Vida e obra de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa (1888 – 1935)
fica órfão de pai aos cinco anos e a sua mãe casa com o cônsul de Portugal em
Durban, razão pela que viajam a África do Sul, onde recebe uma educação
britânica. Posteriormente voltará a Lisboa, onde exerce como tradutor.
Ideologicamente temos de
dizer que foi liberal dentro do conservadorismo, um cristão gnóstico
oposto à Igreja de Roma e partidário dum nacionalismo mítico, de criar
um sebastianismo novo (“Tudo pela Humanidade; nada contra a nação”).
A sua obra está muito dispersa
em revistas e outras publicações, com tudo publicou livros e
folhetos como:
35
Sonnets.
English poems I – II.
English poems III.
Mensagem.
Fernando Pessoa e os ismos de
vanguarda
Paulismo
É uma invenção de Pessoa
cujo nome deriva do poema “Impressões
do crepúsculo”. O Paulismo é um refinamento dos processos simbolistas, um
estilo que se define pela voluntária confusão do subjectivo e o objectivo
por:
A associação de ideias
desconexas.
Frases nominais e exclamativas.
Aberração da sintaxe.
Vocabulário que expressa aborrecimento de viver (“Tão sempre a
mesma, a Hora!”), o vazio da alma, um vago além (uso de
maiúsculas nas palavras de mais importância).
Perante o tédio de viver há uma ânsia de ideal e de alienação de si mesmo
nos limites (“horizonte”, “portões”) do mundo de sonho criado por
ele próprio.
O poema que inicia o Paulismo, “Impressões
do crepúsculo”, é o precedente da poesia modernista em
Portugal. O Paulismo conjuga duas tendências opostas:
Saudosismo (Teixeira de Pascoaes).
Simbolismo – decadentista, que segue as tendências estéticas europeias.
Interseccionismo
O Interseccionismo deriva do Paulismo,
supõe a adaptação deste às novas correntes estéticas:
Futurismo: sobreposições dinâmicas, técnica
procedente da pintura que se aplica à poesia modernista.
Cubismo: sobreposição dos planos dos objectos
(presente e passado, real e onírico), que reflecte a superposição das
sensações.
O poema “Chuva
oblíqua” (publicado na revista Orpheu) é considerado o exemplo
mais significativo do Interseccionismo.
Sensacionismo
O Sensacionismo (Walt
Whitman) é criado por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro e supõe uma arte sem regras
que tenha como base a sensação. O mesmo Pessoa explica em diversos
textos em que consiste, assim diz-nos que os três princípios da arte são:
O da sensação: as sensações devem
ser plenamente expressas.
O da sugestão: a expressão das sensações deve evocar o maior número
possível de outras sensações.
O da construção: o assim produzido deve parecer-se a um ser organizado.
► A única realidade da vida é a sensação.
A única realidade em arte é a consciência da sensação.
► Não há
filosofia, ética ou estética, mesmo na arte, seja qual for a parcela que
delas haja na vida. Na arte existem apenas sensações e a consciência que dela
temos. [...]
► A arte, na
sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência das
sensações, ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que
criem um objeto que seja uma sensação para os outros. [...]
► Os três
princípios da arte são: 1) cada sensação deve ser plenamente expressa [...];
2) a sensação deve ser expressa de tal modo que tenha a capacidade de evocar
- como um halo em torno de uma manifestação central definida - o maior número
possível de outras sensações; 3) o todo assim produzido deve ter a maior
parecença possível com um ser organizado, por ser essa a condição da
vitalidade. Chamo a estes três princípios 1) o da Sensação, 2) o da Sugestão,
3) o da Construção.
(Páginas Íntimas e de
Auto-Interpretação,
pp.137-138)
|
Assim, o Interseccionismo seria uma forma
de concretizar o Sensacionismo.
Simultaneismo
O termo Simultaneismo foi
cunhado por Robert Delaunay, embora tome o nome de Michel-Eugène
Chevreul.
Em 1913 os futuristas dizem ser os
primeiros em introduzir nas suas obras a ideia de simultaneidade. Deste jeito,
a sua pintura quer expressar uma sensação dinâmica com a decomposição
do movimento.
É Apollinaire quem adapta e generaliza o termo, já que o usa para
designar um princípio artístico que consiste em que os elementos sem relação
se justapõem de jeito arbitrário, dando lugar ao contraste
entre eles.
A simultaneidade foi um dos
conceitos mais discutidos nos anos anteriores à I Guerra Mundial.
Futurismo
O Futurismo aparece de forma
oficial em 1909 com o Manifesto Futurista de Marinetti e
as suas principais características são:
Rejeitamento do passado e do moralismo.
Evocação dos avances tecnológicos.
Os primeiros futuristas também exaltavam a guerra e a violência.
Em Portugal o Futurismo
aparece por primeira vez no número dois da revista Orpheu,
dirigida por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Nas odes de Álvaro de
Campos (um dos heterónimos usados por Pessoa) aprecia-se uma mistura e
Futurismo e Sensacionismo (Walt Whitman):
“Ode triunfal”: amais de
cantar aos avances da técnica também evoca o passado (“Canto, e canto o
presente, e também o passado e o futuro, porque o presente é todo o passado e
todo o futuro”).
“Ode marítima”.
Importância da revista Orpheu
A revista Orpheu
conjuga todos os movimentos literários modernos (Simbolismo,
Decadentismo, Paulismo, Simultaneismo, Futurismo, Cubismo, Expressionismo,
Sensacionismo, Interseccionismo...) elevando a Portugal à dimensão do moderno e
da Europa.
