quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Contrariedades, Cesário Verde

A estética antirromântica vista através da imagem da mulher. A ironia.



CONTRARIEDADES1


I




II




III




IV




V




VI




VII




VIII




IX




X




XI




XII




XIII




XIV




XV




XVI




XVII








5





10





15





20






25





30





35





40






45





50





55





60






65



Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
       Consecutivamente.2

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
       E os ângulos agudos. 

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
       E engoma para fora. 

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!3
       Mal ganha para sopas...4

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;5
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
       Um folhetim de versos. 

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
       Me tem fechado a porta. 

A critica segundo o método de Taine6
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
       Vale um desdém solene. 

Com raras exceções merece-me o epigrama7.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,8
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho9
       Diverte-se na lama. 

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,10
Mas sim, por deferência11, a amigos ou a artistas.12
Independente! Só por isso os jornalistas
       Me negam as colunas. 

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais cousas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
       Deliram por Zaccone.13

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,14
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie15;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
       Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
       Os meus alexandrinos.16

E a tísica17? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
       E fina-se ao desprezo! 

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.18
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
       Duma opereta nova! 

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
       Impressas em volume? 

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame19; a intriga, o anúncio, a blague20,
E esta poesia pede um editor que pague
       Todas as minhas obras... 

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadoria ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
       Que mundo! Coitadinha!

Cesário Verde
Porto, O Porto, 18 de março de 1876 

Vocabulário e notas sobre a edição do texto:

1 Título primitivo do poema: “Nevroses”.

2 Na primitiva publicação: E agrado a pouca gente.

3 Botica: farmácia.

Na sua edição de O Livro de Cesário Verde, Cabral do Nascimento, por motivos de metrificação, propôs se emende E deve a conta à botica!, que é o verso publicado no Livro, para E deve a conta na botica! Adotou-se esta versão.

4 Na primitiva publicação: Mal ganha para as sopas...

5 O obstáculo ou depura ou torna-nos perversos;

6 O método crítico de Taine pode ser definido como “a aplicação da análise ao real com o propósito implícito de exacerbar a sua compreensão critica".

- Para Taine, a obra de arte tem por fim manifestar qualquer carácter essencial ou notável, e portanto uma ideia importante, mais claramente e mais completamente do que o fazem os objetos reais. Consegue-o empregando um conjunto de partes ligadas de que modifica sistematicamente as relações. Nas três artes de imitação - escultura, pintura e poesia -, estes conjuntos correspondem a objetos reais. (H. Taine, Philosophie de l'Art, I, 41-42).

O meu único dever é expor-vos os factos e mostrar-vos como esses factos são produzidos. O método moderno que eu procuro seguir, e que começa a introduzir-se em todas as ciências morais, consiste em considerar as obras humanas, e especialmente as obras de arte, como factos e produtos de que é preciso notar as características e procurar as causas; mais nada.·Entendida assim, a ciência não proscreve nem perdoa: constata e explica. (Ibid., I, 12).

- Não há mais do que movimentos presentes, futuros, ou possíveis, ligados a certas condições, variáveis em grandeza e em direção segundo uma certa lei, e definidos em relação a certos pontos. Assim, no mundo físico como no mundo moral, não sobra nada do que habitualmente se entende como substância e força; tudo o que subsiste são os acontecimentos, as suas condições e as suas dependências, uns morais ou concebidos em termos de sensação, outros físicos ou concebidos em termos de movimento. A noção do facto ou acontecimento corresponde somente às coisas reais. (De l’Intelligence, I, 349).

E mais adiante: Se abrangermos de um só olhar a natureza e se expulsarmos da nossa mente todos os fantasmas que metemos entre a natureza e o pensamento, não veremos no mundo nada mais do que séries simultâneas de acontecimentos sucessivos, cada acontecimento sendo a condição de um outro e tendo um outro como condição, (p. 350).

Nada fica de nós além dos nossos acontecimentos, sensações, imagens, memórias, ideias, resoluções: são eles que constituem o nosso ser; e a análise dos nossos julgamentos mais elementares efetivamente demonstra que o nosso eu não tem outros elementos. (Ibid, p. 343). E ainda: Os nossos acontecimentos sucessivos são portanto os componentes sucessivos do nosso eu. (lbid., p. 343). (...)

- Não há nada de real no eu além da sucessão dos seus acontecimentos. (lbid., p. 7).  (Apud Nós, uma leitura de Cesário Verde, Helder Macedo. Lisboa: Presença, 1989.)

7 Epigrama: breve composição poética, com um remate de conteúdo irónico ou satírico.

8 Na primitiva publicação: Deu meia-noite, e em paz, pela calçada abaixo

9 Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho

O verso da edição de Silva Pinto é o seguinte: Um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho

10 Eu nunca dediquei composições nenhumas,

11 Deferência: consideração, respeito.

12 Senão, por deferência, a amigos ou a artistas.

13 Pierre Zaccone (1817-1898), romancista popular francês, autor de novelas, romances e folhetins histórico-dramáticos.

14 Um prosador, aqui, desfruta fama honrosa,

15 Coterie: grupo de indivíduos que defende conjuntamente os seus interesses; (depreciativo) grupo de fãs, círculo, "capelinha".

