A estética antirromântica vista através da imagem da mulher. A ironia.
CONTRARIEDADES1
I |
|
Eu
hoje estou cruel, frenético, exigente; |
Cesário Verde
Porto, O Porto,
18 de março de 1876
Vocabulário e notas sobre
a edição do texto:
1
Título primitivo do poema: “Nevroses”.
2
Na primitiva publicação: E agrado a pouca gente.
3
Botica: farmácia.
Na
sua edição de O Livro de Cesário Verde, Cabral do Nascimento, por motivos
de metrificação, propôs se emende E deve a conta à botica!, que é o
verso publicado no Livro, para E deve a conta na botica! Adotou-se
esta versão.
4
Na primitiva publicação: Mal ganha para as sopas...
5
O obstáculo ou depura ou torna-nos perversos;
6 O método crítico de Taine pode ser
definido como “a aplicação da análise ao real com o propósito implícito de
exacerbar a sua compreensão critica".
- Para Taine, a obra de
arte tem por fim manifestar qualquer carácter essencial ou notável, e portanto
uma ideia importante, mais claramente e mais completamente do que o fazem os
objetos reais. Consegue-o empregando um conjunto de partes ligadas de que modifica
sistematicamente as relações. Nas três artes de imitação - escultura, pintura e
poesia -, estes conjuntos correspondem a objetos reais. (H. Taine, Philosophie
de l'Art, I, 41-42).
O meu único dever é
expor-vos os factos e mostrar-vos como esses factos são produzidos. O método
moderno que eu procuro seguir, e que começa a introduzir-se em todas as
ciências morais, consiste em considerar as obras humanas, e especialmente as obras
de arte, como factos e produtos de que é preciso notar as características e
procurar as causas; mais nada.·Entendida assim, a ciência não proscreve nem
perdoa: constata e explica. (Ibid., I, 12).
- Não há mais do que
movimentos presentes, futuros, ou possíveis, ligados a certas condições,
variáveis em grandeza e em direção segundo uma certa lei, e definidos em
relação a certos pontos. Assim, no mundo físico como no mundo moral, não sobra
nada do que habitualmente se entende como substância e força; tudo o que
subsiste são os acontecimentos, as suas condições e as suas dependências, uns morais
ou concebidos em termos de sensação, outros físicos ou concebidos em termos de
movimento. A noção do facto ou acontecimento corresponde somente às coisas
reais. (De l’Intelligence, I, 349).
E mais adiante: Se
abrangermos de um só olhar a natureza e se expulsarmos da nossa mente todos os
fantasmas que metemos entre a natureza e o pensamento, não veremos no mundo
nada mais do que séries simultâneas de acontecimentos sucessivos, cada
acontecimento sendo a condição de um outro e tendo um outro como condição, (p.
350).
Nada fica de nós além dos
nossos acontecimentos, sensações, imagens, memórias, ideias, resoluções: são
eles que constituem o nosso ser; e a análise dos nossos julgamentos mais
elementares efetivamente demonstra que o nosso eu não tem outros elementos. (Ibid,
p. 343). E ainda: Os nossos acontecimentos sucessivos são portanto os
componentes sucessivos do nosso eu. (lbid., p. 343). (...)
- Não há nada de real no eu além da sucessão dos seus acontecimentos. (lbid., p. 7). (Apud Nós, uma leitura de Cesário Verde, Helder Macedo. Lisboa: Presença, 1989.)
7
Epigrama: breve composição poética, com um remate de conteúdo irónico ou satírico.
8
Na primitiva publicação: Deu meia-noite, e em paz, pela calçada abaixo
9
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
O
verso da edição de Silva Pinto é o seguinte: Um sol-e-dó. Chuvisca. O
populacho
10
Eu nunca dediquei composições nenhumas,
11
Deferência: consideração, respeito.
12
Senão, por deferência, a amigos ou a artistas.
13
Pierre Zaccone (1817-1898), romancista popular francês, autor de novelas,
romances e folhetins histórico-dramáticos.
14
Um prosador, aqui, desfruta fama honrosa,
15
Coterie: grupo de indivíduos que defende conjuntamente os seus interesses;
(depreciativo) grupo de fãs, círculo, "capelinha".
16
Alexandrino: diz-se do verso de doze sílabas, geralmente acentuado na sexta.
17
Tuberculosa.
18
Na primitiva publicação: Nem pão no armário, ó Deus! chama por ela a cova.
19
Réclame: publicidade.
20
Blague: peta, patranha; mentira; relato inventado para provocar ou fazer
rir.
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
Leitura orientada do poema “Contrariedades”, de Cesário Verde
O poema
coloca-nos perante dois seres em situação de «contrariedade»: um poeta mal
recebido pela crítica e uma engomadeira, sua vizinha, em situação de doença,
que precisa de ganhar a vida através de um trabalho que lhe é prejudicial e
particularmente penoso. Ambos se assemelham: ambos curvados, - ele sobre a
mesa, ela sobre a tábua de engomar; ambos doentes, -ele com dor de cabeça, ela
tísica; - ele, «abafando desesperos mudos»,
ela, «sofrendo de faltas de ar». A
diferença entre os dois é que ele está contrariado, indisposto contra os
críticos, - e ela, apesar de objetivamente em pior situação, canta. E este
canto vai ter repercussão positiva no poeta, pondo-o melhor, dando-lhe saúde.
Ao longo do poema são de notar a ironia, a autoironia e o sarcasmo, o
vocabulário corrente, «prosaico», a imagística surrealizante já referida mais
atrás e presente na 2.ªestrofe.
http://www.navedapalavra.com.br/resenhas/cesarioverde.htm
(consulta: 2002-12-18)
***
Proposta de quatro trabalhos de grupo:
I
- Neste poema há um
paralelismo entre duas situações aí apresentadas: a do sujeito poético e a da
engomadeira, havendo, por isso, um movimento do poema entre as duas
personagens.
Através de um esquema:
-
Explicita este movimento;
-
Clarifica a situação de cada uma das personagens.