(Adaptado de “O
domínio da poética Saudosista e neo-romântica nos anos da Primeira República.
Fernando Pessoa”, USC, 2006/2007, http://apuntamentos.iespana.es/introlitpt/19.doc)
O grande motor de arranque do movimento [modernista português] foi a revista Orpheu, de que
saíram dois números
apenas (1915). Outras revistas se lhe
seguiram, divulgadoras da mesma mensagem artística:
Centauro (1 número), Portugal Futurista
(1 número), Contemporânea
(13 números - 1922-33) e Athena
(5 números - 1924-25).
Os homens deste movimento
modernista escandalizaram e assustaram os intelectuais
e a sociedade "bem pensante" da época, tal a sua inclinação para o desprezo do bom senso, com tendências que
evolucionavam do sentir sebastianista mais delirante
até às ciências
ocultas e à astrologia.
O que se pretendia era
escandalizar. Os dois números do Orpheu surgiram mesmo "para irritar o burguês, para escandalizar, e alcançaram o
fim proposto, tornaram-se alvo das troças
dos jornais". Era
assim que
se procedia à maior reviravolta
da literatura portuguesa.
Pessoa e os outros
sentiam-se entediados pelos seus contemporâneos. O repúdio
do espírito da Renascença
Portuguesa, em que
pontificava Teixeira de Pascoaes, foi o primeiro efeito desse tédio.
"Nós não somos
do século de inventar
as palavras. As palavras
já foram inventadas. Nós somos do século
de inventar outra
vez as palavras
que já
foram inventadas".
As tendências do primeiro Orpheu
evolucionaram do Decadentismo-Simbolismo até
ao Modernismo sensacionista de Álvaro de
Campos.
O Futurismo e o Sensacionismo devem-se, em Portugal,aos homens
mais influentes do movimento
Orpheu: Fernando Pessoa, Almada
Negreiros e Mário de Sá-Carneiro.
O Futurismo, lançado na Europa sobretudo
pelo poeta italiano
Marinetti, é representado em Portugal pelos seguintes
textos e autores:
"Ode Triunfal"
(1914) e "Ultimatum" (1917) de Álvaro de Campos;
"Manucure" e "Apoteose"
(1915) de Sá-Carneiro; "A Cena do Ódio" (1915), "Manifesto
Anti-Dantas" (1916) e "Ultimatum Futurista
às Gerações Portuguesas do Séc. XX"
(1917) de Almada Negreiros.
Ao mesmo tempo que se mostravam demolidores dos sistemas
ideológicos tradicionais, estes homens impunham também
um conceito
novo de arte,
substituindo o conceito de Belo (imitação harmoniosa da Natureza),
herdado da velha "estética aristotélica".
Queriam uma estética que espelhasse o mundo
progressivo do futuro,
uma estética dinâmica
e agressiva.
Daí a defesa de uma autêntica
liberdade da escrita,
com recurso
ao verso livre
e aos atropelos morfo-sintácticos, às metáforas e imagens
arrojadas, um estilo
que destrua o EU,
isto é, toda
a psicologia, na literatura,
voltando-se para o mundo
da técnica, o estilo
da força física,
do mecanismo e da própria
violência. "Queremos na literatura a vida do motor".
(António
Afonso Borregana, Fernando Pessoa e Heterónimos
Texto Editora, 1995, pp.5-6)
Fernando Pessoa ele mesmo
- Em Fernando Pessoa, há uma personalidade poética ativa,
designada de ortónimo, que conserva o nome do seu criador e uma pequena
humanidade, formada por heterónimos, que correspondem a personalidades
distintas.
- No ortónimo,
coexistem duas vertentes: a tradicional, na continuidade do lirismo português,
e a modernista, que se manifesta como processo de rutura. Na primeira, observa-se a
influência da lírica de Garrett ou do sebastianismo e do saudosismo, apresentando
suavidade rítmica e musical, em versos geralmente curtos; na segunda,
encontramos experimentações modernistas com a procura da intelectualização das
sensações e dos sentimentos.
- A poesia, a cujo conjunto Pessoa queria dar o título Cancioneiro, é marcada pelo conflito entre
o pensar e o sentir, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a
consciência-de-si implica.
- Pessoa considera que a arte "é o resultado da
colaboração entre o sentir e o pensar". Daí a sensibilidade a fornecer à
inteligência as emoções para a produção do poema.
- Para exprimir a arte, o autor criativo precisa de
intelectualizar o sentimento, o que pode levar a confundir a elaboração
estética com um ato de "fingimento". O poeta parte da realidade mas
só consegue, com autêntica sinceridade, representar com palavras ou outros
signos o "fingimento", que não é mais do que uma realidade nova.
- O fingimento artístico não impede a sinceridade,
apenas implica o trabalho de representar, de exprimir intelectualmente as
emoções ou o que quer representar (ex.: Autopsicografia).
- O conceito de fingimento é o de transfigurar, pela
imaginação e pela inteligência, aquilo que sente naquilo que escreve. Fingir é
inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que quer
comunicar.
- Entrar no jogo artístico, fingir ao exprimir as
emoções, mas com toda a dimensão da sinceridade, implica e explica a construção
da poesia do ortónimo.
- A dialética da sinceridade/fingimento liga-se à da
consciência/inconsciência e do sentir/pensar.
- Fernando Pessoa não consegue fruir instintivamente
a vida por ser consciente e pela própria efemeridade. Muitas vezes, a
felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência (ex.:
Ela canta pobre ceifeira...).
- Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a
totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está
evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos
poemas intersecionistas Hora Absurda e Chuva Oblíqua.
- O intersecionismo entre o material e o sonho, a
realidade e a idealidade surge como tentativa para encontrar a unidade entre a
experiência sensível e a inteligência.
- O tempo, na poesia pessoana, é um fator de
desagregação, porque tudo é efémero. Isso leva-o a desejar ser criança de novo.
Mas, frequentemente, o passado é um sonho inútil, pois nada se concretizou,
antes se traduziu numa desilusão.
- Pessoa sente a nostalgia da criança que passou ao
lado das alegrias e da ternura. Chora, por isso, uma felicidade passada, para
lá da infância (ex.: Quando era criança, Quando as crianças
brincam...).
- O ortónimo tem uma ascendência simbolista evidente
desde os tempos de Orpheu e do Paulismo (ex.: Impressões do
Crepúsculo).
(in Preparação para o Exame Nacional 2006. Acesso ao Ensino Superior.
Português 12º Ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Editora, 2006, p.
39)
A poesia do Cancioneiro
Em Fernando Pessoa coexistem duas vertentes: a tradicional
e a modernista. Algumas das suas composições seguem a continuidade do
lirismo português (melancolia, sensibilidade, suavidade e linguagem simples),
com marcas do saudosismo; outras iniciam o processo de ruptura, que se
concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas (colaboração com a
revista Orpheu) que vão desde o simbolismo ao paulismo e intersecionismo, no
Pessoa ortónimo.
Vertente tradicionalista:
- preferência pela métrica curta;
- lirismo lusitano (reminiscências de cantigas de embalar, toadas do romanceiro,
contos de fadas);
- gosto pelo popular (uso frequente da quadra);
- versos leves em que recorre frequentemente à interrogação e às reticências.
Vertente modernista:
- irregularidade métrica (heterometria);
- irregularidade estrófica (heterostrofia);
- a criação heteronímica.
Na poesia, a cujo conjunto
Pessoa queria dar o título Cancioneiro, constata-se:
·
um
Pessoa em busca de caminhos poéticos:
via simbolista / paúlica;
interseccionista;
«fingimento» e criação heteronímica (1914);
esoterismo.
·
Pessoa,
lugar da «deserção» do Eu e da consequente perda, narcísica e dramática, de si
e do mundo» – o drama da identidade perdida: «quem me dirá quem sou?».
·
Respostas
possíveis:
- resposta religiosa, metafísica,
esotérica;
- refúgio na noite, no sonho, na música;
- vontade de permuta (ceifeira, gato...).
Nenhuma destas respostas é viável: daí a abdicação.
Uma outra via: o «fingimento»
heteronímico, o «outrar-se»)
- Uma poesia musical
que vive da música das emoções: ritmo, música das ideias, melodia, música das
palavras.
- Um poeta da
nostalgia do Eu, do sentido de perda, do tédio, da náusea, do cansaço, da
estranheza e também:
- da inquietação
perante o enigma do mundo, indecifrável porque opaco;
da solidão interior;
- das contradições pensar/sentir; querer/fazer; esperança/desencanto.
- Com momentos
(breves) de plenitude na infância, na música e no sonho.
Um poeta subjetivo, centrado sobre o Eu (egotismo);
sofrendo a dor de pensar, a distância entre o sonho e a realidade, a
incapacidade de fruir – vivendo sobretudo pela inteligência e pela imaginação.
Quadro síntese sobre o Cancioneiro
de Fernando Pessoa:
Motivos
poéticos / temas
|
Estilo
|
Nível
fónico
|
Nível
morfossintático
e semântico
|
-
nostalgia do Eu, de um bem perdido (tema da
perda);
-
cepticismo;
-
sentimento de saudade;
-
nacionalismo;
-
tédio;
-
náusea;
-
resignação dorida de quem sofre a vida sendo
incapaz de a viver;
-
abdicação, desistência;
-
sentimento do vácuo e da opacidade do real;
-
solidão interior;
-
abulia, fraqueza da vontade;
-
estranheza, perplexidade;
-
dificuldade em distinguir o sonho da
realidade;
-
lucidez e dor de ser lúcido, de pensar;
-
intelectualização de emoções;
-
esoterismo;
-
momentos inefáveis: reminiscências do mundo
fantástico da infância; a música; o sonho.
|
Grande
sentido da musicalidade:
-
versificação regular e tradicional;
-
eufonia dos versos: rimas, ritmo, aliterações,
onomatopeias;
-
transporte ou encadeamento de versos.
|
-
adjectivação expressiva;
-
utilização expressiva de modos e tempos
verbais;
-
uso frequente do presente do indicativo;
-
paralelismos e repetições;
-
comparações;
-
metáforas;
-
uso de símbolos;
-
vocabulário simples (linguagem simples e
espontânea);
-
associações inesperadas (por vezes com desvios
sintácticos);
-
pontuação emotiva (frases exclamativas,
interrogativas e suspensivas);
-
uso frequente de frases nominais;
-
oxímoros (paradoxos).
|
Adaptado de Para Compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais
Porto, Areal Editores, 2001.
Unidade e
diversidade em Fernando Pessoa
[Pergunta] Olá, eu sou um aluno do 12.º ano e gostaria de saber o
essencial sobre os seguintes tópicos da poesia de Fernando Pessoa:
– Tensão sinceridade/fingimento.
– Sentir/pensar.
– Consciência/inconsciência.
– Sonho/realidade.
– A fragmentação do eu.