16 Alexandrino: diz-se do verso de doze sílabas, geralmente acentuado na sexta.

17 Tuberculosa.

18 Na primitiva publicação: Nem pão no armário, ó Deus! chama por ela a cova.

19 Réclame: publicidade.

20 Blague: peta, patranha; mentira; relato inventado para provocar ou fazer rir.

 

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983




     Leitura orientada do poema “Contrariedades”, de Cesário Verde

O poema coloca-nos perante dois seres em situação de «contrariedade»: um poeta mal recebido pela crítica e uma engomadeira, sua vizinha, em situação de doença, que precisa de ganhar a vida através de um trabalho que lhe é prejudicial e particularmente penoso. Ambos se assemelham: ambos curvados, - ele sobre a mesa, ela sobre a tábua de engomar; ambos doentes, -ele com dor de cabeça, ela tísica; - ele, «abafando desesperos mudos», ela, «sofrendo de faltas de ar». A diferença entre os dois é que ele está contrariado, indisposto contra os críticos, - e ela, apesar de objetivamente em pior situação, canta. E este canto vai ter repercussão positiva no poeta, pondo-o melhor, dando-lhe saúde. Ao longo do poema são de notar a ironia, a autoironia e o sarcasmo, o vocabulário corrente, «prosaico», a imagística surrealizante já referida mais atrás e presente na 2.ªestrofe.

http://www.navedapalavra.com.br/resenhas/cesarioverde.htm (consulta: 2002-12-18)

 

***

 

Proposta de quatro trabalhos de grupo:

I - Neste poema há um paralelismo entre duas situações aí apresentadas: a do sujeito poético e a da engomadeira, havendo, por isso, um movimento do poema entre as duas personagens.

Através de um esquema:

- Explicita este movimento;

- Clarifica a situação de cada uma das personagens.

 

Sugestão de resposta:

Quadras

 

1-2

situação do poeta

3-4

situação da engomadeira

5-9

Comentário do poeta sobre a sua posição perante a vida na cidade

10-12

reflexão amarga sobre a sua poesia e sobre a estratégia necessária para obter sucesso no mundo literário

13-14

situação da engomadeira

15-16

situação do poeta

17

situação do poeta e da engomadeira - síntese do poema

 

Nota-se um paralelismo entre a situação do poeta e a situação da engomadeira:

Situação do Poeta

Paralelismo
e
justaposição

Situação da Engomadeira

Injustiça estética

Injustiça social

 

Trabalha curvado sobre a secretária

"Sentei-me à secretária"

Trabalha curvada sobre a tábua de engomar

"E engoma para fora"

Fuma excessivamente

"Já fumei três maços de cigarros /Consecutivamente”

Engoma incessantemente (fumo asfixiante)

“Lidando sempre"; "Fechada e com o ferro aceso!"

Tem a cabeça a doer (fumo dos cigarros)

"Dói-me a cabeça"

Tem os pulmões doentes (ar viciado pelo fumo).

"os dois pulmões doentes"; "Ignora que a asfixia a combustão das brasas"

Vê rejeitada a publicação dos seus versos.

“um jornal me rejeitar (…) um folhetim de versos"

Foi abandonada pelo médico.

"O doutor deixou-a"

Sufoca por causa da decadência da sociedade.

“abafo uns desesperos mudos"

Sufoca devido à precaridade das condições em que vive.

"Sofre de faltas de ar"

Dois mundos paralelos e justapostos 




II - Neste poema, privilegia-se, no sujeito poético, o retrato psicológico e na engomadeira, o retrato físico, devido às particularidades da situação vivida pelas personagens.

- Faz o retrato de cada uma delas.

- Clarifica a crítica que aí é feita à sociedade contemporânea de Cesário.

 

Sugestão de resposta:

O sujeito poético começa por revelar o seu estado emocional ("eu hoje estou cruel, frenético, exigente") exemplificando, por ordem inversa, cada um desses sentimentos. Assim, há correlação entre estar cruel e a afirmação de que ama "insensatamente, os ácidos, os "gumes e os ângulos agudos", vocábulos que se integram no campo semântico de crueldade; ligação semelhante acontece entre estar frenético e fumar "três maços de cigarros consecutivamente"; também encontramos correspondência entre estar exigente e não poder "tolerar os livros mais bizarros".

Nestas duas primeiras quadras, o seu estado psicológico é também retratado através da justaposição de sintomas físicos ("Dói-me a cabeça"), atitudes psicológicas ("Abafo uns desesperos mudos") e comentários moralizantes ("Tanta depravação nos usos, nos costumes!"). Tudo isto culmina num estado de espírito bastante disfórico ("Agora sinto-me eu cheio de raivas frias"; "de mau humor"), e é resultado das características que o sujeito poético observa numa sociedade, cuja realidade é captada de forma objetiva e profunda. Deste modo, aponta, como causas para a sua situação emocional, a depravação nos usos e nos costumes e as injustiças da vida em sociedade: a doença que destrói a vizinha e o abandono a que ela é votada, a exploração do trabalho de engomadeira, a recusa da publicação dos seus versos por um jornal.

Apesar de, no fim do poema, apresentar uma alteração no seu estado de espírito, já que diz sentir-se melhor ("E estou melhor; passou-me a cólera"), talvez por ter dado vazão à sua raiva, não deixa de denunciar e acusar a sociedade pelo que ela tem de injusto e pouco solidário.

Na engomadeira, a visão do sujeito poético incide sobre características físicas que denunciam a precaridade da situação em que ela vive. Assim, faz-se ressaltar a sua magreza ("sem peito"), a cor branca do seu rosto, lívida mesmo, e a sua condição tisica degradante ("Pobre esqueleto branco"), resultado da doença que a consome ("os dois pulmões doentes; / Sofre de faltas de ar"). Estas características chocam com a função social que a personagem desempenha ("E engoma para fora"), já que ela exerce uma profissão, é, portanto, útil a uma sociedade que a ignora, a despreza ("O doutor deixou-a") e a explora, de forma desumana ("Lidando sempre. E deve a conta na botica! / Mal ganha para sopas... ").

A traços largos, delineia-se o retrato social de uma classe trabalhadora oprimida, desenhando-se a verdade nua e crua ("Uma infeliz"; "Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia..."), segundo o efeito que provoca naquele que a observa Assim, a sua infelicidade, primeira característica observada, abre o retrato desta mulher e cobre tanto a sua existência física, quanto a familiar ("morreram-lhe os parentes") e a profissional (3.ª quadra).