Sugestão
de resposta:
Quadras |
|
1-2 |
situação do poeta |
3-4 |
situação
da engomadeira |
5-9 |
Comentário do poeta sobre a sua posição
perante a vida na cidade |
10-12 |
reflexão
amarga sobre a sua poesia e sobre a estratégia necessária para obter sucesso
no mundo literário |
13-14 |
situação da engomadeira |
15-16 |
situação
do poeta |
17 |
situação do poeta e da engomadeira -
síntese do poema |
Nota-se um paralelismo entre a
situação do poeta e a situação da engomadeira:
Situação do Poeta |
Paralelismo |
Situação da Engomadeira |
Injustiça estética Injustiça social |
Trabalha curvado sobre a secretária |
"Sentei-me à secretária" |
Trabalha
curvada sobre a tábua de engomar |
"E engoma para fora" |
Fuma
excessivamente |
"Já fumei três maços de
cigarros /Consecutivamente” |
Engoma
incessantemente (fumo asfixiante) |
“Lidando sempre";
"Fechada e com o ferro aceso!" |
Tem
a cabeça a doer (fumo dos cigarros) |
"Dói-me a cabeça" |
Tem
os pulmões doentes (ar viciado pelo fumo). |
"os dois pulmões
doentes"; "Ignora que a asfixia a combustão das brasas" |
Vê
rejeitada a publicação dos seus versos. |
“um jornal me rejeitar (…) um
folhetim de versos" |
Foi
abandonada pelo médico. |
"O doutor deixou-a" |
Sufoca
por causa da decadência da sociedade. |
“abafo uns desesperos
mudos" |
Sufoca
devido à precaridade das condições em que vive. |
"Sofre de faltas de
ar" |
Dois mundos paralelos e justapostos
II - Neste poema, privilegia-se, no sujeito
poético, o retrato psicológico e na engomadeira, o retrato físico, devido às
particularidades da situação vivida pelas personagens.
- Faz o
retrato de cada uma delas.
- Clarifica
a crítica que aí é feita à sociedade contemporânea de Cesário.
Sugestão de resposta:
O sujeito poético
começa por revelar o seu estado emocional ("eu hoje estou cruel,
frenético, exigente") exemplificando, por ordem inversa, cada um desses sentimentos.
Assim, há correlação entre estar cruel e a afirmação de que ama "insensatamente,
os ácidos, os "gumes e os ângulos agudos", vocábulos que se integram no
campo semântico de crueldade; ligação semelhante acontece entre estar frenético
e fumar "três maços de cigarros consecutivamente"; também encontramos
correspondência entre estar exigente e não poder "tolerar os livros mais
bizarros".
Nestas
duas primeiras quadras, o seu estado psicológico é também retratado através da
justaposição de sintomas físicos ("Dói-me a cabeça"), atitudes
psicológicas ("Abafo uns desesperos mudos") e comentários
moralizantes ("Tanta depravação nos usos, nos costumes!"). Tudo isto
culmina num estado de espírito bastante disfórico ("Agora sinto-me eu
cheio de raivas frias"; "de mau humor"), e é resultado das características
que o sujeito poético observa numa sociedade, cuja realidade é captada de forma
objetiva e profunda. Deste modo, aponta, como causas para a sua situação emocional,
a depravação nos usos e nos costumes e as injustiças da vida em sociedade: a
doença que destrói a vizinha e o abandono a que ela é votada, a exploração do
trabalho de engomadeira, a recusa da publicação dos seus versos por um jornal.
Apesar
de, no fim do poema, apresentar uma alteração no seu estado de espírito, já que
diz sentir-se melhor ("E estou melhor; passou-me a cólera"), talvez
por ter dado vazão à sua raiva, não deixa de denunciar e acusar a sociedade
pelo que ela tem de injusto e pouco solidário.
Na engomadeira,
a visão do sujeito poético incide sobre características físicas que denunciam a
precaridade da situação em que ela vive. Assim, faz-se ressaltar a sua magreza
("sem peito"), a cor branca do seu rosto, lívida mesmo, e a sua
condição tisica degradante ("Pobre esqueleto branco"), resultado da
doença que a consome ("os dois pulmões doentes; / Sofre de faltas de
ar"). Estas características chocam com a função social que a personagem
desempenha ("E engoma para fora"), já que ela exerce uma profissão,
é, portanto, útil a uma sociedade que a ignora, a despreza ("O doutor
deixou-a") e a explora, de forma desumana ("Lidando sempre. E deve a
conta na botica! / Mal ganha para sopas... ").
A
traços largos, delineia-se o retrato social de uma classe trabalhadora
oprimida, desenhando-se a verdade nua e crua ("Uma infeliz";
"Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia..."), segundo o efeito
que provoca naquele que a observa Assim, a sua infelicidade, primeira
característica observada, abre o retrato desta mulher e cobre tanto a sua
existência física, quanto a familiar ("morreram-lhe os parentes") e a
profissional (3.ª quadra).
A
fechar a sua caracterização há a referência a um aspeto desconcertante: "É
feia...". Esta constatação vem completar o retrato da vizinha, no que diz
respeito à sua infelicidade. Para além de abranger todos os pontos já vistos,
trata-se de uma infelicidade irremediável. Significa isto que, contrariamente
às possibilidades do sujeito poético, o qual poderia triunfar comercialmente,
comprometendo os seus critérios de valor artístico, a engomadeira não tem
qualquer hipótese de triunfo. Vítima da estrutura social, condenada à
existência miserável da população trabalhadora da cidade, a sociedade já a
colocou no último patamar da humilhação.
Critica-se
a opressão social da cidade e denuncia-se as circunstâncias sociais injustas, numa
sociedade desumana, insensível, decadente, depravada O sujeito poético insurge-se
contra a desumanidade e a ignorância que oprimem e marginalizam os mais fracos.
III – Filiar Cesário numa qualquer escola literária é, talvez,
demasiado arriscado. Parece, todavia, evidente a sua aproximação a várias
estéticas surgidas no século em que viveu.