Obrigado.
José Miguel :: :: Portugal
[Resposta] Não é possível, em
resposta sucinta, dizer o «essencial» sobre tais matérias, quando teríamos de
percorrer o ortónimo, heterónimos e semi-heterónimos (no mínimo, face às
alíneas indicadas, Pessoa ele mesmo, Caeiro, Campos). Perguntas assim, que
pedem um desenvolvimento problematizador, requerem outro espaço, outro tempo,
disponibilidade e hipótese de confronto de argumentos, que aqui não temos.
Aconselho, todavia, clássico entre os clássicos, Jacinto do Prado Coelho,
Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa, na Editorial Verbo (e talvez só em
biblioteca). De forma pedagógica, dá resposta a esses pontos. Da fragmentação
do eu derivam os restantes: sendo de raiz romântica, a dispersão do sujeito tem
causas pessoais, familiares, linguísticas, literárias, institucionais,
nacionais. Conjugadas, e de modo cumulativo, o artista teve de viver em
permanente opção, e, substitutivos ou compensatórios, os heterónimos
significam, ainda, o adiamento do sujeito – na prática, adiado como o país,
político, social e literário, que criticou. Nascem, aí, os itens acima
referidos: mais do que opostos, ou negação, representam o permanente jogo no
fio da navalha de quem afirma e nega, é verdadeiro e falso, sente e pensa, vê e
sonha, tem a lucidez fria desse drama em gente, não moralista, mas irresolúvel,
como é próprio dos oxímoros. Mas esta conversa pediria exemplos, que só cada
leitor sabe encontrar...
Ernesto Rodrigues, http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=9862,
05/12/2001
O fingimento artístico
O fingimento poético é uma nova concepção
de arte. Anti-romântica, despersonalizada, a arte torna-se a expressão das
sensações intelectualizadas, produto de uma forte elaboração mental, sempre em
busca do novo, do ainda não dito e de um mundo melhor. A imaginação ocupa o
papel principal. (in Aula Viva Português 12º Ano, João
Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999)
O poeta recorre à ironia para pôr tudo em
causa, inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a
construção da arte.
Pessoa procura, através da fragmentação
do Eu, a totalidade que lhe permite conciliar o pensar e o sentir. O
interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são
tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência.
Daí a intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que fundamenta o
poeta fingidor (Adaptado de Acesso ao Ensino Superior.
Português 12º Ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Ed.,
2000).
Fernando Pessoa em “Carta a João Gaspar
Simões, a propósito de O Mistério da Poesia”, afirma:
"Nunca senti saudades da infância;
nunca senti, em verdade, saudades de nada. Sou, por índole, e no sentido
directo da palavra, futurista. Não sei ter pessimismo, nem olhar para trás. Que
eu saiba ou repare só a falta de dinheiro (no próprio momento) ou um tempo de
trovoada (enquanto dura) são capazes de me deprimir. Tenho, do passado, somente
saudades de pessoas idas, a quem amei: mas não é saudade do tempo em que as
amei, mas a saudade delas: queria-as vivas hoje, e com a idade que hoje
tivessem, se até hoje tivessem vivido. O mais são atitudes literárias, sentidas
intensamente por instinto dramático, quer as assine Álvaro de Campos, quer as
assine Fernando Pessoa. São suficientemente representadas, no tom e na verdade,
por aquele meu breve poema que começa "Ó sino da minha aldeia"... O
sino da minha aldeia, Gaspar Simões,, é o da Igreja dos Mártires, ali no
Chiado. A aldeia em que nasci foi o Largo de S. Carlos". (in Textos
de Critica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, pp. 181-182.)
A nostalgia da infância
Do
mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Ele,
que foi "criança contente de nada" e que em adolescente aspirou a
tudo, experimenta agora a desagregação do tempo e de tudo. Um profundo
desencanto e a angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem
dos dias. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que
brincam, sente a saudade de uma ternura que lhe passou ao lado. Busca múltiplas
emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba "sem alegria nem
aspiração". Tenta manter vivo o "enigma" e a "visão"
do que foi, restando-lhe a inquietação, a solidão e a ansiedade:
Quando as crianças
brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.
Pessoa,
através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, afirma
que "O meu passado é tudo quanto não consegui ser." Por isso, nada
lhe apetece repetir nem sequer relembrar. O passado pesa "como a realidade
de nada" e o futuro "como a possibilidade de tudo". O tempo é
para ele um factor de desagregação na medida em que tudo é breve, tudo é
efémero. O tempo apaga tudo. "Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem
este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que vir será visto por
olhos recompostos, cheios de uma nova visão."
Frequentemente,
para Fernando Pessoa o passado é um sonho inútil, pois nada se
concretizou, antes se traduziu numa desilusão. Por isso, o constante cepticismo
perante a vida real e de sonho. Daí, também, uma nostalgia do bem perdido, do
mundo fantástico da infância, único momento possível de felicidade.
(in Preparação para o Exame
Nacional 2010. Português 12º Ano, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto
Editora, 2010, pp. 19-20)
A dor de pensar.
Tensões ou dicotomias
que espelham a complexidade interior de Fernando Pessoa.
O
Pessoa ortónimo revela um drama de personalidade que o leva à dispersão, em
relação ao real e a si mesmo, ou lhe provoca fragmentações. Daí a capacidade de
despersonalização (a de ser múltiplo sem deixar de ser um), que leva o ortónimo
a tentar atingir a finalidade da Arte, ou, como afirma, a simplesmente aumentar
a autoconsciência humana. O poeta parte da realidade, mas distancia-se, graças
à interacção entre a razão e a sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra
de arte.