A fechar a sua caracterização há a referência a um aspeto desconcertante: "É feia...". Esta constatação vem completar o retrato da vizinha, no que diz respeito à sua infelicidade. Para além de abranger todos os pontos já vistos, trata-se de uma infelicidade irremediável. Significa isto que, contrariamente às possibilidades do sujeito poético, o qual poderia triunfar comercialmente, comprometendo os seus critérios de valor artístico, a engomadeira não tem qualquer hipótese de triunfo. Vítima da estrutura social, condenada à existência miserável da população trabalhadora da cidade, a sociedade já a colocou no último patamar da humilhação.

Critica-se a opressão social da cidade e denuncia-se as circunstâncias sociais injustas, numa sociedade desumana, insensível, decadente, depravada O sujeito poético insurge-se contra a desumanidade e a ignorância que oprimem e marginalizam os mais fracos.

 

III – Filiar Cesário numa qualquer escola literária é, talvez, demasiado arriscado. Parece, todavia, evidente a sua aproximação a várias estéticas surgidas no século em que viveu.

Assim, se se tiver em conta o interesse que manifesta pela realidade que o circunda, a forma minuciosa como a capta e a objetividade e o pormenor descritivo com que transmite o real, é fácil detetar aqui os princípios gerais do Realismo.

Mas mais do que reproduzir o real objetivo, Cesário procura representar a impressão que o real deixa em si próprio. Daí poder-se afirmar que há um desvio do Realismo a favor de uma "apreensão impressionista do real".

Note-se que o Impressionismo, como fenómeno literário, surge no interior do Realismo-Naturalismo, com as variações estéticas e culturais do fim do século. A par da reprodução impessoal, objetiva, exata" e minuciosa do real, própria do Realismo, surge a impressão instantânea que a realidade provoca no momento da sua captação.

- Demonstra que no poema "Contrariedades" se concretiza a afirmação acima transcrita.

 

Sugestão de resposta:

Princípios gerais do Realismo

Poema “Contrariedades”

Interesse pela realidade circundante:

Situação vivida pelas classes mais desprotegidas ("Ali defronte mora uma infeliz");

Situação da literatura da época (''Nas letras eu conheço um campo de manobras (...) a blague")

Captação do real de forma minuciosa

Relação entre a sua situação e a da engomadeira - denúncia do modo de vida da população trabalhadora em geral e da decadência da sociedade

Pormenor descritivo na transmissão do real

Modo pormenorizado como se descreve tanto a engomadeira quanto o ·sujeito poético e as circunstâncias em que se publica a literatura na época

 

“apreensão impressionista do real”

Poema “Contrariedades”

Representação da impressão que o real deixa naquele que o observa

"uma infeliz, sem peito": misturam-se perceções de tipos diferentes - psicológico e físico;

"pobre esqueleto branco": apreensão de um aspeto dominante (a magreza e a consequente palidez) que caracteriza o todo da personagem

Apreensão instantânea que a realidade provoca no momento da sua captação

4.ª estrofe: justaposição de rases curtas, referentes a diferentes aspetos da personagem – desperta nos outros ideias e sensações. Parece uma realidade fragmentada que, no entanto, acaba por compor um quadro completo. Trata-se da impressão que o ''fora" deixa no "dentro" do artista (Massaud Moisés).

Presença da cor, da luminosidade

"nevadas roupas": a cor antepõe-se ao objeto

 

É feia": juízo de valor estético, resultante da captação de uma realidade filtrada pela perceção daquele que a observa. Para além disso, vem trazer um cunho inovador à poesia: descreve uma personagem que nada tem de poético, conferindo ostensivamente à poesia o realismo que o poeta procurava ("A crítica segundo o método de Taine /Ignoram-na.").

 

IV – A poesia de Cesário distingue-se pela exatidão do vocabulário, pelas imagens extremamente visuais, ao ponto de se considerar este poeta um pintor, e ele próprio afirmar "pinto quadros por letras, por sinais".

Cesário mistura o físico e o moral, combina sensações, usa sinestesias, apresenta primeiro a sensação e só depois se refere ao objeto, emprega dois ou mais adjetivos a qualificar o mesmo nome.

Superiormente artista, Cesário introduz de vez em quando um frémito de emoção pelo uso da frase exclamativa [...]. A emoção reduz-se por vezes, no Cesário «realista», à sensação de surpresa, de prazer, de espanto, que o existente, apenas pelo facto de existir (paisagem física e humana da cidade ribeirinha), provoca no poeta

- Demonstra o que no poema "Contrariedades" se concretiza da afirmação acima transcrita.


Sugestão de resposta:

"mistura o físico e o moral"

"Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos"

"apresenta primeiro a sensação e só depois se refere ao objeto"

"nevadas roupas"

"emprega dois ou mais adjetivos a qualificar o mesmo nome"

"Pobre esqueleto branco"; "lançar originais e exatos os meus alexandrinos"

"uso da frase exclamativa"

"Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!"

"A emoção reduz-se (...) à sensação de prazer"

''Independente!"

"A emoção reduz-se (...) à sensação de espanto, de surpresa"

"Tão lívida!"; “Incrível!"; "Tanta depravação nos usos e nos costumes!"


Escola Secundária Domingos Rebelo, 2000

 

     Textos de apoio

A CRISE DUM OCIDENTAL

Estruturalmente, o “Livro” apresenta os poemas distribuídos em dois grandes grupos: “Crise Romanesca” (com seis poemas) e “Naturaes” (com dezasseis). A segunda série inicia-se com um poema que nos diz muito sobre a maneira como Cesário Verde entendia o seu ofício de artista, que ocupava a sua vida de forma tão verdadeira quanto o trabalho de “empregado no comércio”. Estamos nos referindo ao poema que, nO livro de Cesário Verde, recebe o nome de “Contrariedades”. Ele foi publicado pela primeira vez em 18 de março de 1876, no jornal O Porto, com o nome de “Nevroses”. Porém, antes de nele nos determos, precisamos recuar ao ano anterior, 1875, quando Cesário, em carta ao amigo Silva Pinto, fazia as seguintes declarações:

[...] Cá vou vivendo cheio de trabalho comercial. Estes últimos dias tenho tido algumas novidades.