Assim,
se se tiver em conta o interesse que manifesta pela realidade que o circunda, a
forma minuciosa como a capta e a objetividade e o pormenor descritivo com que
transmite o real, é fácil detetar aqui os princípios gerais do Realismo.
Mas mais do que reproduzir o real
objetivo, Cesário procura representar a impressão que o real deixa em si
próprio. Daí poder-se afirmar que há um desvio do Realismo a favor de uma
"apreensão impressionista do real".
Note-se que o Impressionismo, como
fenómeno literário, surge no interior do Realismo-Naturalismo, com as variações
estéticas e culturais do fim do século. A par da reprodução impessoal, objetiva,
exata" e minuciosa do real, própria do Realismo, surge a impressão
instantânea que a realidade provoca no momento da sua captação.
- Demonstra
que no poema "Contrariedades" se concretiza a afirmação acima
transcrita.
Sugestão de resposta:
Princípios gerais do Realismo |
Poema “Contrariedades” |
Interesse pela realidade circundante: |
Situação vivida pelas classes mais
desprotegidas ("Ali defronte mora uma infeliz"); Situação da literatura da época (''Nas
letras eu conheço um campo de manobras (...) a blague") |
Captação
do real de forma minuciosa |
Relação entre a
sua situação e a da engomadeira - denúncia do modo de vida da população trabalhadora
em geral e da decadência da sociedade |
Pormenor descritivo na transmissão do
real |
Modo pormenorizado como se descreve
tanto a engomadeira quanto o ·sujeito poético e as circunstâncias em que se
publica a literatura na época |
“apreensão impressionista do real” |
Poema “Contrariedades” |
Representação da impressão que o real
deixa naquele que o observa |
"uma infeliz, sem peito":
misturam-se perceções de tipos diferentes - psicológico e físico; "pobre esqueleto branco":
apreensão de um aspeto dominante (a magreza e a consequente palidez) que
caracteriza o todo da personagem |
Apreensão
instantânea que a realidade provoca no momento da sua captação |
4.ª estrofe:
justaposição de rases curtas, referentes a diferentes aspetos da personagem –
desperta nos outros ideias e sensações. Parece uma realidade fragmentada que,
no entanto, acaba por compor um quadro completo. Trata-se da impressão que o
''fora" deixa no "dentro" do artista (Massaud Moisés). |
Presença da cor, da luminosidade |
"nevadas roupas": a cor
antepõe-se ao objeto |
“É feia":
juízo de valor estético, resultante da captação de uma realidade filtrada
pela perceção daquele que a observa. Para além disso, vem trazer um cunho
inovador à poesia: descreve uma
personagem que nada
tem de poético, conferindo ostensivamente à
poesia o realismo que o poeta procurava ("A crítica segundo o método de
Taine /Ignoram-na."). |
IV
– A poesia de Cesário distingue-se
pela exatidão do vocabulário, pelas imagens extremamente visuais, ao ponto de
se considerar este poeta um pintor, e ele próprio afirmar "pinto quadros
por letras, por sinais".
Cesário
mistura o físico e o moral, combina sensações, usa sinestesias, apresenta primeiro
a sensação e só depois se refere ao objeto, emprega dois ou mais adjetivos a qualificar
o mesmo nome.
Superiormente
artista, Cesário introduz de vez em quando um frémito de emoção pelo uso da
frase exclamativa [...]. A emoção reduz-se por vezes, no Cesário «realista», à sensação
de surpresa, de prazer, de espanto, que o existente, apenas pelo facto de
existir (paisagem física e humana da cidade ribeirinha), provoca no poeta
- Demonstra o
que no poema "Contrariedades" se concretiza da afirmação acima
transcrita.
Sugestão de resposta:
"mistura o físico e o moral" |
"Dói-me a cabeça. Abafo uns
desesperos mudos" |
"apresenta primeiro a sensação e só depois se refere ao objeto" |
"nevadas roupas" |
"emprega dois ou
mais adjetivos a qualificar o mesmo nome" |
"Pobre esqueleto branco"; "lançar
originais e exatos os meus alexandrinos" |
"uso da frase exclamativa" |
"Pobre esqueleto branco entre as
nevadas roupas!" |
"A emoção reduz-se
(...) à sensação de prazer" |
''Independente!" |
"A emoção reduz-se (...) à sensação de espanto, de
surpresa" |
"Tão lívida!"; “Incrível!"; "Tanta depravação
nos usos e nos costumes!" |
Escola Secundária Domingos Rebelo, 2000
Textos de apoio
A CRISE DUM OCIDENTAL
Estruturalmente, o “Livro” apresenta os
poemas distribuídos em dois grandes grupos: “Crise Romanesca” (com seis poemas)
e “Naturaes” (com dezasseis). A segunda série inicia-se com um poema que nos
diz muito sobre a maneira como Cesário Verde entendia o seu ofício de artista,
que ocupava a sua vida de forma tão verdadeira quanto o trabalho de “empregado
no comércio”. Estamos nos referindo ao poema que, n‟O livro de Cesário Verde, recebe o nome de
“Contrariedades”. Ele foi publicado pela primeira vez em 18 de março de 1876,
no jornal O Porto, com o nome de “Nevroses”. Porém, antes de nele nos determos,
precisamos recuar ao ano anterior, 1875, quando Cesário, em carta ao amigo
Silva Pinto, fazia as seguintes declarações:
[...] Cá vou vivendo cheio de trabalho
comercial. Estes últimos dias tenho tido algumas novidades.
Ontem à noite, quando saía da loja
encontrei o Henrique das Neves que me disse isto:
“O Teófilo leu os seus versos e, falando a
respeito do Guilherme de Azevedo, disse que este era talvez o único que no
futuro poderá representar a poesia moderna, por ser quem trilha a verdadeira
senda; tanto mais que se apresenta agora uma nova turba de rapazes que andavam
mal.”