Pessoa procura, através da
fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir.
A fragmentação está evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico
partido, ou nos poemas interseccionistas Hora Absurda e Chuva
Oblíqua. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas,
de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das
paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de
espaços; uma interacção da horizontalidade com a verticalidade. O interseccionismo
entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para
encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. Daí a
intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que fundamenta o poeta
fingidor.
Em
Fernando Pessoa observa-se uma dialéctica da sinceridade/fingimento que se liga
à consciência/inconsciência e do sentir/pensar. Há assim uma concepção dinâmica
da realidade poética que, pela união de contrários, permite criar linguagens e
realidades em si diferentes da linguagem do artista e da sua vida, ao mesmo
tempo que patrocina ao leitor objectos de identificação e valores que se
universalizam e adquirem intemporalidade.
A
crítica da sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente neste movimento
de oposições que leva pessoa a afirmar que «fingir é conhecer-se». O poeta
considera que a criação artística implica concepção de novas relações
significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido
como acto de fingimento ou de mentira. Artisticamente, considera que a mentira
«é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como os servimos de
palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem
real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento
(que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir), assim nos servimos
da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a
verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.» (in «Livro
do Desassossego», Bernardo Soares-Fernando Pessoa) (Moreira: 2000)
Tensão sinceridade / fingimento:
intelectualização
dos sentimentos para elaboração da arte;
acto poético como representação;
fingimento como elaboração mental de conceitos;
despersonalização do poeta fingidor.
|
Poemas exemplificativos:
«Autopsicografia»
«Isto»
«Tudo o que faço ou medito»
|
Tensão sentir/pensar:
fragmentação
do eu;
intelectualização dos sentimentos.
Tensão consciência/inconsciência:
ser
múltiplo;
despersonalização do poeta;
intelectualização dos sentimentos.
|
«Ela canta, pobre ceifeira»
«O sino da minha aldeia»
«Liberdade»
«Abdicação»
«Meu coração é um pórtico partido»
«Gato que brincas na rua»
«Leve, breve, suave»
«Tudo o que faço ou medito»
«Quando as crianças brincam»
|
A desagregação do tempo:
a
transitoriedade da vida;
a nostalgia da infância.
|
«O menino de sua mãe»
«Não sei, ama, onde era»
«Quando as crianças brincam»
|
Adaptado de Dossier Exame | Português
B | 12º Ano
Mª José Peixoto e Célia Fonseca, Lx, Asa, 2001.
O simbolismo metafórico
Na obra de Pessoa
o amor surge como a grande impossibilidade, a morte como a grande obsessão.
Para Fernando
Pessoa, a vida não existe, o que existe é a via e a transformação.
Encontra-se desde
os tempos mais antigos uma simbólica da água que é criadora, fecundante,
transformadora do ser e neste sentido voltada naturalmente para o bem.
A água primordial
é apresentada como a «mãe que gera o céu e a terra, como uma totalidade ao mesmo
tempo cósmica e divina», em muitas cosmogonias arcaicas.
A meditação da
água pode conduzir à meditação das origens e a uma ideia de Uno harmonioso, não
dividido, positivo por assim dizer.
No entanto, em
Fernando Pessoa, a meditação da água tem um carácter negativo, na medida em que
não conduz a uma visão feliz, harmoniosa da vida, mas antes a uma imaginação da
ausência, do vazio que prefigura a morte.
O simbolismo da
água em Fernando Pessoa, modifica-se e é diferente do que tinha sido
tradicionalmente para os Portugueses.
Paralelamente a
Camões, Fernando Pessoa faz referência ao mar como fluir de amargura – Mar Português – Mensagem: «Ó mar salgado,
quanto do teu sal! / São lágrimas de Portugal!»
Mas
essencialmente o mar, espelho do céu é o reflexo do além, do desconhecido –
esta novidade de sensações (esta busca) tem para Pessoa um efeito semelhante ao
da explosão do eu que também se encontra em Rimbaud – lugar de dissolução onde
o real se desfaz e deixa de se ver, onde a identidade se perde fragmentada
definitivamente.
Fernando Pessoa
afirma muitas vezes que não sabe quem é, nem que alma tem.
«Não sei quem
sou, que alma tenho […], sou
variamente outro do que um eu que não existe. Sinto-me múltiplo. Sou o quarto
com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única
anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas». E continua:
«Sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os […] por uma suma de não-eus sintetizados num
eu postiço.» (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação).
Esta ausência de
um eu que se deseja uno, esta consciência de um eu em permanente mudança, que
se interroga mas não se fixa, é a base do génio criador de Pessoa, bem como da angústia
profunda que lhe mina a vida.
«O autor humano
destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma».
Proclama-se
escravo da sua multiplicidade.
Primeiro Alberto
Caeiro, depois Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Pessoa não quer reconhecer
entre eles qualquer identidade e muito menos entre eles e si próprio.
Contudo, a
identidade existe e o simbolismo da água nestes poetas e nos seus poemas
permite descobri-la – através da leitura dos poemas vem ao de cima uma
identidade profunda em que se reconhece a identidade que quem os escreveu.
A água, nos
poemas dos heterónimos e no de Fernando Pessoa ele mesmo, traz sempre consigo
imagens de um eu que se sente morto.
Em Caeiro as
coisas não têm sentido, têm apenas existência – o movimento interior do poeta,
embora tranquilo, não o conduz à unidade, mas à diversidade e fragmentação.