Ontem à noite, quando saía da loja encontrei o Henrique das Neves que me disse isto:

“O Teófilo leu os seus versos e, falando a respeito do Guilherme de Azevedo, disse que este era talvez o único que no futuro poderá representar a poesia moderna, por ser quem trilha a verdadeira senda; tanto mais que se apresenta agora uma nova turba de rapazes que andavam mal.”

“E referindo-se à sua “Esplêndida” censurou que um homem, para captar as simpatias de uma mulher, desça ao lugar dos lacaios. Disse que um poeta amante e moderno devia ser trabalhador, forte e digno e não se devia rebaixar assim.” Dize francamente o que pensas disto. (VERDE, 2003, p. 201).

O tom geral dessa carta é de insegurança e de incertezas. De acordo com Joel Serrão, Cesário teria grande desilusão com os comentários de Teófilo a respeito de seus poemas. O poeta não entendia: “esperava aplausos dos revolucionários e, afinal, pedradas é que recebe” (SERRÃO apud VERDE, 2003, p. 201). As palavras de Teófilo Braga reproduzidas por Henrique das Neves antecipavam a ausência do nome de Cesário da antologia que ele organizaria como a mais representativa do estado da poesia em seu tempo, o Parnaso Português Moderno (1877). Essas palavras se dirigiam mais especificamente contra o poema “Esplêndida”, um dos três que Cesário havia publicado em 22 de março de 1874, no Diário de Notícias, sob o tema mais geral de “Fantasias do impossível”. Os outros dois são “Arrojos” e “Caprichos”, dos quais somente este último figuraria nO Livro de Cesário Verde, com o nome de “Responso” – sexto e último poema da primeira parte do livro e apenas o segundo, dentre os que nele constam, a já ter sido publicado pelo próprio Cesário (o primeiro fora “Cantos da tristeza”, cujo nome no livro é “Setentrional”).

Ainda na carta que abordávamos, é possível perceber que, além da opinião negativa de Teófilo, algo havia acontecido após a publicação das “Fantasias do impossível”. No parágrafo seguinte, Cesário considera absolver Gomes Leal de um mal-entendido ocorrido entre eles. Cesário teria pressionado o então editor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, para que publicasse os seus poemas antes da “Justiça” de Gomes Leal. Ainda nesse parágrafo, Cesário menciona que, após terem se reconciliado, Gomes Leal ter-lhe-ia dito que ele não havia agido bem “marcando um prazo para os [seus] versos serem publicados no Diário de Notícias e exigindo do Eduardo Coelho que eles saíssem primeiramente que a ‘Justiça dele (VERDE, 2003, p. 202). Toda essa insegurança de Cesário quanto aos resultados da publicação daqueles versos – e dos esforços para tal – fica ainda mais patente nestas suas palavras: “Não sei. Os meus estavam lá havia muito e os dele foram entregues então” (VERDE, 2003, p. 202).

No parágrafo seguinte, Cesário tenta amenizar a gravidade do que havia acontecido dando a entender que entre ele e Gomes Leal não houvera problema algum, senão um equívoco provocado por terceiros: “Diziam-lhe que eu dizia mal dele e diziam-me que ele dizia mal de mim. Agora creio que estamos bem” (VERDE, 2003, p. 2002). Mais adiante, as entrelinhas revelam a duplicidade de sua vida de poeta e de “empregado no comércio”: “Desculpa, meu Silva Pinto, estas minuciosidades que talvez te façam rir. Hoje é dia de santo e disponho de tempo” (VERDE, 2003, p. 203). Em seguida, Cesário menciona o contato que tivera com o “rapaz” que julgou “um pouco estouvado, mas de bom coração” – Cristóvão Aires, a quem Tomás Ribeiro lhe apresentara e de quem diz: “foi levar-me a casa uma poesia que me é dedicada e em que me aconselha a que siga a escola do Sentimento, ou antes a que escreva apenas o que sinto” (VERDE, 2003, p. 203).

Em resumo: três poemas publicados; um editor deixado em situação delicada; um poeta, de talento símile ao seu, desconsiderado numa atitude que, embora não estivesse de todo incorreta, pois, como Cesário mesmo dissera, os seus poemas já lá estavam antes do dele, fora suficiente para que ele recebesse um tratamento carregado de “frieza”; um presente capaz de afrontar qualquer artista ciente de seu valor e que tivesse a mínima dignidade – o tal conselho estético de Cristóvão Aires; e, por fim, no penúltimo parágrafo da carta, a desconsideração pública num espaço onde ele pretendia inserir-se, relacionar-se, evidenciar-se, obter reconhecimento: “Disseram-me que o Guimarães Fonseca leu no Martinho um folhetim em que me descompõe, e que bastantes rapazes tomaram a minha defesa e pediram que o retirasse. Creio porém que sairá, mas não sei quando” (VERDE, 2003, p. 203). O seu projeto de inserção no campo literário encontrava resistência por todos os lados, mesmo assim Cesário tentava mostrar-se indiferente às contrariedades que surgiam: “parece-me que não me incomodará” (VERDE, 2003, p. 203). Em outros tempos não tão distantes Cesário havia reagido de forma mais direta às ofensas de seus desafetos. O poema “Ele ─ ao Diário Ilustrado”, publicado em 1874, é uma prova de sua veia polêmica. Trata-se de virulenta resposta a um simples elogio feito pelo jornal monarquista que o poeta chamava de “o vómito real” (VERDE, 2003, p. 50) e ao qual ele não queria ver sua imagem associada. Mas, dessa vez, algo parece ter sustentado sua aparência elegante naquele momento.