“E referindo-se à sua “Esplêndida” censurou
que um homem, para captar as simpatias de uma mulher, desça ao lugar dos
lacaios. Disse que um poeta amante e moderno devia ser trabalhador, forte e
digno e não se devia rebaixar assim.” Dize francamente o que pensas disto.
(VERDE, 2003, p. 201).
O tom geral dessa carta é de insegurança e
de incertezas. De acordo com Joel Serrão, Cesário teria grande desilusão com os
comentários de Teófilo a respeito de seus poemas. O poeta não entendia:
“esperava aplausos dos revolucionários e, afinal, pedradas é que recebe”
(SERRÃO apud VERDE, 2003, p. 201). As palavras de Teófilo Braga reproduzidas
por Henrique das Neves antecipavam a ausência do nome de Cesário da antologia
que ele organizaria como a mais representativa do estado da poesia em seu
tempo, o Parnaso Português Moderno (1877). Essas palavras se dirigiam
mais especificamente contra o poema “Esplêndida”, um dos três que Cesário havia
publicado em 22 de março de 1874, no Diário de Notícias, sob o tema mais
geral de “Fantasias do impossível”. Os outros dois são “Arrojos” e “Caprichos”,
dos quais somente este último figuraria n‟O
Livro de Cesário Verde, com o
nome de “Responso” – sexto e último poema da primeira parte do livro e apenas o
segundo, dentre os que nele constam, a já ter sido publicado pelo próprio Cesário
(o primeiro fora “Cantos da tristeza”, cujo nome no livro é “Setentrional”).
Ainda na carta que abordávamos, é possível
perceber que, além da opinião negativa de Teófilo, algo havia acontecido após a
publicação das “Fantasias do impossível”. No parágrafo seguinte, Cesário
considera absolver Gomes Leal de um mal-entendido ocorrido entre eles. Cesário
teria pressionado o então editor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, para
que publicasse os seus poemas antes da “Justiça” de Gomes Leal. Ainda nesse parágrafo,
Cesário menciona que, após terem se reconciliado, Gomes Leal ter-lhe-ia dito
que ele não havia agido bem “marcando um prazo para os [seus] versos serem
publicados no Diário de Notícias e exigindo do Eduardo Coelho que eles
saíssem primeiramente que a ‘Justiça’
dele” (VERDE, 2003, p. 202). Toda essa
insegurança de Cesário quanto aos resultados da publicação daqueles versos – e
dos esforços para tal – fica ainda mais patente nestas suas palavras: “Não sei.
Os meus estavam lá havia muito e os dele foram entregues então” (VERDE, 2003,
p. 202).
No parágrafo seguinte, Cesário tenta
amenizar a gravidade do que havia acontecido dando a entender que entre ele e
Gomes Leal não houvera problema algum, senão um equívoco provocado por
terceiros: “Diziam-lhe que eu dizia mal dele e diziam-me que ele dizia mal de
mim. Agora creio que estamos bem” (VERDE, 2003, p. 2002). Mais adiante, as entrelinhas
revelam a duplicidade de sua vida de poeta e de “empregado no comércio”: “Desculpa,
meu Silva Pinto, estas minuciosidades que talvez te façam rir. Hoje é dia de
santo e disponho de tempo” (VERDE, 2003, p. 203). Em seguida, Cesário menciona
o contato que tivera com o “rapaz” que julgou “um pouco estouvado, mas de bom
coração” – Cristóvão Aires, a quem Tomás Ribeiro lhe apresentara e de quem diz:
“foi levar-me a casa uma poesia que me é dedicada e em que me aconselha a que
siga a escola do Sentimento, ou antes a que escreva apenas o que sinto” (VERDE,
2003, p. 203).
Em resumo: três poemas publicados; um
editor deixado em situação delicada; um poeta, de talento símile ao seu, desconsiderado
numa atitude que, embora não estivesse de todo incorreta, pois, como Cesário
mesmo dissera, os seus poemas já lá estavam antes do dele, fora suficiente para
que ele recebesse um tratamento carregado de “frieza”; um presente capaz de
afrontar qualquer artista ciente de seu valor e que tivesse a mínima dignidade
– o tal conselho estético de Cristóvão Aires; e, por fim, no penúltimo
parágrafo da carta, a desconsideração pública num espaço onde ele pretendia
inserir-se, relacionar-se, evidenciar-se, obter reconhecimento: “Disseram-me
que o Guimarães Fonseca leu no Martinho um folhetim em que me descompõe, e que
bastantes rapazes tomaram a minha defesa e pediram que o retirasse. Creio porém
que sairá, mas não sei quando” (VERDE, 2003, p. 203). O seu projeto de inserção
no campo literário encontrava resistência por todos os lados, mesmo assim Cesário
tentava mostrar-se indiferente às contrariedades que surgiam: “parece-me que
não me incomodará” (VERDE, 2003, p. 203). Em outros tempos não tão distantes
Cesário havia reagido de forma mais direta às ofensas de seus desafetos. O
poema “Ele ─ ao Diário Ilustrado”, publicado em 1874, é uma prova de sua
veia polêmica. Trata-se de virulenta resposta a um simples elogio feito pelo
jornal monarquista que o poeta chamava de “o vómito real” (VERDE, 2003, p. 50)
e ao qual ele não queria ver sua imagem associada. Mas, dessa vez, algo parece
ter sustentado sua aparência elegante naquele momento.
Como já afirmamos, Cesário Verde começara
publicando seus poemas no Diário de Notícias, de Lisboa, em 12 de
novembro de 1873. Foram três poemas publicados de uma só vez: “A forca”, “Num
tripúdio de corte rigoroso” e “Ó áridas Messalinas”. Dos dez poemas seguintes
que publicaria (“Eu e Ela”, “Lúbrica...”, “Ele”, “Impossível”, “Lágrimas”,
“Proh pudor!”, “Manias”, “Heroísmos”, “Cantos da tristeza”, e “Cinismos”),
apenas “Ele” sairia em Lisboa, em folha solta, no ano de 1874. Todos os outros
foram publicados no Diário da Tarde, do Porto, entre três de dezembro de
1873 e doze de março de 1874. Esse jornal era dirigido por Manuel Arriaga,
amigo de Silva Pinto.
