MANIAS
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O mundo é velha cena ensanguentada, Coberta de remendos, picaresca1; A vida é chula2 farsa3 assobiada, Ou selvagem tragédia romanesca. Eu sei4 um bom rapaz, - hoje uma
ossada -, Que amava certa dama pedantesca5, Perversíssima, esquálida6 e chagada7, Mas cheia de jactância8 quixotesca9. Aos domingos a deia10, já rugosa11, Concedia-lhe o braço, com preguiça, E o dengue12, em atitude receosa, Na sujeição canina mais submissa, Levava na tremente mão nervosa, O livro com que a amante ia ouvir missa! |
Lisboa
Porto, Diário da Tarde,
23 de janeiro de 1874
Edição utilizada: Obra
completa de Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por
Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
_____________
Notas:
1 Picaresco
- Que provoca riso ou zombaria; ridículo. Na literatura, corresponde a uma narrativa
(frequentemente autodiegética e satírica) das aventuras de uma personagem,
geralmente de baixa condição, que vive de expedientes nem sempre honestos.
2 Chulo:
Grosseiro; sem educação nem delicadeza ou refinamento; rude, vulgar;
3 Farsa:
Peça teatral, geralmente de elenco reduzido, de ação trivial ou burlesca, na
qual se empregam gracejos, situações cómicas e ridículas.
4 Eu sei:
eu conheço.
5 Pedantesco:
que é pedante; afetado; pessoa que é vaidosa no falar e na apresentação;
pretensioso.
6 Esquálida;
muito magra.
7 Chagada:
que apresenta chagas, feridas.
8 Jactância:
Atributo ou atitude de quem se julga superior e faz alarde das suas qualidades
e proezas.
9 Quixotesco:
relativo a D. Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, personagem idealista,
ingénua, romântica e um tanto alienada. No caso da mulher, seria ousada, irrealista,
utópica.
10 Deia:
deusa.
11 Rugosa:
cheia de rugas
12 Dengue:
indivíduo que age de forma insinuante ou afetada com o propósito de seduzir ou
agradar.
***
Questionário sobre o poema “Manias”, de Cesário Verde:
1. Na estrofe introdutória,
podemos
encontrar um indício de que se vai relatar uma história já contada ou recuperar um
dado já conhecido. Justifique.
2. Mencione em que expressão o
tópico literário da “morte por amor” é aludido.
3. Demonstre que no texto se conta uma história tragicómica, isto é, que pode ser vista como uma “farsa” ou, por outro ponto de vista, ser entendida como uma “tragédia romanesca”.
4. Proceda à caracterização do
casal grotesco apresentado no texto.
5. Caracterize a voz poética.
6. Justifique o título atribuído
ao poema.
“Manias, Cesário Verde”, José Carreiro. Folha de Poesia, 29-11-2022. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/manias-cesario-verde.html
Sugestões de resposta:
1. Quando se refere, na 1.ª estrofe, que o mundo é uma velha cena, ensanguentada e
cheia de remendos, o
sujeito poético sugere que irá recontar uma história já conhecida, embora com alterações. Assim, recupera, satirizando, a imagem da mulher sem compaixão pelo homem e que surge, por exemplo,
nas cantigas de amor trovadorescas ou possivelmente da literatura
ultrarromântica. Ao
subverter a imagem idealizada da mulher, torna-a, ao mesmo tempo, perversa e ridícula.
2. A referência, no verso 5, de que o rapaz se tornou “uma ossada” revela como o amor foi fatal.
3. O
texto é escrito partindo das
Por um lado, a história
é uma farsa, na medida em que é descrito o estado de desonra da figura feminina, que,
enquanto “pícara”, se aproveitou de um pobre coitado – “um bom rapaz”, como
apelida o sujeito poético.