Como já afirmamos, Cesário Verde começara publicando seus poemas no Diário de Notícias, de Lisboa, em 12 de novembro de 1873. Foram três poemas publicados de uma só vez: “A forca”, “Num tripúdio de corte rigoroso” e “Ó áridas Messalinas”. Dos dez poemas seguintes que publicaria (“Eu e Ela”, “Lúbrica...”, “Ele”, “Impossível”, “Lágrimas”, “Proh pudor!”, “Manias”, “Heroísmos”, “Cantos da tristeza”, e “Cinismos”), apenas “Ele” sairia em Lisboa, em folha solta, no ano de 1874. Todos os outros foram publicados no Diário da Tarde, do Porto, entre três de dezembro de 1873 e doze de março de 1874. Esse jornal era dirigido por Manuel Arriaga, amigo de Silva Pinto.

Cesário somente voltaria a publicar num jornal lisboeta em 22 de março de 1874. Os poemas são justamente os três que compõem as “Fantasias do Impossível”. Após isso, até o fim da curta vida, ele publicaria somente mais vinte poemas (“Vaidosa”, “Flores venenosas: I – Cabelos”, “Melodias Vulgares”, “Cadências tristes”, “Deslumbramentos”, “Humorismos de amor”, “Ironias do desgosto”, “Desastre”, “Nevroses”, “A débil”, “Num bairro moderno”, “Merina”, “Sardenta”, “Cristalizações”, “Noitada”, “Num álbum”, “Em petiz”, “Manhãs brumosas (versos de um inglês)”, “O Sentimento dum ocidental” e “Nós”), saídos em Lisboa, Porto e Coimbra. Dos poemas publicados em Lisboa, apenas dois sairiam no Diário de Notícias: “Num bairro moderno” (1878) e “Em petiz” (1879).

Em 18 de março de 1876 – portanto, quase dois anos após os resultados negativos da publicação das “Fantasias do impossível” –, Cesário publicava nO Porto o poema “Nevroses”, que, nO Livro de Cesário Verde, aparece com o título de Contrariedades. Antes de dimensionarmos a importância desses dados que estão sendo apresentados, vejamos um trecho da obra Pela vida fora, de Silva Pinto:

Houve então na minha vida um período que foi a minha Idade Média – em trevas e incubações de coisas. Passei de um Jornal da Tarde a um Porto, daí a uma Gazeta do Porto, depois a um Diário Português, jornais pobríssimos, efémeros, onde eu despendi seiva para uma nova Enciclopédia. Alternavam as polícias correcionais com os conflitos pessoais... Foi esse o período iluminado e aquecido pelas cartas de Cesário Verde, e mal suspeitava o meu grande amigo as torturas reais – do isolamento, da miséria, e de toda a espécie de traições – que me entenebreciam a vida (PINTO, [s.d], p. 51).

Essas cartas que Cesário que Silva Pinto menciona expressam, de forma muito subtil, uma angustiante expectativa: a busca ansiosa por um caminho a seguir, a sua tentativa de se colocar como escritor e de se definir em relação às representações e aos comportamentos associados a essa condição em seu tempo – sem, no entanto, haver, de sua parte, qualquer movimento no sentido de ajustar-se às regras específicas do campo literário no qual pretendia se inserir. Nessa busca, tanto o positivismo de Teófilo Braga como o de Littré lhe pareceram

vias possíveis, como se constata neste trecho da já citada carta de 1877:

Aquele artigo do Teófilo sobre Camilo que fala em disciplina mental faz-me pensar no que eu devo seguir; agora há uns poucos de dias que não leio. Estou à espera que saia a última edição do dicionário de medicina do Littré para estudar. Que te parece? Achas extravagante? (VERDE, 2003, p. 210).

A “Idade Média” pela qual Silva Pinto diz ter passado corresponde, justamente, a um período também obscuro para os projetos literários do próprio Cesário. Mas, conhecendo a fase atravessada pelo amigo, sua sensibilidade não lhe permitiria revelar diretamente todo o seu drama de homem-poeta, embora isso aparecesse algumas vezes em declarações que parecem surgir de assalto, como quando afirma, numa carta de 1875: “Não te digo mais nada porque vejo que estás numa situação em que não se ouve com sossego os que parecem muito sossegados da sua vida, como a ti te parecerá que eu estou” (VERDE, 2003 p. 206). Ou ainda, em carta já de 1877: “Que queres, se não me sinto bem em parte nenhuma e ando cheio de ansiedades de coisas que não posso nem sei realizar” (VERDE, 2003, p. 210). Naquele momento, a decadência no nível dos veículos de divulgação das obras era comum a ambos. Também Cesário publicaria nO Porto. E na última vez em que uma obra sua é publicada nesse jornal ele reafirma o que já havia anunciado em 1873: que tinha uma obra pronta, à espera de editores. Chegamos, então, ao momento a que visávamos desde o início deste artigo, a publicação, em 18 de março de 1876, do poema “Nevroses”. Vejamos o poema […].

“Nevroses” é o desabafo de um poeta que teve seus versos rejeitados por um jornal. Mas esse não é um caso isolado em sua vida autoral. Na sexta estrofe, o eu lírico afirma que “mais duma redação, das que elogiam tudo”, lhe têm “fechado a porta”. E todo o poema é condicionado pela “cólera” desse sujeito que diz se estimular com os obstáculos, tornar-se perverso com eles, pois tudo o que nos dá a conhecer é modulado por suas “raivas frias”, até mesmo os recortes através dos quais nos mostra aspetos da rotina de sua vizinha, “uma infeliz” que “sofre de faltas de ar” por ter “os dois pulmões doentes” e que, apesar de engomar para fora, “deve a conta à botica” e “mal ganha para sopas...”.