Cesário somente voltaria a publicar num
jornal lisboeta em 22 de março de 1874. Os poemas são justamente os três que
compõem as “Fantasias do Impossível”. Após isso, até o fim da curta vida, ele
publicaria somente mais vinte poemas (“Vaidosa”, “Flores venenosas: I –
Cabelos”, “Melodias Vulgares”, “Cadências tristes”, “Deslumbramentos”,
“Humorismos de amor”, “Ironias do desgosto”, “Desastre”, “Nevroses”, “A débil”,
“Num bairro moderno”, “Merina”, “Sardenta”, “Cristalizações”, “Noitada”, “Num
álbum”, “Em petiz”, “Manhãs brumosas (versos de um inglês)”, “O Sentimento dum
ocidental” e “Nós”), saídos em Lisboa, Porto e Coimbra. Dos poemas publicados
em Lisboa, apenas dois sairiam no Diário de Notícias: “Num bairro
moderno” (1878) e “Em petiz” (1879).
Em 18 de março de 1876 – portanto, quase
dois anos após os resultados negativos da publicação das “Fantasias do
impossível” –, Cesário publicava n‟O
Porto o poema “Nevroses”, que, n‟O
Livro de Cesário Verde, aparece
com o título de “Contrariedades”. Antes de dimensionarmos a importância
desses dados que estão sendo apresentados, vejamos um trecho da obra Pela vida
fora, de Silva Pinto:
Houve então na minha vida um período que
foi a minha Idade Média – em trevas e incubações de coisas. Passei de um Jornal
da Tarde a um Porto, daí a uma Gazeta do Porto, depois a um Diário Português,
jornais pobríssimos, efémeros, onde eu despendi seiva para uma nova
Enciclopédia. Alternavam as polícias correcionais com os conflitos pessoais...
Foi esse o período iluminado e aquecido pelas cartas de Cesário Verde, e mal
suspeitava o meu grande amigo as torturas reais – do isolamento, da miséria, e
de toda a espécie de traições – que me entenebreciam a vida (PINTO, [s.d], p.
51).
Essas cartas que Cesário que Silva Pinto
menciona expressam, de forma muito subtil, uma angustiante expectativa: a busca
ansiosa por um caminho a seguir, a sua tentativa de se colocar como escritor e
de se definir em relação às representações e aos comportamentos associados a
essa condição em seu tempo – sem, no entanto, haver, de sua parte, qualquer movimento
no sentido de ajustar-se às regras específicas do campo literário no qual
pretendia se inserir. Nessa busca, tanto o positivismo de Teófilo Braga como o
de Littré lhe pareceram
vias possíveis, como se constata neste
trecho da já citada carta de 1877:
Aquele artigo do Teófilo sobre Camilo que
fala em disciplina mental faz-me pensar no que eu devo seguir; agora há uns
poucos de dias que não leio. Estou à espera que saia a última edição do
dicionário de medicina do Littré para estudar. Que te parece? Achas
extravagante? (VERDE, 2003, p. 210).
A “Idade Média” pela qual Silva Pinto diz
ter passado corresponde, justamente, a um período também obscuro para os
projetos literários do próprio Cesário. Mas, conhecendo a fase atravessada pelo
amigo, sua sensibilidade não lhe permitiria revelar diretamente todo o seu
drama de homem-poeta, embora isso aparecesse algumas vezes em declarações que parecem
surgir de assalto, como quando afirma, numa carta de 1875: “Não te digo mais
nada porque vejo que estás numa situação em que não se ouve com sossego os que
parecem muito sossegados da sua vida, como a ti te parecerá que eu estou”
(VERDE, 2003 p. 206). Ou ainda, em carta já de 1877: “Que queres, se não me
sinto bem em parte nenhuma e ando cheio de ansiedades de coisas que não posso
nem sei realizar” (VERDE, 2003, p. 210). Naquele momento, a decadência no nível
dos veículos de divulgação das obras era comum a ambos. Também Cesário
publicaria n‟O Porto. E na última vez em que uma obra sua é publicada nesse jornal ele reafirma o que
já havia anunciado em 1873: que tinha uma obra pronta, à espera de editores.
Chegamos, então, ao momento a que visávamos desde o início deste artigo, a
publicação, em 18 de março de 1876, do poema “Nevroses”. Vejamos o poema […].
“Nevroses” é o desabafo de um poeta que
teve seus versos rejeitados por um jornal. Mas esse não é um caso isolado em
sua vida autoral. Na sexta estrofe, o eu lírico afirma que “mais duma redação,
das que elogiam tudo”, lhe têm “fechado a porta”. E todo o poema é condicionado
pela “cólera” desse sujeito que diz se estimular com os obstáculos, tornar-se perverso
com eles, pois tudo o que nos dá a conhecer é modulado por suas “raivas frias”,
até mesmo os recortes através dos quais nos mostra aspetos da rotina de sua
vizinha, “uma infeliz” que “sofre de faltas de ar” por ter “os dois pulmões
doentes” e que, apesar de engomar para fora, “deve a conta à botica” e “mal
ganha para sopas...”.
A tensão do poema é regulada pela duração e
pela intensidade da cólera desse sujeito que usa o quadro da tísica como
espécie de válvula de ajuste para manter a sua própria tensão a um nível
compatível com a criação poética. Só aparentemente os comentários tecidos por ele
acerca de sua vizinha constituem uma interrupção ao tom de desabafo que
caracteriza o poema. Apesar da compaixão que ele expressa ao se referir à
engomadeira (“uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes”, “pobre
esqueleto branco entre as nevadas roupas”), a sua impassibilidade ao
perscrutar-lhe a vida tão adversa e a ironia com que revela a alienação dela diante
de um tal estado de coisas desvelam, a princípio, certo comprazimento com o mal
que parece exercer uma função complementar e compensatória ao seu desabafo.
