quinta-feira, 10 de maio de 2018

Ricardo Reis

Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa.
Pormenor do mural de Almada Negreiros, 1958,
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.





uma arte de viver
Ricardo Reis 

Ricardo Reis nasce no Porto, forma-se em Medicina e tem de se exilar ao Brasil por ser monárquico. Os principais traços da sua escrita são: 
Neoclassicismo: latinismo e semi-helenismo (odes). 
Intemporalidade das suas preocupações: brevidade da vida, morte, sofrimento....



Na poesia de Ricardo Reis, há um sentimento da fugacidade da vida, mas ao mesmo tempo uma grande serenidade na aceitação da relatividade das coisas e da miséria da vida.
A vida é efémera e o futuro imprevisível. "Amanhã não existe", afirma o Poeta. Estas certezas levam-no a estabelecer uma filosofia de vida, de inspiração horaciana e epicurista, capaz de conduzir o homem numa existência sem inquietações nem angústias.
Reconhecendo a fraqueza humana e a inevitabilidade da morte, Reis procura uma forma de viver com um mínimo de sofrimento. Por isso, defende um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.
Na linha do poeta latino Horácio, Reis considera importante o carpe diem, o aproveitar o momento, o prazer de cada instante.
Sendo um epicurista, o Poeta advoga a procura do prazer sabiamente gerido, com moderação e afastado da dor. Para isso, é necessário encontrar a ataraxia, a tranquilidade capaz de evitar qualquer perturbação. O ser humano deve ordenar a sua conduta de forma a viver feliz, procurando o que lhe agrada.
A obra de Ricardo Reis apresenta um epicurismo triste, uma vez que busca o prazer relativo, uma verdadeira ilusão da felicidade por saber que tudo é transitório (ex.: Vem sentar-te, comigo, Lídia).
A apatia, ou seja, a indiferença, constitui o ideal ético, pois, de acordo com o Poeta, há necessidade de saber viver com calma e tranquilidade, abstendo-se de esforços inúteis para obter uma glória ou virtude, que nada acrescentam à vida.
Próximo de Caeiro, há na sua poesia a aurea mediocritas, o sossego do campo, o fascínio pela natureza onde busca a felicidade relativa.
Discípulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis refugia-se na aparente felicidade pagã que lhe atenua o desassossego. Procura alcançar a quietude e a perfeição dos deuses, desenhando um novo mundo à sua medida, que se encontra por detrás das aparências.
Afirma uma crença nos deuses e nas presenças quase-divinas que habitam todas as coisas. Afirma que os homens se devem considerar "deidades exiladas", com direito a vida própria.
Considera que sendo o destino "calmo e inexorável" acima dos próprios deuses, temos necessi­dade do autodomínio, de nos portarmos "altivamente" como "donos de nós-mesmos", construindo o nosso "fado voluntário". Devemos procurar, voluntariamente, submetermo-nos, ainda que só possamos ter a ilusão da liberdade.
Pagão por caráter e pela formação helénica e latina, há na sua poesia uma actualização de estoicismo e epicurismo, juntamente com uma postura ética e um constante diálogo entre o passado e o presente.

(in Preparação para o Exame Nacional 2010. Português 12º Ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora, 2010, pp. 40-41)



TEXTOS DE APOIO

Texto 1

Representa o poeta clássico, quer na mentalidade, quer no estilo. É pagão, acreditando em todos os deuses antigos e segue uma ética entre o epicurismo e o estoicismo: em tudo procurar moderação, quer no prazer, quer na dor. A moderação, a calma, a tranquilidade, deve ser a grande regra do homem. Há uma velada tristeza nos seus poemas, talvez o disfarce de um esforço lúcido para se adaptar ou para evitar os piores efeitos da fatalidade:

Estás . Ninguém o sabe. Cala e finge
Mas finge sem fingimento,
Nada esperes que em ti não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