A tensão do poema é regulada pela duração e pela intensidade da cólera desse sujeito que usa o quadro da tísica como espécie de válvula de ajuste para manter a sua própria tensão a um nível compatível com a criação poética. Só aparentemente os comentários tecidos por ele acerca de sua vizinha constituem uma interrupção ao tom de desabafo que caracteriza o poema. Apesar da compaixão que ele expressa ao se referir à engomadeira (“uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes”, “pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas”), a sua impassibilidade ao perscrutar-lhe a vida tão adversa e a ironia com que revela a alienação dela diante de um tal estado de coisas desvelam, a princípio, certo comprazimento com o mal que parece exercer uma função complementar e compensatória ao seu desabafo.

Mas é preciso dizer que tudo isso não impede que o poema “Nevroses” também esteja a serviço de uma poderosa denúncia social. O alvo dessa denúncia é mesmo a situação de alienação e de desamparo das camadas populares: “o populacho” que se diverte “na lama”. Essa expressão, de tom satânico, diz muito sobre o temperamento do sujeito no início do poema, que é responsável pela impassibilidade com que ele contempla o “pobre esqueleto branco”, a vizinha tísica que mora defronte, em sua vida tão precária. Porém, à medida que sua cólera inicial vai se dissipando, o sujeito se aprofunda com mais humanidade naquele quadro deprimente em que uma vida se “esvai”: “nem pão no armário, ó Deus!” – e, todavia, A crise dum ocidental ele a ouve, em sua alienação, “cantarolar uma canção plangente/Duma opereta nova!”. Ao

findar, já “sem azedume” (passou-lhe a cólera), esse sujeito faz-se uma desconcertante indagação: “A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?”. E o poema termina com esta melancólica conclusão: Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia.../Que vida! Coitadinha!”.

Esse é apenas o segundo poema em que Cesário aborda a questão social de forma mais evidente. Isso já havia acontecido em “Desastre” (1875). Mas em “Nevroses” há algo novo. A crítica social não é exercida com paternalismo, nem de forma inequívoca. O sujeito poético é contraditório ao segundo grau. A ambiguidade do seu posicionamento ante a realidade social que o cerca dá a entender que ele a percebia como uma situação complexa – o que, de certa forma, contrasta com a sua recusa a uma adequação ao campo literário e com o seu ideal de fazer arte “independente”, mesmo que seja apenas para destruí-la. Por isso, o campo literário que ignora “a crítica segundo o método de Taine” é o seu alvo principal. O sujeito acusa a “Imprensa” de pautar-se pelo compadrio, pelo elogio mútuo e pela convenção. Para ele, tudo isso valia “um desdém solene”. E como é “independente” e tem “sentimentos finos”, em vez de adular os literatos, apura-se “em lançar originais e exatos” os seus alexandrinos. Por isso negam-lhe “as colunas”; porque “não lhes convém” “publicar tais coisas, tais autores”, ou seja, “arte”; porque “receiam que o assinante ingênuo os abandone”. Num tal campo literário, em que a relação entre a literatura e o dinheiro está desorientada em termos de valor, é um romancista medíocre como o francês Pierre Zaccone, muito famoso e traduzido em Portugal no início da segunda metade do século XIX, quem “obtém dinheiro” e “arranja sua coterie”.

Em O contexto da obra literária, Dominique Mangueneau afirma que, da mesma forma que a literatura não pode “se confundir com a sociedade „comum, a sua existência social” exige-lhe que não se feche sobre si, ao mesmo tempo em que lhe impõe “a necessidade de jogar com e nesse meio-termo” (MANGUENEAU, 2001, p. 28). Esse autor utiliza o conceito de “paratopia” para se referir à pertinência de uma obra ao campo literário. Esse conceito é definido por ele como “resultante de “uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar” (MANGUENEAU, 2001, p. 28).

O sujeito poético de “Nevroses” recusa-se a negociar com o campo literário e parece movido pela ideia da possibilidade de uma “criação verdadeira”, composta de “enunciados ouro, contra a multidão inumerável dos enunciados aos quais a sociedade proporciona um valor ilusório” (MAGUENEAU, 2001, p. 40-1). O problema é que quando não dá certo “a obra não passa de um amontoado de signos ainda mais inúteis do que os que ela recusa” (MANGUENEAU, 2001, p. 41).

Mas é preciso dizer que mesmo o idealismo desse sujeito que se nega a adequar-se às regras do campo literário não está livre de contradições. Ele se coloca à margem das regras que podem levá-lo, simultaneamente, à riqueza e à mediocridade, mas almeja a riqueza como premiação por seu talento, por denunciar a mediocridade e as injustiças da mesma sociedade de quem espera o reconhecimento. Cesário, poeta e comerciante, ao tentar se definir em relação às representações e aos comportamentos associados à condição de escritor no seu tempo, recusou-se a negociar com as exigências do campo literário e sentiu na pele os efeitos dessa atitude radical.

Em “Nevroses”, ele afirma que nas letras conhecia bem um campo de manobras, mas, em seu breve percurso artístico e biográfico, apesar de ter utilizado algumas dessas manobras, Cesário Verde não o fizera sem constrangimentos, como se o lançar mão de tais meios fosse uma espécie de ultraje ao talento que ele sabia possuir. O problema é que quem não quer jogar com as regras do campo literário é obrigado a jogar com o acaso, enfrentar contrariedades capazes de esmagar. Em 29 de junho de 1884, Cesário escrevia carta a Mariano Pina, diretor da revista A Ilustração, de Paris, fazendo, pela última vez e com uma honestidade emocionante, o uso das tais manobras que em “Nevroses” ele dizia conhecer bem. Vejamos a carta na íntegra:

A sua «Ilustração» impressa nesse tumultuoso Paris, em grande formato, composta por tipógrafos franceses que devem achar muito drôle a abundância do til e a falta do acento grave, anunciada com reclames estonteantes e um tapage ensurdecedor nesta pacífica Lisboa tão morna e tão dorminhoca, a sua «Ilustração», duma tiragem muitíssimo respeitável, fez-me nascer o desejo de lhe oferecer a Você a minha colaboração. Conquanto V. não me enviasse o seu cartão de convite, o meu ideal de luxo e a minha pretensão de ver os meus versos numa elegante toilette parisiense, instigara-me a recomendar-lhe um pequeno poema que fiz com todo o esmero de que sou capaz, e cujas provas eu quereria ver pessoalmente, no caso de ser publicado. Compõe-se de heroicos e alexandrinos numas 130 quadras que no tipo miúdo (como é mais distinto e mais discreto para a poesia) encherão essas colunas de Hércules durante pouco mais de 2 páginas.