Mas é preciso dizer que tudo isso não
impede que o poema “Nevroses” também esteja a serviço de uma poderosa denúncia
social. O alvo dessa denúncia é mesmo a situação de alienação e de desamparo
das camadas populares: “o populacho” que se diverte “na lama”. Essa expressão,
de tom satânico, diz muito sobre o temperamento do sujeito no início do poema,
que é responsável pela impassibilidade com que ele contempla o “pobre esqueleto
branco”, a vizinha tísica que mora defronte, em sua vida tão precária. Porém, à
medida que sua cólera inicial vai se dissipando, o sujeito se aprofunda com
mais humanidade naquele quadro deprimente em que uma vida se “esvai”: “nem pão
no armário, ó Deus!” – e, todavia, A crise dum ocidental ele a ouve, em sua
alienação, “cantarolar uma canção plangente/Duma opereta nova!”. Ao
findar, já “sem azedume” (passou-lhe a
cólera), esse sujeito faz-se uma desconcertante indagação: “A pobre engomadeira
ir-se-á deitar sem ceia?”. E o poema termina com esta melancólica conclusão:
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia.../Que vida! Coitadinha!”.
Esse é apenas o segundo poema em que
Cesário aborda a questão social de forma mais evidente. Isso já havia
acontecido em “Desastre” (1875). Mas em “Nevroses” há algo novo. A crítica
social não é exercida com paternalismo, nem de forma inequívoca. O sujeito
poético é contraditório ao segundo grau. A ambiguidade do seu posicionamento
ante a realidade social que o cerca dá a entender que ele a percebia como uma
situação complexa – o que, de certa forma, contrasta com a sua recusa a uma
adequação ao campo literário e com o seu ideal de fazer arte “independente”,
mesmo que seja apenas para destruí-la. Por isso, o campo literário que ignora
“a crítica segundo o método de Taine” é o seu alvo principal. O sujeito acusa a
“Imprensa” de pautar-se pelo compadrio, pelo elogio mútuo e pela convenção.
Para ele, tudo isso valia “um desdém solene”. E como é “independente” e tem
“sentimentos finos”, em vez de adular os literatos, apura-se “em lançar
originais e exatos” os seus alexandrinos. Por isso negam-lhe “as colunas”;
porque “não lhes convém” “publicar tais coisas, tais autores”, ou seja, “arte”;
porque “receiam que o assinante ingênuo os abandone”. Num tal campo literário, em
que a relação entre a literatura e o dinheiro está desorientada em termos de
valor, é um romancista medíocre como o francês Pierre Zaccone, muito famoso e
traduzido em Portugal no início da segunda metade do século XIX, quem “obtém
dinheiro” e “arranja sua coterie”.
Em O contexto da obra literária,
Dominique Mangueneau afirma que, da mesma forma que a literatura não pode “se
confundir com a sociedade „comum‟”,
a sua “existência social” exige-lhe que não se feche
sobre si, ao mesmo tempo em que lhe impõe “a necessidade de jogar com e nesse
meio-termo” (MANGUENEAU, 2001, p. 28). Esse autor utiliza o conceito de
“paratopia” para se referir à pertinência de uma obra ao campo literário. Esse
conceito é definido por ele como “resultante de “uma negociação difícil entre o
lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria
impossibilidade de se estabilizar” (MANGUENEAU, 2001, p. 28).
O sujeito poético de “Nevroses” recusa-se a
negociar com o campo literário e parece movido pela ideia da possibilidade de
uma “criação verdadeira”, composta de “enunciados ouro, contra a multidão inumerável dos enunciados aos quais a sociedade proporciona um valor
ilusório” (MAGUENEAU, 2001, p. 40-1). O problema é que quando não dá certo “a obra
não passa de um amontoado de signos ainda mais inúteis do que os que ela
recusa” (MANGUENEAU, 2001, p. 41).
Mas é preciso dizer que mesmo o idealismo
desse sujeito que se nega a adequar-se às regras do campo literário não está
livre de contradições. Ele se coloca à margem das regras que podem levá-lo,
simultaneamente, à riqueza e à mediocridade, mas almeja a riqueza como premiação
por seu talento, por denunciar a mediocridade e as injustiças da mesma
sociedade de quem espera o reconhecimento. Cesário, poeta e comerciante, ao
tentar se definir em relação às representações e aos comportamentos associados
à condição de escritor no seu tempo, recusou-se a negociar com as exigências do
campo literário e sentiu na pele os efeitos dessa atitude radical.
Em “Nevroses”, ele afirma que nas letras
conhecia bem um campo de manobras, mas, em seu breve percurso artístico e biográfico,
apesar de ter utilizado algumas dessas manobras, Cesário Verde não o fizera sem
constrangimentos, como se o lançar mão de tais meios fosse uma espécie de
ultraje ao talento que ele sabia possuir. O problema é que quem não quer jogar com
as regras do campo literário é obrigado a jogar com o acaso, enfrentar
contrariedades capazes de esmagar. Em 29 de junho de 1884, Cesário escrevia
carta a Mariano Pina, diretor da revista A Ilustração, de Paris,
fazendo, pela última vez e com uma honestidade emocionante, o uso das tais
manobras que em “Nevroses” ele dizia conhecer bem. Vejamos a carta na íntegra:
A sua «Ilustração» impressa nesse
tumultuoso Paris, em grande formato, composta por tipógrafos franceses que
devem achar muito drôle a abundância do til e a falta do acento grave,
anunciada com reclames estonteantes e um tapage ensurdecedor nesta pacífica
Lisboa tão morna e tão dorminhoca, a sua «Ilustração», duma tiragem muitíssimo
respeitável, fez-me nascer o desejo de lhe oferecer a Você a minha colaboração.
Conquanto V. não me enviasse o seu cartão de convite, o meu ideal de luxo e a
minha pretensão de ver os meus versos numa elegante toilette parisiense,
instigara-me a recomendar-lhe um pequeno poema que fiz com todo o esmero de que
sou capaz, e cujas provas eu quereria ver pessoalmente, no caso de ser publicado.
