terça-feira, 29 de novembro de 2022

Manias, Cesário Verde


 

MANIAS

 

 

 

 

 

 

5

 

 

 

 

 

10

 

 

 

 

 

O mundo é velha cena ensanguentada,

Coberta de remendos, picaresca1;

A vida é chula2 farsa3 assobiada,

Ou selvagem tragédia romanesca.

 

Eu sei4 um bom rapaz, - hoje uma ossada -,

Que amava certa dama pedantesca5,

Perversíssima, esquálida6 e chagada7,

Mas cheia de jactância8 quixotesca9.

 

Aos domingos a deia10, já rugosa11,

Concedia-lhe o braço, com preguiça,

E o dengue12, em atitude receosa,

 

Na sujeição canina mais submissa,

Levava na tremente mão nervosa,

O livro com que a amante ia ouvir missa!


Lisboa

Porto, Diário da Tarde, 23 de janeiro de 1874

Edição utilizada: Obra completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983

 

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Notas:

1 Picaresco - Que provoca riso ou zombaria; ridículo. Na literatura, corresponde a uma narrativa (frequentemente autodiegética e satírica) das aventuras de uma personagem, geralmente de baixa condição, que vive de expedientes nem sempre honestos.

2 Chulo: Grosseiro; sem educação nem delicadeza ou refinamento; rude, vulgar; aquele que se aproveita de alguém e vive à sua custa.

3 Farsa: Peça teatral, geralmente de elenco reduzido, de ação trivial ou burlesca, na qual se empregam gracejos, situações cómicas e ridículas.

4 Eu sei: eu conheço.

5 Pedantesco: que é pedante; afetado; pessoa que é vaidosa no falar e na apresentação; pretensioso.

6 Esquálida; muito magra.

7 Chagada: que apresenta chagas, feridas.

8 Jactância: Atributo ou atitude de quem se julga superior e faz alarde das suas qualidades e proezas.

9 Quixotesco: relativo a D. Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, personagem idealista, ingénua, romântica e um tanto alienada. No caso da mulher, seria ousada, irrealista, utópica.

10 Deia: deusa.

11 Rugosa: cheia de rugas

12 Dengue: indivíduo que age de forma insinuante ou afetada com o propósito de seduzir ou agradar.

 ***


Questionário sobre o poema “Manias”, de Cesário Verde:

1. Na estrofe introdutória, podemos encontrar um indício de que se vai relatar uma história já contada ou recuperar um dado já conhecido. Justifique.

2. Mencione em que expressão o tópico literário da “morte por amor” é aludido.

3. Demonstre que no texto se conta uma história tragicómica, isto é, que pode ser vista como uma “farsa” ou, por outro ponto de vista, ser entendida como uma “tragédia romanesca”.

4. Proceda à caracterização do casal grotesco apresentado no texto.

5. Caracterize a voz poética.

6. Justifique o título atribuído ao poema.

 

Manias, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 29-11-2022. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/manias-cesario-verde.html

 

Sugestões de resposta:

1. Quando se refere, na 1.ª estrofe, que o mundo é uma velha cena, ensanguentada e cheia de remendos, o sujeito poético sugere que irá recontar uma história já conhecida, embora com alterações. Assim, recupera, satirizando, a imagem da mulher sem compaixão pelo homem e que surge, por exemplo, nas cantigas de amor trovadorescas ou possivelmente da literatura ultrarromântica. Ao subverter a imagem idealizada da mulher, torna-a, ao mesmo tempo, perversa e ridícula.

2. A referência, no verso 5, de que o rapaz se tornou uma ossada” revela como o amor foi fatal.

3. O texto é escrito partindo das impressões que causou no sujeito poético a história de um rapaz que se apaixona e se submete a uma mulher arrogante e fria, tendo ele vindo a morrer, provavelmente, por conta de um cruel jogo de sedução.

Por um lado, a história é uma farsa, na medida em que é descrito o estado de desonra da figura feminina, que, enquanto “pícara”, se aproveitou de um pobre coitado – “um bom rapaz”, como apelida o sujeito poético.

Por outro lado, a situação torna-se numa “cena ensanguentada”, isto é, num desfecho trágico, na medida em que o rapaz, qual “herói trágico”, mantém-se firme na sua missão de amante até à morte (“hoje uma ossada”, v. 5). Apesar de não sabermos as circunstâncias, o poema faz-nos suspeitar de um suicídio, tamanha a submissão dele pela mulher “perversíssima” que é exposta ao longo do texto.