Mas a direção literária ou administrativa duma publicação como a sua tem dificuldades. Você tem de consultar os grossos apetites dos seus leitores e os fastios nevrálgicos das suas leitoras, e realmente eu não sei se o deva

embaraçar com esta exigência.

Em todo o caso sempre lhe direi que é um trabalho réussi, correto, honesto e dum sentimento simples e bom. Chama-se «Nós», e é talvez a minha produção última, final. Trato de mim, dos meus, descrevo as propriedades no campo em que nos criámos, a fartura da vida de província, as alegrias do labor de todos os dias, as mortes que tem havido na nossa família, e enfim os contratempos da existência. Para animar tudo isso, para dar a tudo isso a vibração vital eu empreguei todo o colorido, todo o pitoresco, todo o amor que senti, que me foi possível acumular.

Ora como esta obra começa com a descrição da Febre Amarela e do Cólera-Mórbus quando nós fugimos em crianças, lá para fora, e depois continua com descrições do nosso verão adusto e forte; e como nós agora estamos com a ameaça da epidemia e julho e agosto vão começar, eu pretendia que estas coincidências convergissem; publicando imediatamente.

É uma paixão pela arte que me faz pensar assim, não julgue V. crueldade. A famosa ciência de Pasteur e dos outros há de atalhar o mal, e o pavor será a maior dor que se sentirá. Outra coisa: Sabe V. que tenho saudades desse aborrecido mês que vivi em Paris tão contrariado e esmagado, e que hoje fiz volte-face e agora, digo constantemente bem dessa França, desses Franceses e dessas Francesas, como um doido ou um apaixonado?

Bem. Escreva-me Você sem demora com a sua decisão.

Seu confrade amigo e obrigado (VERDE, 2003, p. 237-8).

Essa carta retoma alguns pontos importantes do poema “Nevroses”. De início, em vez do “desdém solene” que o sujeito desse poema diz relegar à imprensa, Cesário afirma ser seu “ideal de luxo”, sua “pretensão”, ver os seus “inéditos” “heroicos” e “alexandrinos” estampados “durante pouco mais de 2 páginas” daquela revista de “tiragem muitíssimo respeitável”. Em sua modesta retórica, Cesário reconhece que fazia um pedido embaraçoso a Mariano Pina, que sequer lhe havia enviado o “seu cartão de convite” e que, decerto, haveria de “consultar os grossos apetites dos seus leitores e os fastios nevrálgicos de suas leitoras”. Mas ele equilibra essa concessão ressaltando o caráter excecional de sua “epopeia morta”, que é uma epopeia sobre os seus mortos, como sua “produção última, final”. Ao contrário do editor que rejeita o “folhetim de versos” do sujeito de “Nevroses”, Pina não faz caso do “assinante ingênuo”, que poderia abandonar sua “Ilustração” por “publicar tais coisas, tais autores”, e o poema “Nós” sai em cinco de setembro de 1884, na revista parisiense.

O facto de Cesário ter pretendido sincronizar a publicação de “Nós” com eventos reais que lhe dramatizariam a leitura faz-nos pensar que a proximidade da publicação de “Nevroses” com a série de incidentes que vinham se sucedendo em sua vida desde as “Fantasias do impossível” tenha tido alguma relação com tais acontecimentos. É que na poética de Cesário a relação entre os elementos biográficos e a criação resultante da despersonalização é ao mesmo tempo muito tênue e complexa. Centrando-nos apenas no caráter enunciativo do eu lírico desses dos poemas, verificamos que enquanto em “Nevroses” as contrariedades enfrentadas pelo sujeito em sua relação com o campo literário levam-no a destruir os seus versos, ou a enterrá-los “no fundo da gaveta”, em “Nós” a constatação da ausência de sentido da existência faz com que o sujeito acabe por negar o valor da própria literatura:

De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo

Com tanta crueldade e tantas injustiças,

Se inda trabalho é como os presos no degredo,

Com planos de vingança e ideias insubmissas.

 

E agora, de tal modo a minha vida é dura,

Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,

Que sinto só desdém pela literatura,

E até desprezo e esqueço os meus amados versos!

(VERDE, 2003, p. 184).

Voltando à biografia, após a saída de “Nós” nA Ilustração Cesário realmente nunca mais publicaria outro poema. E até onde se sabe, este foi o último a ser concluído. Como vimos na carta a Mariano Pina, Cesário refere-se a essa composição como sua “produção última, final”. NO Livro de Cesário Verde, há um poema incompleto, “Provincianas”, que Silva Pinto identifica como tendo sido iniciado após a conclusão de “Nós”. De qualquer forma, o que o poeta registra na carta sobre o caráter derradeiro desse poema e a ausência de publicação posterior são factos que nos permitem ver mesmo nele uma espécie de despedida.

Em “Nevroses” o sujeito poeta tem como algoz a sociedade, que lhe rejeita os versos; e em “Nós” é a vida mesma, em seu caráter problemático, que não merece o seu labor. Mas o poeta Cesário já havia assumido a própria responsabilidade pela impossibilidade do verso, do livro ideal. Em “O sentimento dum ocidental” (1880), meditando um livro que exacerbasse, o sujeito queixa-se por “não poder pintar” a realidade com “versos magistrais, salubres e sinceros”, desejando, porém, eternamente buscar e conseguir “a perfeição das coisas”. Seja como for, Cesário morreria em 1886 e, como Mallarmé, também não publicaria o seu prometido “Livro”.