Compõe-se de heroicos e alexandrinos numas 130 quadras que no tipo miúdo (como
é mais distinto e mais discreto para a poesia) encherão essas colunas de
Hércules durante pouco mais de 2 páginas.
Mas a direção literária ou administrativa
duma publicação como a sua tem dificuldades. Você tem de consultar os grossos
apetites dos seus leitores e os fastios nevrálgicos das suas leitoras, e
realmente eu não sei se o deva
embaraçar com esta exigência.
Em todo o caso sempre lhe direi que é um
trabalho réussi, correto, honesto e dum sentimento simples e bom. Chama-se
«Nós», e é talvez a minha produção última, final. Trato de mim, dos meus,
descrevo as propriedades no campo em que nos criámos, a fartura da vida de
província, as alegrias do labor de todos os dias, as mortes que tem havido na
nossa família, e enfim os contratempos da existência. Para animar tudo isso,
para dar a tudo isso a vibração vital eu empreguei todo o colorido, todo o
pitoresco, todo o amor que senti, que me foi possível acumular.
Ora como esta obra começa com a descrição
da Febre Amarela e do Cólera-Mórbus quando nós fugimos em crianças, lá para
fora, e depois continua com descrições do nosso verão adusto e forte; e como
nós agora estamos com a ameaça da epidemia e julho e agosto vão começar, eu
pretendia que estas coincidências convergissem; publicando imediatamente.
É uma paixão pela arte que me faz pensar
assim, não julgue V. crueldade. A famosa ciência de Pasteur e dos outros há de
atalhar o mal, e o pavor será a maior dor que se sentirá. Outra coisa: Sabe V.
que tenho saudades desse aborrecido mês que vivi em Paris tão contrariado e
esmagado, e que hoje fiz volte-face e agora, digo constantemente bem dessa
França, desses Franceses e dessas Francesas, como um doido ou um apaixonado?
Bem. Escreva-me Você sem demora com a sua
decisão.
Seu confrade amigo e obrigado (VERDE, 2003,
p. 237-8).
Essa carta retoma alguns pontos importantes
do poema “Nevroses”. De início, em vez do “desdém solene” que o sujeito desse
poema diz relegar à imprensa, Cesário afirma ser seu “ideal de luxo”, sua
“pretensão”, ver os seus “inéditos” “heroicos” e “alexandrinos” estampados
“durante pouco mais de 2 páginas” daquela revista de “tiragem muitíssimo respeitável”.
Em sua modesta retórica, Cesário reconhece que fazia um pedido embaraçoso a Mariano
Pina, que sequer lhe havia enviado o “seu cartão de convite” e que, decerto,
haveria de “consultar os grossos apetites dos seus leitores e os fastios
nevrálgicos de suas leitoras”. Mas ele equilibra essa concessão ressaltando o
caráter excecional de sua “epopeia morta”, que é uma epopeia sobre os seus
mortos, como sua “produção última, final”. Ao contrário do editor que rejeita o
“folhetim de versos” do sujeito de “Nevroses”, Pina não faz caso do “assinante
ingênuo”, que poderia abandonar sua “Ilustração” por “publicar tais coisas,
tais autores”, e o poema “Nós” sai em cinco de setembro de 1884, na revista
parisiense.
O facto de Cesário ter pretendido
sincronizar a publicação de “Nós” com eventos reais que lhe dramatizariam a
leitura faz-nos pensar que a proximidade da publicação de “Nevroses” com a
série de incidentes que vinham se sucedendo em sua vida desde as “Fantasias do
impossível” tenha tido alguma relação com tais acontecimentos. É que na poética
de Cesário a relação entre os elementos biográficos e a criação resultante da despersonalização
é ao mesmo tempo muito tênue e complexa. Centrando-nos apenas no caráter
enunciativo do eu lírico desses dos poemas, verificamos que enquanto em
“Nevroses” as contrariedades enfrentadas pelo sujeito em sua relação com o
campo literário levam-no a destruir os seus versos, ou a enterrá-los “no fundo
da gaveta”, em “Nós” a constatação da ausência de sentido da existência faz com
que o sujeito acabe por negar o valor da própria literatura:
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e
azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se inda trabalho é como os presos no
degredo,
Com planos de vingança e ideias
insubmissas.
E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão tristes, tão
perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados
versos!
(VERDE, 2003, p. 184).
Voltando à biografia, após a saída de “Nós”
n‟A Ilustração Cesário
realmente nunca mais publicaria outro poema. E até onde se sabe, este foi o
último a ser concluído. Como vimos na carta a Mariano Pina, Cesário refere-se a
essa composição como sua “produção última, final”. N‟O Livro de Cesário Verde, há um poema
incompleto, “Provincianas”, que Silva Pinto identifica como tendo sido iniciado
após a conclusão de “Nós”. De qualquer forma, o que o poeta registra na carta
sobre o caráter derradeiro desse poema e a ausência de publicação posterior são
factos que nos permitem ver mesmo nele uma espécie de despedida.
Em “Nevroses” o sujeito poeta tem como
algoz a sociedade, que lhe rejeita os versos; e em “Nós” é a vida mesma, em seu
caráter problemático, que não merece o seu labor. Mas o poeta Cesário já havia
assumido a própria responsabilidade pela impossibilidade do verso, do livro
ideal. Em “O sentimento dum ocidental” (1880), meditando um livro que
exacerbasse, o sujeito queixa-se por “não poder pintar” a realidade com “versos
magistrais, salubres e sinceros”, desejando, porém, eternamente buscar e
conseguir “a perfeição das coisas”. Seja como for, Cesário morreria em 1886 e,
como Mallarmé, também não publicaria o seu prometido “Livro”.