Em Ricardo Reis,
tal como o seu Mestre Caeiro, a experiência da água é pacífica, sem a angústia
que se detecta nos poemas de Fernando Pessoa ou de Álvaro de Campos; no entanto,
a ausência, o vazio, enquanto participação no ser, essência e existência.
Não viver,
participando, mas seguir como espectador tranquilo. A imobilidade, a
não-integração, a contemplação puramente exterior – a alma, em suma, é também
apreendida na água dos «rios calmos».
A água na poesia
de Ricardo Reis, apaga todo o desejo de aniquilamento, manifesta-se de modo
muito mais intenso – a sua linguagem não é contida como a dos outros
heterónimos, explode numa torrente de sensações que o conduzem em direcção ao
ponto mais exterior de si mesmo, onde se perde. A noite exerce um grande
fascínio neste poeta.
O amor
desencadeia, ainda mais do que a noite um percurso psíquico dissolvente do qual
é sempre difícil, senão impossível recuperar-se – Ode Marítima, dá imagens de morte antegozada,
aniquilação, consciência, e sem controlo. Morte é Mar. Não existe a totalidade
restaurada, não há reposição do cosmos, a partir de um caos inicial ou
iniciático.
Para Álvaro
Campos, a água é sempre dissolvente e só confirma o vazio, a total falta de
sentido da existência.
O simbolismo
geral da água como elemento negativo é uma constante na obra do poeta.
A água é para ele
o reflexo de um vazio.
O simbolismo cósmico do mar
A poesia de
Fernando Pessoa apela constantemente a um elemento líquido – a água.
Chamam
por mim as águas
Chamam por mim os mares
(Álvaro de Campos)
Jacinto Prado
Coelho afirma que «o tema do fluir do tempo, expresso normalmente pelo símbolo
do rio, é comum a Caeiro, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.»
Esta temática é
também uma constante noutros poetas.
Na obra de
Fernando Pessoa, aparecem, frequentemente, os rios que trazem a marca da
consciência, da razão, da vida. [A imagem do rio domina o poema que começa assim: «Entre o
sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho, / Corre um
rio sem fim.» O rio tem margens, separa, divide. A situação é inalterável
porque o «rio corre sem fim». Além disso, o rio transporta água, símbolo quer
da vida quer do fluir da existência.]
«O pensamento de
Pessoa, com sua sucessão constante de juízos, tem a fluência e a profundidade
do rio com que ele o identifica, no subterrâneo de que se desconhecem a foz e a
nascente (Canc.71), mas que no seu curso traz vozes de tempos antigos e que vai
desembocar num além que o poeta perde».
Projecta-se,
multiplicando-se, através da realização de tudo no mar – é um projecção ao
nível cósmico, centralizando o seu credo futurista no mar.
A fluidez do
devir identifica-se com a dinâmica do mar – a violência e a cólera, a calma e a
serenidade, correspondem ao seu querer inconsciente.
O mar encerra um
profundo sentido mítico, numa busca de Absoluto – é um mar-arquétipo – «O
Grande Cais Anterior, eterno e divino» (Campos).
Dos quatro
elementos naturais da filosofia clássica, a água é aquele que o poeta vai
eleger para a definição do contingente da vida e do Absoluto dos sonhos.
O mar é o
elemento obscuro, onde o poeta dissolve a realização humana: «uma das faces da
pirâmide da poética do mar é preenchida exactamente pela ideia de travessia que
o homem empreende entre o nascer e o morrer»
A água, como
categoria vital, é o ponto de passagem para o estado anterior, de graça, no
ventre materno, transcendendo-o, limitando-o e conduzindo-o no tempo.
A água assume uma
função duplamente vital: é por um lado um símbolo materno essencial à natureza
e à vida, e por outro lado é o embrião humano de onde toda a vida saiu ‑ é um
lugar cósmico, anónimo. Jung vê nele o símbolo do «inconsciente colectivo»
aquilo que para Pessoa «é o Cais absoluto por cujo modelo inconscientemente
imitado» (Álvaro de Campos) ou o «Porto de todos os portos» (Cancioneiro)
A água, como
afirma Bachelard " é um símbolo materno, pelo seu movimento rítmico, que
embala, que sentimentalmente nos transporta para as origens", para as
estruturas arcaicas pré-uterinas.
O mar é, como
símbolo de fluidez e força, violência e ternura, o dilema constante da alma,
que transparece em toda a poesia pessoana – o eterno dilema entre o
inconsciente, vivido e experimentado e se reverte em espectáculo inconsciente.
A mulher
Fernando Pessoa
procura na mulher que ama «a outra» (1935, «A outra») – através da mulher o que
deseja é outra coisa. Nas
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação assume que sempre preferiu
ser amado a amar – revela uma passividade face à impossibilidade de amar. Quer
a mulher para o sonho e não para o amor.
O amor oprime e
ele deseja ser livre.
Na Ode Marítima,
há um percurso das imagens do mar às da mulher subjugada pela violência –
desejo do mar, desejo da morte, desejo da mulher (a mulher que ele sonha é uma
mulher a destruir).
Os dados
simbólicos que a água, a morte, a mulher inexistente nos fornecem são mais
fáceis de compreender à luz de alguns dados biográficos.
Em Pessoa tudo é
pulsão das águas maternas, a obsessão da águas originais, que são as da mãe.
Assim se explica
a impossibilidade de amar normalmente uma mulher, a necessidade de voltar a
recuperar o mundo de infância e o estado pré-natal de que nos fala em Anamésis – é um percurso
regressivo.