O estilo das Odes de Ricardo Reis utiliza todos os ingredientes do Classicismo: o epicurismo do Carpe Diem (vive o dia de hoje) e a áurea mediocritas de Horácio, a teoria do fluir inexorável da vida, de Heráclito, o uso estilístico de ordem inversa (hipérbato), o emprego de latinismos, quer de palavras (termos eruditos, gerúndio dos verbos), quer de construções.
Reis distancia-se de Caeiro porque aceita a força ordenadora da razão, porque pensa que “as coisas devem ser sentidas não como são mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas” (F.Pessoa). O próprio estilo de Ricardo Reis, elegante e cuidado, manifesta bem a tentativa de adequar a linguagem (a forma) a uma concepção do mundo e da vida. Ao contrário, Caeiro julga que “as coisas não têm significado: têm existência”.
Aproxima-se de Caeiro no seu paganismo (“Cristo é apenas um deus a mais”) e no seu apego à natureza campestre (áurea mediania). Note-se, porém, que em Caeiro a observação da natureza se realiza numa aceitação alegre, ao passo que em Ricardo Reisapenas uma satisfação aparente, uma serenidade que esconde um recôndito desespero, como se o poeta fosse um desterrado num mundo estranho.

(António Afonso Borregana, Fernando Pessoa e Heterónimos, Lisboa, Texto Editora, 1995).



TEXTO 2

Angustiado perante um Destino mudo que o arrasta na voragem, Reis procura na sabedoria dos antigos um remédio para os seus males. Também os Gregos sofreram agudamente a dor da caducidade e o peso da Moira cruel. Simplesmente, optaram por aceitar com altivez o destino que lhes era imposto. Reconhecendo que a vida terrena outorgada a cada um, não obstante a sua instabilidade e contingência, é o único bem em que podemos, até certo ponto firmar-nos, souberam construir a partir dele uma felicidade relativa, encarando com lucidez o mundo e compensando a sua radical imperfeição pela criação estética, fazendo da própria vida uma arte.
Reis copia-lhes o exemplo. Não hesita em confessar a Lídia que, de qualquer modo, prefere o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece. Mas como habilmente fruir do pouco que nos é dado - o dia que passa?
O poeta deixa-se tentar pelo ópio da perfeita inconsciência. Considera o contentamento dos que vivem distraídos: o sábio austero, entregue á sua estéril ocupação, o lavrador que «goza incerto / A não pensada vida”. Ele próprio algumas vezes experimentou viver exterior a si, como os campos, regressar ao Caos e à Noite. Mas a noção da dignidade humana, «o orgulho de ver sempre claro», fá-lo, quer arrepiar caminho, refluir ao eu consciente, quer encarar o destino frente a frente, lúcido e solene: «Antes, sabendo / Ser nada, que ignorando: / Nada dentro de nada”. nisto segue Epicuro, para quem «uma clara percepção das coisas» era o melhor dom que sobre a Terra podíamos desejar.
Embora com tintas de estoicismo, devidas talvez ao facto de ser Horácio o seu autor de cabeceira, Reis formula uma filosofia da vida cuja orientação é, na verdade, epicurista (epicurismo também haurido, em parte, se não quase exclusivamente, na poesia do Venusino). O homem de sabedoria edifica-se, conquista a autonomia interior na restrita área de liberdade que lhe ficou. Essa conquista começa por um acto de abdicação: «Abdica / E sê rei de ti próprio». Reis propõe-se e propõe-nos um duro esforço de auto­disciplina. O primeiro objecto é a submissão voluntária a um destino involuntário, que deste modo cumprimos altivamente, sem um queixume: «Teu íntimo destino involuntário / Cumpre alto. Sê teu filho». O homem de sabedoria chega a antecipar-se ao próprio destino, aceitando livremente a morte: «E quando entremos pela noite dentro / Por nosso entremos”. O segundo objectivo é evitar as ciladas da Fortuna, depurando a alma de instintos e paixões que nos prendam ao transitório, alienando a nossa vida. Com Epicuro, o filósofo da «cariciosa voz terrestre”, que via tranquilamente a vida «á distância a que está”, digno como um deus, aprendeu Reis que a ataraxia é a primeira condição de felicidade. A ataraxia, note-se, não implica para Epicuro ausência de prazer mas indiferença perante todo o prazer que nos compromete, colocando-nos na dependência dos outros ou das coisas. Além da sensação elementar de existir, os prazeres tipicamente epicuristas são espirituais, como a volúpia levemente melancólica de recordar os bons momentos do passado.

(Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, pp. 36-37)

Fernando Pessoa, por Sabat


Avalie os seus conhecimentos acerca do heterónimo pessoano Ricardo Reis.

1. Ligue os segmentos frásicos das duas colunas.

1. Ricardo Reis, tal como Caeiro,
a) considerando o seu exercício mental em desejar atingir a felicidade de um modo comedido.
2. Apesar de apresentar alguns pontos comuns com o seu mestre,
b) recorre à ode, à mitologia e aos latinismos.
3. O heterónimo de raízes clássicas vai abdicar dos prazeres intensos,
c) são alguns dos conselhos de Ricardo Reis, seguidor do carpe diem horaciano.
4. Evitar as preocupações e gozar moderadamente o momento presente
d) revela-se pagão, aceitando a ordem das coisas ao gozar a vida, pensando o menos possível.
5. Adaptando uma postura de tranquilidade imperturbável,
e) comprovado pelo recorrente uso do imperativo e do vocativo, de modo a transmitir uma lição de vida.
6. Como um clássico, este heterónimo
f) Ricardo Reis faz um exercício de autodisciplina para poder viver mais tranquilamente.
7. Na obra de Ricardo Reis, perpassa um tom didático
g) tal como preconizava o estoicismo.
8. Os ideais clássicos de equilíbrio e harmonia aplicam-se a Ricardo Reis,
h) designada de ataraxia, o homem poderá alcançar a felicidade, na perspetiva do heterónimo Ricardo Reis

(in Das Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 12º Ano
Ana Maria Cardoso, Célia Fonseca, Maria José Peixoto, Vítor Oliveira, Porto, Edições Asa, 2005, p. 103)



2. Leia o poema “Não consentem os deuses mais que a vida

Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
              A irrespiráveis píncaros,
              Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
              Nem se engelha connosco
              O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
              Só mornos ao sol quente,
              E refletindo um pouco.

Ricardo Reis, 17/07/1914 (Athena, n.º 1, Outubro de 1924)


Partindo do poemaNão consentem os deuses mais que a vida”, corrobore ou contrarie a seguinte afirmação: “A filosofia de vida do eu define-se pela aceitação voluntária do destino involuntário”.
(Complete os espaços do texto que se segue com as palavras/expressões que se seguem.)

1.         Sofrimento
2.        relativa
3.        refutável
4.        presente do conjuntivo
5.        máxima
6.        lucidez
7.        Imposto
8.       deuses
9.        destino involuntário
10.    Comparação
11.     Autodisciplina
12.    ausência de perturbação e de vivências violentas e profundas de paixões
13.    aceitação voluntária
14.   
15.     (inversão da ordem natural das palavras da frase)
16.    (“Tudo pois refusemos, que nos alce / A irrespiráveis píncaros, / Perenes sem ter flores”)
17.     epicuristas e estoicistas