Silvio Alves, “A crise dum ocidental: Cesário Verde e a impossibilidade do livro”,
Estudos Linguísticos e Literários, n.º 51(1/2015) – ISSN: 2176-4794
***
CESÁRIO VERDE, A DOENÇA E A MEDICINA
Ao analisar a sua curta obra (46 poemas) e
a epistolografia conhecida (32 cartas ou fragmentos) são numerosos os momentos
em que se podem encontrar elementos em que a experiência de doença é claramente
pessoal e decisiva na sua visão como artista. Permitem, além disso, entrever
uma relação em geral pouco amistosa/ desconfiada em relação às possibilidades
da Medicina. […]
No poema “Contrariedades”, Cesário,
exasperado com a critica literária, contrapõe a esta a imagem de uma vizinha
tuberculosa. Segundo Helena Buescu, o diálogo é entre um “eu” que “sentado à
secretaria”, enfrenta a imagem da morte que “ali defronte mora” na figura da
“infeliz sem peito, os dois pulmões doentes”.3 Esta imagem, que lhe
é familiar, permite-lhe relativizar a má receção da imprensa. Sabendo que a sua
amada irmã morrera desta mesma situação, não é difícil imaginar que Cesário vê
como sua a imagem da tísica aceitando pacientemente o destino. Apenas o mitiga,
bem sabe, e talvez em “outros climas” conseguirá ler “impressas em volume” as
suas rimas. No limite, a sua própria persona, entregue a um trabalho rotineiro
e sem grande esperança. Estigmatizado pelas suas opções literárias, tal como é
o estigma da tuberculose na imagem da janela em frente. Muito pior será a
doença e a morte, que viveu com a sua irmã e o ameaça a si próprio. A morte e a
doença que acompanharão a sua escrita solitária, afastada dos campos de
manobras das letras e das luzes.
Esta ameaça tornar-se-á real em 1886. Numa
tentativa desesperada, muda a residência para Caneças. De lá escreve a seguinte
carta ao Conde de Monsaraz:
“Mas olha, sério, em volta de mim, pessoas,
coisas, tudo anda amolentado, cansado. As melhoras, as próprias melhoras que os
medicamentos chamam e espicaçam com o aguilhão da sua química, e que eu estimulo
com a aguilhada da minha vontade, essas mesmas vão ronceiras, moles, a passo de
boi, muito devagar, muito devagar. Mal as vejo mexerem-se na longa estrada do
tempo. De modo que apenas a grandes intervalos te posso noticiar, meu amigo, um
avanço, um adiantamento.
(...) Mas subitamente chegam-me dúvidas,
descrenças, terrores do futuro. Curo-me? Sim, talvez. Mas como fico eu? Um
cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me o vento, entra-me a
chuva no corpo escangalhado.”1
Esta carta mostra alguém ainda esperançado,
embora com dúvidas de uma recuperação completa. Mas como, se Cesário já vira o
que vira?
Uma
tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me
rebate ainda o seu tossir profundo!
E
eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com
que se despediu de todos e do mundo!
Pobre
rapaz robusto e cheio de futuro!
Não
sei d`um infortúnio imenso como o seu!
Viu
o seu fim chegar como um medonho muro.
E
sem querer, aflito e atónito, morreu!1
Em Nós, de 1884, a descrição da
doença e morte do seu irmão Joaquim Tomás, mostra-nos ser bem real a noção do “medonho
muro” que o esperava. E o que dizer acerca do efeito provocado nos familiares, certamente
tão desesperados como ele próprio com a sucessão de doença e morte na família.
A propósito de Maria Júlia, descreve:
Era
essa tísica em terceiro grau,
Que
nos enchia a todos de cuidado,
Te
curvava e te dava um ar alado
Como
quem vai voar d`um mundo mau.
Era
a desolação que inda nos mina
(Porque
o fastio é bem pior que a fome)
Que
a meu pai deu a curva que o consome,
E
a minha mãe cabelos de platina!1
Após a morte do irmão afirma que sucessão
de infortúnios motivados pela doença distanciam-no em relação com a sua amada
poesia:
E
agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho
momentos maus, tão tristes, tão perversos,
Que
sinto só desdém pela literatura,
E
até desprezo e esqueço os meus amados versos!1
Após a morte de Cesário, Mariano Pina
lembrou a sua viagem de negócios a Paris em 1883:
“Ainda me lembro da sua vinda a Paris para
tratar de negócios. Ele bem me queria convencer que o poeta tinha morrido e que
hoje só pensava numa vida laboriosa e ativa de negociante conhecendo a fundo a
sua especialidade, sabendo como qualquer fabricante onde se fabricava o melhor ferro,
onde se vendiam as melhores ferramentas, as limas e as plainas do mais puro aço
(..) Mas o artista traía-o a cada passo.”1
De facto, as suas afirmações não o
impediram de publicar “Nós” em 1884. A traduzir, de forma cada vez mais
afastada das normas literárias da sua época uma visão poética da realidade; na
qual a dualidade da doença/saudáveis se encontra sempre presente:
Não
desejamos – nós os sem defeitos,
Que
os tísicos pereçam! Má teoria,
Se
pelos meus o apuro principia,
Se
a Morte nos procura em nossos leitos!
A
mim mesmo, que tenho a pretensão
De
ter saúde, a mim que adoro a pompa
Das
forças, pode ser que se me rompa
Uma
artéria e me mine uma lesão!
Ler mais: “Cesário Verde, a Doença e a Medicina”, Francisco Rosário. Medicina
Interna - Revistada Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, vol.28 | n.º2
| abr/jun 2021. DOI:10.24950/PV/F.Rosario/2/2021
REFERÊNCIAS
1.
Serrão J. Obra Completa de Cesário Verde. Lisboa: Livros Horizonte; 1992
3.
Buescu HC. “Introdução à obra de Cesário Verde”. In: Carlos Reis,
coordenadores. Cânticos do Realismo – O Livro de Cesário Verde.
Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa
da Moeda; 2015.
Poderá também
gostar de:
- “Para uma síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Contrariedades, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-30. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/contrariedades-cesario-verde.html
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