Da sua
pluralidade poética, encontra Pessoa inúmeras outras imagens e metáforas.
Como metáforas,
aliás, se apresentam os próprios heterónimos.
Eu,
que tantas vezes me sinto tão real
como uma metáfora
A emoção ontológica da noite
O ar é, como
símbolo, o elemento material fundamental para a concretização do destino de
ascensão espiritual.
O ar (etéreo e
desprovido de forma) significa a libertação do mundo e si próprio, num processo
de catarse (purga) que facilmente se encontra na fluência da linguagem poética
, mas que é sobretudo visível na noite.
«Noite é das
palavras mágicas que o léxico português contém não só pelo poder sugestivo da
sua componente fónica, a que a dolência do ditongo oi não é
alheia, como também pela ambivalência sui generis da sua carga
semântica.»
Na poética de
Fernando Pessoa os mais altos momentos de lirismo são aqueles em que o poeta
canta a noite pela elevação, pela fusão subjectiva (irreal) e objectiva (real):
a noite é o «ponto de partida para o sonho» , para a emoção poética, para o
«acordar do pensamento, para a esperança». Noite enigma (Mensagem, 21,41), mas noite
libertação.
É pela noite que
ultrapassa o real e em Álvaro de Campos atinge a maior plenitude na
objectivação deste mito.
Vem
Noite, antiquíssima e idêntica
Noite Rainha, nascida destronada
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito
Segundo Isabel
Vaz, «sugere a imagem da noite pacificadora e protectora, identificando-a com o
manto de Nossa Senhora, capaz de abarcar o Infinito.»
«A noite realiza
o unidade em que o real e o irreal não se distinguem, porque tudo perde as
arestas e as cores».
Sendo o espaço
privilegiado do sonho, oferece um mundo onírico propício à transcendência.
Se por um lado a
noite se reveste de um espaço de plenitude e um sentimento de vida (em função
de uma necessidade inconsciente), ela é, também, como a água, um princípio de
morte – nascimento e morte; vida e destruição – ser e não-ser.
«To be or not to be. This is the question»
A noite é braço
tutelar, que protege na ausência de movimento: «Mão suave e antiga das emoções
sem gesto» (Campos 442)
Pela projecção no
ar infinito, onde se apagam as formas, a noite como metáfora de
desmaterialização, anula a dimensão da matéria e proporciona uma sublimação
íntima.
Na sua linguagem
imagética, transubstancia-se e liberta-se pela atitude imaginária que o conduz
a um universo lírico, gradualmente, num processo vertical de libertação.
O ar, porque
materializa os outros elementos fluidos, é juntamente com a noite (quase
confunde como o seu ser), o símbolo da libertação da matéria , para a estância
do infinito, do Nada.
«Não estou
pensando em nada e isso é-me agradável como o ar da noite» (Camp.505) – é o
movimento inconcreto de uma «alma vazia/que paira na orla do ar», é a forma de
vivenciar a realidade do seu sujeito, como extensão subjectiva.
Através da poesia
da noite, as imagens são os caminhos de sonho vivido em espírito, descrevendo
trajectórias de movimentos da alma à alma inteira, num perpétuo movimento de
exaltações líricas.
«E neste estado
de espírito encontro-me a compor um soneto – acabei-o uns passos antes de
chegar ao portão de minha casa – , a compor um soneto de uma tristeza suave,
calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto não é só
calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito.
O fenómeno curioso do desdobramento é cousa que habitualmente tenho, mas nunca
o tinha sentido neste grau de intensidade».
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... Eu sou um Rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei,
E meu ceptro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas dum tinir tão fútil –
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a Realeza, corpo e alma,
E regressei à Noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
A noite é aqui
vista como um refúgio, como uma metamorfose de si.
Como diz Jorge de
Sena «A noite que poeticamente sentiu, como raríssimos poetas portugueses, com
uma diversidade e uma profundidade que a solidão lhe ensinou, foi o seu grande
refúgio».
Ana Cláudia Moutinho e Áurea Ramos, “O
Simbolismo Metafórico” in Hipermedia
Pessoano,
http://www.ufp.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=189%3Ahipermedia-pessoano-o-simbolismo-metaforico&catid=21%3Auniversidade&Itemid=68
(consultado em 2011-12-02)
Avalie os seus conhecimentos acerca da vida e
obra de Fernando Pessoa ortónimo.
1.
Identifique as afirmações verdadeiras e as falsas, convertendo estas últimas em verdadeiras.
1.1.
Fernando Pessoa recebeu uma educação
fundamentalmente inglesa. V|F
1.2.
A perda da mãe, quando
criança, influenciou a afectividade do poeta. V|F
1.3.
A infância deste
foi vivida na companhia de alguns heterónimos. V|F
1.4.
O movimento artístico,
divulgado na revista literária Orpheu, inaugurado pela geração de
Fernando Pessoa, designa-se Simbolismo. V|F
1.5.
Antes do Orpheu, Fernando
Pessoa mantivera-se distante da participação em revistas literárias. V|F
1.6.
O ano de 1914 é um marco
importante na obra pessoana: dá-se a explosão heteronímica. V|F
1.7.
O Modernismo representa a
inquietude de uma geração. V|F
1.8.
A poesia do Orpheu é
caracterizada pela alucinação, pelo choque e pela irreverência,
factores que cativaram as grandes elites da época. V|F
1.9.