Com efeito, neste poema, o sujeito poético demonstra uma ______________________ (“ de aceitar tenhamos a ciência”) do ______________________ (“Não consentem os deuses mais que a vida”) e até exorta o seu destinatário a partilhar com ele essa filosofia de vida, o que é transmitido pelo recurso ao ______________________, com valor incitativo, empregue na primeira pessoa do plural, pressupondo, portanto, um eu e um tu/vós.
A ideia de destino involuntário, dado ao homem pelos ______________________, é, assim, entendida pelo uso de uma espécie de ______________________ (proposição que não carece de demonstração por ser de evidência imediata), a qual não é, portanto ______________________.
O facto de colocar o verboaceitar”, como atitude a ter, associado à “ciência” e acompanhado do advérbio com sentido de exclusividade ______________________, mostra que a aceitação desse destino que nos é ______________________ é a única atitude validamente sábia. Assim, o homem conquista a liberdade que parecia perdida, dada a existência do destino. E de referir, também o recurso ao hipérbato ______________________, através do qual se destaca, na frase, o dito verbo.
O sujeito poético propõe-nos, deste modo, um duro esforço de ______________________, cujo primeiro objetivo é a submissão voluntária ao dito destino involuntário que, deste modo, cumprimos altivamente, como se de uma escolha nossa se tratasse, tomando-se paradoxalmente uma escolha nossa. Essa ideia de liberdade está também implícita na recusa de tudo o que possa significar duração, glória terrena ______________________, a fim de se chegar à morte de mãos vazias e com o mínimo de ______________________.
Na sua ânsia de procurar convencer o(s) outros desta sua filosofia de vida, o sujeito poético elucida melhor o(s) destinatário(s) (que implicou de forma bastante aberta), recorrendo à ______________________ entre esta forma de viver a vida, de “durar”, e a dos vidros: “(...) duremos / Como os vidros, às luzes transparentes /E deixando escorrer a chuva triste, / momos ao sol quente, / E reflectindo um pouco”.
Nesta ______________________ estão subjacentes os princípios das correntes filosóficas ______________________. Quer isto significar que, tal como os vidros se deixam atravessar pela luz, isto é, são transparentes à luz, e deixam “escorrer a chuva triste”, também nós, os homens, devemos deixar cumprir-se nossos destinos, sem reclamarmos nem contestarmos, apenas aceitando, de livre vontade, um destino involuntário (estoicismo). Para além disso, nesta ______________________ ainda transparecem os princípios da corrente epicurista, presentes na ______________________, ideias subjacentes à forma moderada como os vidros “se comportam”: “ momos ao sol quente / E reflectindo um pouco”.
Concluindo, o sujeito poético reconhece que a vida terrena concedida a cada um, não obstante a sua instabilidade e contingência, é o único bem em que podemos, até certo ponto, firmar-nos, construindo sabiamente a partir desse bem uma felicidade ______________________, encarando com ______________________ o mundo e conquistando a sua liberdade, aceitando voluntariamente o destino e rejeitando, também voluntariamente, os sentimentos fortes e o prazer, pois a ataraxia é a primeira condição de felicidade.

CHAVE DE RESPOSTA: 
13 – 9 – 4 – 8 – 5 – 3 – 14 – 7 – 15 – 11 – 16 – 1 – 10 – 10 – 17 – 10 – 12  - 2 – 6.


3. Leitura orientada e notas para a análise literária de poemas do heterónimo pessoano Ricardo Reis:

Poema

Incipit

Antes de nós nos mesmos arvoredos

Antes de nós nos mesmos arvoredos

A palidez do dia é levemente dourada

A palidez do dia é levemente dourada.

Bocas roxas de vinho

Bocas roxas de vinho,

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

Mestre, são plácidas

Mestre, são plácidas

O mar jaz; gemem em segredo os ventos

O mar jaz; gemem em segredo os ventos

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,

Segue o teu destino

Segue o teu destino,

Sofro, Lídia, do medo do destino.

Sofro, Lídia, do medo do destino.

Só o ter flores pela vista fora

Só o ter flores pela vista fora

Uns, com os olhos postos no passado

Uns, com os olhos postos no passado

 

 

 

4. Ficha de aferição de leitura relativa aos heterónimos pessoanos Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Aqui.





CARREIRO, José. Ricardo Reis. Portugal, Folha de Poesia, 10-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/ricardo-reis.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 16-12-2011. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/FP_RicardoReis.htm)