Em síntese, no texto descreve-se uma “cena” tragicómica, um episódio da “peça da vida” de um rapaz, parte do “teatro do mundo”, para demonstrar o caráter tragicómico do todo.

4. Ambos os amantes constituem um casal grotesco, por representarem o caráter ultrapassado e anacrónico do amor romântico.

O sujeito poético descreve o jogo de sedução da mulher, repleto de caprichos (“cheia de jactância quixotesca”) e de arrogância (“Concedia-lhe o braço, com preguiça, / E o dengue, em atitude receosa”). Na segunda e terceira estrofes, vemos que se trata de uma mulher velha e de má aparência (“a deia já rugosa”), além de “(...) esquálida e chagada”, apenas inferior/temente a Deus (“Levava na tremente mão nervosa, / O livro com que a amante ao ouvir missa!”).

Por antítese, caricatural, surge o amante, por sinal mais novo, em completa submissão passional, tão ao gosto ultrarromântico (“na sujeição canina mais submissa”). Por exemplo, a rotina dominical do bom rapaz que acompanha a sua amada à missa mais se assemelha a uma cena cómica, na qual a mulher, provavelmente já velha, ironicamente chamada de “deia rugosa”, longe de ser uma jovem virginal como cantam os românticos, oferece-lhe o braço com preguiça, enquanto o rapaz, dengoso, como um cão que com medo se submete ao dono, leva na mão nervosa e trémula o missal.

Enfim, um casal romântico, que, nessa época, é metonímia do mundo romântico lisboeta criticado.

5. O poema inicia com uma caracterização do mundo e da vida sob o ponto de vista do eu lírico que os associa com os dois géneros por excelência do teatro: a comédia (sob a designação da farsa) e a tragédia. Com este posicionamento ideológico, o sujeito poético dá conta da sua capacidade analítica dos costumes da malha social burguesa, ao assumir uma postura crítica e, como quem conta uma anedota, usa uma sagaz ironia para nos contar a história de um rapaz seu conhecido. Assim, o quadro que encena o amor romântico de forma ridícula, jocosa e humilhante, é produto do olhar analítico do “eu”, que observa objetivamente o mundo ao seu redor.

Nota:

Não se pode esquecer que Cesário Verde é contemporâneo do Realismo e do Naturalismo, correntes estéticas que buscavam a observação concreta e o comentário social, à maneira do método crítico de Taine, que Hélder Macedo define como “a aplicação da análise ao real com o propósito implícito de exacerbar a sua compreensão crítica” (“Coordenadas Ideológicas”, in Nós, uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Presença, 1999). O quadro é, portanto, produto de um olhar consoante à doutrina da época, que vive a decadência do Romantismo à luz dessa nova metodologia de reflexão dos factos; de um olhar de um pintor naturalista que observa e retrata o mundo sem maquilhagem.

6. O tom irónico rodeia todo o poema, desde o título (“Manias”) até ao último verso (“O livro com que a amante ao ouvir missa!”). Nos tercetos, desenrola-se uma “cena” que se repete “aos domingos” e que justifica o título, "Manias”: aos domingos o moço leva a “dama” à missa; ela lhe oferece o braço – esquálido, chagado, rugoso – de maneira preguiçosa, pedante, snobe; ele, com as mãos tremendo de nervoso por estar com a amada, leva-lhe “ o livro com que amante ia ouvir missa” (provavelmente um missal) feito o seu cãozinho. Um quadro de chorar – de rir.

 

Bibliografia:

Manias, de Cesário Verde - Uma leitura”, Luiz Renato. <http://oburricodebalaao.blogspot.com/2009/07/manias-de-cesario-verde-uma-leitura.html>, 30-07-2009.

“O eu-personagem de Cesário Verde em Manias”, Gabriela Mori. <https://gabrielamori.wordpress.com/2010/09/16/o-eu-personagem-de-cesario-verde-em-manias/>, 16-09-2010

“Uma análise do poema Manias, de Cesário Verde”, Nicole Cristofalo. <http://dadoacaso.blogspot.com/2010/03/uma-analise-do-poema-manias-de-cesario.html>, 14-03-2010.

 

 

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