O futurismo implementa-se na
Europa, como movimento estético revolucionário, com o escritor italiano
Tommaso Marinetti. V|F
1.10. O futurismo
pretende dar continuidade às tradições, verificando-se, a nível literário, o
respeito pela ordem sintáctica e pela pontuação. V|F
1.11. A morte do
companheiro de geração e amigo, Mário de Sá-Carneiro, marcou Pessoa
profundamente. V|F
1.12. O poeta concilia frequentemente o sentir com o
pensar. V|F
1.13. A obra poética de
Fernando Pessoa reflecte vivências do seu passado. V|F
1.14. O sonho e a
realidade cruzam-se em algumas das suas composições poéticas. V|F
1.15. Fernando Pessoa
revela-se um poeta que transmite uma solidão interior, traduzida nos sentimentos de tédio e melancolia. V|F
1.16. Fernando Pessoa
manifesta dificuldade em lidar com os afectos. V|F
1.17. A constatação de uma
realidade fugaz faz do poeta um ser lutador. V|F
1.18. A teoria do fingimento
poético
consiste em representar as emoções de modo abstracto. V|F
1.19. Fernando Pessoa
recorre frequentemente a alguns símbolos para representar algumas
realidades. V|F
1.20. O fingimento poético deve ser visto como uma mentira e não como a intelectualização das
emoções. V|F
1.21. A busca
incessante de autoconhecimento leva à fragmentação do "eu". V|F
1.22.A constante racionalização do sentir
faz do ortónimo um ser feliz. V|F
2.
Complete as frases que se seguem.
2.1.
"Autopsicografia" e "Isto" são os poemas
de Pessoa mais exemplificativos da teoria do _______
poético.
2.2.
O poema _______
representa nitidamente o sofrimento do "eu" poético pelo
facto de estar consciente.
2.3.
A dor de pensar é visível em poemas como _________
e _________.
2.4. O anti-sentimentalismo
do poeta afirma-se essencialmente na composição poética intitulada _________.
2.5. A saudade da infância é um
tema recorrente na poesia de Pessoa ortónimo, como documentam os poemas _________ e _________.
(in Das
Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 12º Ano, Ana Maria Cardoso, Célia
Fonseca, Maria José Peixoto, Vítor Oliveira, Porto, Edições Asa, 2005, p. 65)
Correção
da ficha de aferição sobre Fernando Pessoa ortónimo
1.1. V
1.2. F ("A perda do pai...").
1.3. V
1.4. F ("... Modernismo").
1.5. F ("... Fernando Pessoa já participara
em revistas literárias como A Águia").
1.6. V
1.7. V
1.8.
F ("... fatores que chocaram as grandes elites da época.").
1.9. V
1.10.
F ("O futurismo pretende romper com...").
1.11. V
1.12. F ("O poeta não consegue conciliar o sentir com o pensar.").
1.13. V
1.14. V
1.15. V
1.16. V
1.17.
F ("... um ser sofredor/angustiado.").
1.18. V
1.19. V
1.20. F ("O fingimento poético não deve ser visto como uma mentira, mas sim como a inteletualização das emoções.")
1.21. V
1.22.
F ("... um ser angustiado.").
2.1. ... fingimento.
2.2. ... "Ela canta, pobre ceifeira".
2.3. "Ela canta, pobre
ceifeira," / "Não sei, ama onde era"...
2.4. "Isto"
2.5. "Não sei, ama, onde era" / "O sino da
minha aldeia".
Leitura orientada e notas para a análise
literária de poemas de Fernando Pessoa ortónimo:
Poema
|
Incipit
|
A criança que fui chora na
estrada
|
A criança que fui chora na estrada.
|
Abdicação
|
Toma-me, ó noite eterna, nos teus
braços
|
Ah, que maçada o piano
|
Ah, que maçada o piano
|
Ai, os pratos de arroz-doce
|
Ai, os pratos de arroz-doce
|
Às vezes, em sonho triste
|
Às vezes, em sonho triste
|
Autopsicografia
|
O poeta é um fingidor
|
Bem sei que há ilhas lá ao sul
de tudo
|
Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo
|
Boiam leves, desatentos,
|
Boiam leves, desatentos,
|
Cada palavra dita é a voz de
um morto
|
Cada palavra dita é a voz de um morto
|
Ela canta, pobre ceifeira
|
Ela canta, pobre ceifeira
|
Em toda a noite o sono não
veio
|
Em toda a noite o sono não veio
|
Fado da Censura
|
Neste campo da Política
|
Hora Absurda
|
O teu silêncio é uma nau com todas as
velas pandas...
|
Isto
|
Dizem que finjo ou minto
|
Mar. Manhã
|
Mar. Manhã,
|
Maravilha-te, memória!
|
Maravilha-te, memória!
|
Não sei. Falta-me um sentido,
um tato
|
Não sei. Falta-me um sentido, um tato
|
Névoa
|
A névoa involve a montanha,
|
O amor, quando se revela,
|
O amor, quando se revela,
|
O Andaime
|
O tempo que eu hei sonhado
|
O menino da sua mãe
|
No plaino abandonado
|
Se estou só, quero não estar
|
Se estou só, quero não estar
|
Tenho tanto sentimento
|
Tenho tanto sentimento
|
Tudo o que faço ou medito
|
Tudo o que faço ou medito
|
|
|
Aferição de leitura – o Modernismo e Fernando Pessoa ortónimo. Aqui.
CARREIRO, José. Fernando
Pessoa (ortónimo). Portugal, Folha de Poesia, 05-05-2018.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-ortonimo.html
(1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no
Mundo, 16-12-2011. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/FP_ortonimo.htm)