
da dignidade humana,
«o orgulho de ver
sempre claro»,
fá-lo, quer arrepiar
caminho, refluir
ao eu consciente,
quer encarar
o destino frente
a frente, lúcido
e solene: «Antes,
sabendo / Ser nada,
que ignorando: / Nada
dentro de nada”.
Já nisto segue Epicuro, para
quem «uma clara
percepção das coisas»
era o melhor
dom que
sobre a Terra
podíamos desejar.
Embora com tintas
de estoicismo, devidas talvez ao facto de ser
Horácio o seu autor
de cabeceira, Reis
formula uma filosofia da vida cuja orientação é, na verdade, epicurista (epicurismo
também haurido, em
parte, se não
quase exclusivamente,
na poesia do Venusino). O homem de sabedoria
edifica-se, conquista a autonomia interior
na restrita área de liberdade
que lhe
ficou. Essa conquista começa por um acto de abdicação: «Abdica / E sê rei de ti próprio». Reis propõe-se e propõe-nos um
duro esforço
de autodisciplina.
O primeiro objecto é a submissão
voluntária a um
destino involuntário,
que deste modo
cumprimos altivamente, sem um queixume: «Teu
íntimo destino
involuntário / Cumpre alto. Sê teu filho». O homem
de sabedoria chega
a antecipar-se ao próprio destino,
aceitando livremente a morte:
«E quando entremos pela noite dentro / Por
nosso pé
entremos”. O segundo objectivo é evitar as ciladas da
Fortuna, depurando a alma de instintos
e paixões que
nos prendam ao transitório,
alienando a nossa vida.
Com Epicuro, o filósofo da «cariciosa
voz terrestre”,
que via
tranquilamente a vida «á distância a que
está”, digno como
um deus,
aprendeu Reis que
a ataraxia é a primeira condição de felicidade.
A ataraxia, note-se, não implica para Epicuro ausência
de prazer mas
indiferença perante
todo o prazer
que nos
compromete, colocando-nos na dependência
dos outros ou
das coisas. Além
da sensação elementar
de existir, os prazeres
tipicamente epicuristas são espirituais,
como a volúpia
levemente melancólica de recordar
os bons momentos
do passado.
(Jacinto
do Prado Coelho,
Diversidade e Unidade
em Fernando Pessoa,
pp. 36-37)
|
Fernando Pessoa, por Sabat |
Avalie os seus conhecimentos acerca do heterónimo pessoano Ricardo Reis.
1. Ligue os segmentos frásicos das duas colunas.
1. Ricardo Reis,
tal como Caeiro,
|
a) considerando o seu exercício
mental em desejar atingir a felicidade de um modo comedido.
|
2. Apesar de apresentar alguns pontos
comuns com o seu mestre,
|
b) recorre à ode, à mitologia e aos
latinismos.
|
3. O heterónimo
de raízes clássicas vai abdicar dos prazeres intensos,
|
c) são alguns dos conselhos de
Ricardo Reis, seguidor do carpe diem
horaciano.
|
4. Evitar as preocupações
e gozar moderadamente o momento presente
|
d) revela-se pagão, aceitando a
ordem das coisas ao gozar a vida, pensando o menos possível.
|
5. Adaptando uma
postura de tranquilidade imperturbável,
|
e) comprovado pelo recorrente uso do
imperativo e do vocativo, de modo a transmitir uma lição de vida.
|
6. Como um clássico, este heterónimo
|
f) Ricardo Reis faz um exercício de
autodisciplina para poder viver mais tranquilamente.
|
7. Na obra de
Ricardo Reis, perpassa um tom didático
|
g) tal como preconizava o
estoicismo.
|
8. Os ideais
clássicos de equilíbrio e harmonia aplicam-se a Ricardo
Reis,
|
h) designada de ataraxia, o homem
poderá alcançar a felicidade, na perspetiva do heterónimo Ricardo Reis
|
(in Das
Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 12º Ano
Ana Maria Cardoso, Célia Fonseca, Maria José Peixoto, Vítor Oliveira, Porto,
Edições Asa, 2005, p. 103)
2.
Leia o poema “Não
consentem os deuses mais que a vida”
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha connosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.
Ricardo Reis, 17/07/1914 (Athena,
n.º 1, Outubro de 1924)
Partindo
do poema “Não
consentem os deuses mais
que a vida”,
corrobore ou contrarie a seguinte afirmação: “A filosofia
de vida do eu
define-se pela aceitação
voluntária do destino
involuntário”.