Por outro lado, a
situação torna-se numa “cena
ensanguentada”, isto é, num desfecho trágico, na medida em que o rapaz,
qual “herói trágico”, mantém-se firme na sua missão de amante até à morte (“hoje uma ossada”, v. 5). Apesar de não sabermos as circunstâncias, o
poema faz-nos
suspeitar de um suicídio, tamanha a submissão dele pela mulher “perversíssima”
que é exposta ao longo do texto.
Em síntese, no texto descreve-se uma “cena” tragicómica,
um episódio da “peça da vida” de um rapaz, parte do “teatro do mundo”, para
demonstrar o caráter tragicómico do todo.
4. Ambos os amantes constituem um casal grotesco, por representarem
o caráter
ultrapassado e anacrónico
do amor romântico.
O sujeito poético descreve o jogo de sedução da mulher,
repleto de caprichos (“cheia de jactância quixotesca”) e de arrogância
(“Concedia-lhe o braço, com preguiça, / E o dengue, em atitude receosa”). Na
segunda e terceira estrofes, vemos que se trata de uma mulher velha e de má
aparência (“a deia
já rugosa”), além de “(...) esquálida e chagada”, apenas inferior/temente
a Deus (“Levava
na tremente mão nervosa, / O livro com que a amante ao ouvir missa!”).
Por antítese,
caricatural, surge o amante, por sinal mais novo, em completa submissão
passional, tão ao gosto ultrarromântico (“na sujeição canina mais submissa”). Por exemplo, a rotina dominical do bom rapaz que
acompanha a sua amada à missa mais se assemelha a uma cena cómica, na qual a
mulher, provavelmente já velha, ironicamente chamada de “deia rugosa”, longe de
ser uma jovem virginal como cantam os românticos, oferece-lhe o braço com
preguiça, enquanto o rapaz, dengoso, como um cão que com medo se submete ao
dono, leva na mão nervosa e trémula o missal.
Enfim, um casal romântico, que, nessa época, é metonímia
do mundo romântico lisboeta criticado.
5. O
poema inicia com uma caracterização do mundo e da vida sob o ponto de vista do
eu lírico que os associa com os dois géneros por excelência do teatro: a
comédia (sob a designação da farsa) e a tragédia. Com este posicionamento ideológico,
o sujeito
poético dá conta da sua capacidade analítica dos costumes da
malha social burguesa, ao assumir uma postura crítica e, como quem conta uma anedota, usa uma
sagaz ironia para nos contar a história de um rapaz seu conhecido. Assim, o
quadro que encena o amor romântico de forma ridícula, jocosa e humilhante, é
produto do olhar analítico do “eu”, que observa objetivamente o mundo ao seu
redor.
Nota:
Não se pode esquecer que Cesário Verde é
contemporâneo do Realismo e do Naturalismo, correntes estéticas que buscavam a
observação concreta e o comentário social, à maneira do método crítico de Taine,
que Hélder Macedo define como “a aplicação da análise ao real com o propósito
implícito de exacerbar a sua compreensão crítica” (“Coordenadas Ideológicas”,
in Nós, uma leitura de Cesário
Verde. Lisboa: Presença, 1999). O quadro é, portanto, produto de um
olhar consoante à doutrina da época, que vive a decadência do Romantismo à luz
dessa nova metodologia de reflexão dos factos; de um olhar de um pintor
naturalista que observa e retrata o mundo sem maquilhagem.
6. O
Bibliografia:
“Manias,
de Cesário Verde - Uma leitura”, Luiz Renato. <http://oburricodebalaao.blogspot.com/2009/07/manias-de-cesario-verde-uma-leitura.html>,
30-07-2009.
“O eu-personagem
de Cesário Verde em Manias”, Gabriela Mori. <https://gabrielamori.wordpress.com/2010/09/16/o-eu-personagem-de-cesario-verde-em-manias/>,
16-09-2010
“Uma
análise do poema Manias, de Cesário Verde”, Nicole Cristofalo. <http://dadoacaso.blogspot.com/2010/03/uma-analise-do-poema-manias-de-cesario.html>,
14-03-2010.
Poderá também gostar de:
- “Para uma síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
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