 

Silvio Alves, “A crise dum ocidental: Cesário Verde e a impossibilidade do livro”, Estudos Linguísticos e Literários, n.º 51(1/2015) – ISSN: 2176-4794

 

***

 

CESÁRIO VERDE, A DOENÇA E A MEDICINA

Ao analisar a sua curta obra (46 poemas) e a epistolografia conhecida (32 cartas ou fragmentos) são numerosos os momentos em que se podem encontrar elementos em que a experiência de doença é claramente pessoal e decisiva na sua visão como artista. Permitem, além disso, entrever uma relação em geral pouco amistosa/ desconfiada em relação às possibilidades da Medicina. […]

No poema “Contrariedades”, Cesário, exasperado com a critica literária, contrapõe a esta a imagem de uma vizinha tuberculosa. Segundo Helena Buescu, o diálogo é entre um “eu” que “sentado à secretaria”, enfrenta a imagem da morte que “ali defronte mora” na figura da “infeliz sem peito, os dois pulmões doentes”.3 Esta imagem, que lhe é familiar, permite-lhe relativizar a má receção da imprensa. Sabendo que a sua amada irmã morrera desta mesma situação, não é difícil imaginar que Cesário vê como sua a imagem da tísica aceitando pacientemente o destino. Apenas o mitiga, bem sabe, e talvez em “outros climas” conseguirá ler “impressas em volume” as suas rimas. No limite, a sua própria persona, entregue a um trabalho rotineiro e sem grande esperança. Estigmatizado pelas suas opções literárias, tal como é o estigma da tuberculose na imagem da janela em frente. Muito pior será a doença e a morte, que viveu com a sua irmã e o ameaça a si próprio. A morte e a doença que acompanharão a sua escrita solitária, afastada dos campos de manobras das letras e das luzes.

Esta ameaça tornar-se-á real em 1886. Numa tentativa desesperada, muda a residência para Caneças. De lá escreve a seguinte carta ao Conde de Monsaraz:

“Mas olha, sério, em volta de mim, pessoas, coisas, tudo anda amolentado, cansado. As melhoras, as próprias melhoras que os medicamentos chamam e espicaçam com o aguilhão da sua química, e que eu estimulo com a aguilhada da minha vontade, essas mesmas vão ronceiras, moles, a passo de boi, muito devagar, muito devagar. Mal as vejo mexerem-se na longa estrada do tempo. De modo que apenas a grandes intervalos te posso noticiar, meu amigo, um avanço, um adiantamento.

(...) Mas subitamente chegam-me dúvidas, descrenças, terrores do futuro. Curo-me? Sim, talvez. Mas como fico eu? Um cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me o vento, entra-me a chuva no corpo escangalhado.”1

Esta carta mostra alguém ainda esperançado, embora com dúvidas de uma recuperação completa. Mas como, se Cesário já vira o que vira?

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!

Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!

E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,

Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!

Não sei d`um infortúnio imenso como o seu!

Viu o seu fim chegar como um medonho muro.

E sem querer, aflito e atónito, morreu!1

Em Nós, de 1884, a descrição da doença e morte do seu irmão Joaquim Tomás, mostra-nos ser bem real a noção do “medonho muro” que o esperava. E o que dizer acerca do efeito provocado nos familiares, certamente tão desesperados como ele próprio com a sucessão de doença e morte na família. A propósito de Maria Júlia, descreve:

Era essa tísica em terceiro grau,

Que nos enchia a todos de cuidado,

Te curvava e te dava um ar alado

Como quem vai voar d`um mundo mau.

Era a desolação que inda nos mina

(Porque o fastio é bem pior que a fome)

Que a meu pai deu a curva que o consome,

E a minha mãe cabelos de platina!1

Após a morte do irmão afirma que sucessão de infortúnios motivados pela doença distanciam-no em relação com a sua amada poesia:

E agora, de tal modo a minha vida é dura,

Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,

Que sinto só desdém pela literatura,

E até desprezo e esqueço os meus amados versos!1

Após a morte de Cesário, Mariano Pina lembrou a sua viagem de negócios a Paris em 1883:

“Ainda me lembro da sua vinda a Paris para tratar de negócios. Ele bem me queria convencer que o poeta tinha morrido e que hoje só pensava numa vida laboriosa e ativa de negociante conhecendo a fundo a sua especialidade, sabendo como qualquer fabricante onde se fabricava o melhor ferro, onde se vendiam as melhores ferramentas, as limas e as plainas do mais puro aço (..) Mas o artista traía-o a cada passo.”1

De facto, as suas afirmações não o impediram de publicar “Nós” em 1884. A traduzir, de forma cada vez mais afastada das normas literárias da sua época uma visão poética da realidade; na qual a dualidade da doença/saudáveis se encontra sempre presente:

Não desejamos – nós os sem defeitos,

Que os tísicos pereçam! Má teoria,

Se pelos meus o apuro principia,

Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretensão

De ter saúde, a mim que adoro a pompa

Das forças, pode ser que se me rompa

Uma artéria e me mine uma lesão!

 

Ler mais: “Cesário Verde, a Doença e a Medicina”, Francisco Rosário. Medicina Interna - Revistada Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, vol.28 | n.º2 | abr/jun 2021. DOI:10.24950/PV/F.Rosario/2/2021

 

REFERÊNCIAS

1. Serrão J. Obra Completa de Cesário Verde. Lisboa: Livros Horizonte; 1992

3. Buescu HC. “Introdução à obra de Cesário Verde”. In: Carlos Reis, coordenadores. Cânticos do Realismo – O Livro de Cesário Verde. Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda; 2015.

 


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“Contrariedades, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-30. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/contrariedades-cesario-verde.html



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