(Complete
os espaços do texto que se segue com as
palavras/expressões que se seguem.)
1.
Sofrimento
2.
relativa
3.
refutável
4.
presente do conjuntivo
5.
máxima
6.
lucidez
7.
Imposto
8.
deuses
9.
destino involuntário
10.
Comparação
11.
Autodisciplina
12.
ausência de perturbação e de vivências
violentas e profundas de paixões
13.
aceitação voluntária
14.
“só”
15.
(inversão da ordem
natural das palavras
da frase)
16.
(“Tudo pois refusemos, que nos alce / A irrespiráveis píncaros,
/ Perenes sem
ter flores”)
17.
epicuristas e estoicistas
Com efeito, neste poema, o sujeito poético
demonstra uma ______________________ (“Só
de aceitar tenhamos a ciência”)
do ______________________ (“Não
consentem os deuses mais
que a vida”)
e até exorta o seu
destinatário a partilhar
com ele
essa filosofia de vida,
o que é transmitido pelo
recurso ao ______________________,
com valor
incitativo, empregue na primeira pessoa do plural,
pressupondo, portanto, um eu e um tu/vós.
A ideia de destino involuntário, dado
ao homem pelos
______________________, é, assim,
entendida pelo
uso de uma espécie
de ______________________ (proposição que não carece
de demonstração por
ser de evidência
imediata), a qual
não é, portanto
______________________.
O facto de colocar
o verbo “aceitar”,
como atitude
a ter, associado
à “ciência” e acompanhado
do advérbio com
sentido de exclusividade
______________________, mostra
que a aceitação
desse destino que
nos é ______________________
é a única atitude
validamente sábia. Assim,
o homem conquista
a liberdade que
parecia perdida, dada a existência do destino. E de
referir, também
o recurso ao hipérbato
______________________, através
do qual se destaca, na frase, o dito verbo.
O sujeito poético
propõe-nos, deste modo, um duro esforço de ______________________, cujo primeiro objetivo é a submissão voluntária
ao dito destino
involuntário que,
deste modo, cumprimos altivamente, como
se de uma escolha nossa
se tratasse, tomando-se paradoxalmente
uma escolha nossa.
Essa ideia de liberdade está também implícita
na recusa de tudo o que
possa significar duração,
glória terrena
______________________, a fim
de se chegar à morte de mãos vazias e com
o mínimo de ______________________.
Na sua ânsia de procurar convencer o(s) outros
desta sua filosofia
de vida, o sujeito
poético elucida melhor o(s) destinatário(s) (que
já implicou de forma
bastante aberta),
recorrendo à ______________________ entre
esta forma de viver a vida, de “durar”, e a dos vidros: “(...) duremos / Como
os vidros, às luzes
transparentes /E deixando escorrer
a chuva triste,
/ Só momos
ao sol quente,
/ E reflectindo um pouco”.
Nesta ______________________
estão subjacentes os princípios das correntes
filosóficas ______________________. Quer
isto significar
que, tal
como os vidros
se deixam atravessar pela
luz, isto
é, são transparentes
à luz, e deixam “escorrer
a chuva triste”,
também nós,
os homens, devemos deixar
cumprir-se nossos destinos,
sem reclamarmos nem
contestarmos, apenas aceitando, de livre vontade, um destino involuntário (estoicismo).
Para além
disso, nesta ______________________ ainda
transparecem os princípios da corrente epicurista, presentes na ______________________,
ideias subjacentes à forma
moderada como os vidros
“se comportam”: “Só momos
ao sol quente
/ E reflectindo um pouco”.
Concluindo, o sujeito
poético reconhece que a vida terrena
concedida a cada um,
não obstante
a sua instabilidade
e contingência, é o único
bem em que podemos, até
certo ponto,
firmar-nos, construindo sabiamente a partir desse bem uma felicidade ______________________, encarando com
______________________ o mundo
e conquistando a sua liberdade, aceitando voluntariamente o destino
e rejeitando, também voluntariamente, os
sentimentos fortes
e o prazer, pois a
ataraxia é a primeira condição de felicidade.
CHAVE DE
RESPOSTA:
13 – 9 – 4 – 8
– 5 – 3 – 14 – 7 – 15 – 11 – 16 – 1 – 10 – 10 – 17 – 10 – 12 - 2 – 6.