Boiam leves,
desatentos,
Meus
pensamentos de mágoa
Como, no sono
dos ventos,
As algas,
cabelos lentos
Do corpo morto
das águas.
Boiam como
folhas mortas
À tona de águas
paradas.
São coisas
vestindo nadas,
Pós remoinhando
nas portas
Das casas
abandonadas.
Sono de ser,
sem remédio,
Vestígio do que
não foi,
Leve mágoa,
breve tédio,
Não sei se para,
se flui;
Não sei se
existe ou se dói.
4-8-1930
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota
explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942
(15ª ed. 1995). - 120.
Tema: Tédio. Absurdo.
O poema apresenta um conjunto de elementos que sugerem indefinição
e estagnação, estados que provocam o tédio e o cansaço de viver: Bóiam,
desatentos (1), sono (3), corpo morto (5), folhas mortas (6), águas paradas (7),
nadas (8), tédio (14)...
O auge do estado de indefinição é atingido nos dois últimos
versos.
Podemos organizar conjuntos semânticos que nos ajudam a
compreender a mensagem do texto:
O mundo do Eu |
Vida |
Não vida |
A vida |
A vida do Eu |
· Eu – meus pensamentos de
mágoa (v. 2) |
· Meus pensamentos de mágoa
(v.2) |
· Bóiam (v.1)
|
· a água (símbolo de vida)
(vv. 5, 7) |
· Um lago (corpo morto das
águas paradas) (v.5,7) |
· eu – uma entre as algas
(v.4) · eu– uma entre as folhas
mortas (v. 7) · coisas (v. 9) · pós (v.10) |
· vento (v.3) · folhas (v.6) · águas (v.7) · coisas (v.8) · remoinhando (v.9) · casas (v.10) |
· sono (v.3) · mortas (v.6) · paradas (v.7) · nadas (v.8) · pós (v.9) · abandonadas (v.10) |
· a casa (símbolo da vida:
portas que se abrem...) (v.10) · pó remoinhando (9), que se
limpa |
· uma casa abandonada (v.10)
· pó acumulado (v.10) |
Há uma progressão na
construção metafórica: da comparação (vv. 1-7) dos elementos com o Eu passa-se
à metáfora (vv. 8-11), isto é, salta-se para a identificação do Eu com os
elementos – o nada, o pó, o não-ser.
Oxímoros: v. 8, vestindo nadas (=vida/não vida); v.
9, pós remoinhando (=não-vida/vida)
O verso 11 é um verso-chave, por dar conta do fatalismo de
não ser o que pretendeu ser.
Discurso de extraordinária musicalidade. São seguintes os
elementos que concorrem para a eufonia:
-
Rima externa e interna: desatentos/pensamentos/ventos/lentos;
-
Transporte dos versos 4-5;
-
Aliteração causada pela abundância de sibilantes;
-
Diversidade dos acentos rítmicos: 1ª, 3ª e 7ª; 4ª e 7ª;
4ª e 7ª; 2ª, 5ª e 7ª; 2ª, 5ª e 7ª; 2ª e 7ª...
-
Predomínio das vogais fechadas e/ou nasais.
(Adaptado de: Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999)
II - Elabore um comentário global do texto que acabou de ler, focando os seguintes tópicos:
- marcas de objetividade/subjetividade na expressão lírica do Eu;
- campos semânticos da fragmentação e do negativismo;
- recursos estilísticos e sua expressividade;
- construção da musicalidade;
- marcas características da poesia ortónima pessoana.
Sugestões para a prossecução dos objetivos
da leitura
(Nota: Estas sugestões não invalidam que se
aceitem outras perspetivas, quando corretas e adequadas à questão em causa.)
Integrados
no comentário global do texto, devem ser focados os seguintes tópicos:
- Marcas de subjetividade/objetividade na expressão lírica do Eu
- presença do "eu" na primeira pessoa pronominal e verbal;
- objetivação dos "pensamentos" como sujeito de 3.a pessoa;
- visualização do mundo subjetivo dos sentimentos ("mágoa", "tédio"), exteriorizado pelas imagens;
- desdobramento do Eu em sujeito e objeto ("Não sei".../ ..."coisas"...; ..."pós"...);
- reificação do mundo interior ("São coisas").
- Campos semânticos da fragmentação e do negativismo
- a relativização, a fragmentação dos "pensamentos de mágoa" estão presentes em: leves, algas, cabelos, folhas, pós, remoinhando;
- o negativismo está presente em: morto, mortas, paradas, nadas, abandonadas, sem remédio.
- Recursos estilísticos e sua expressividade
- adjetivação expressiva;
- comparação;
- metáfora;
- oxímoro;
- imagens;
- repetições, paralelismos…
……………
(Deve
ser comentado o efeito de intensificação expressiva dos recursos apontados.)
- Construção da musicalidade
- a componente musical, que faz parte do fluir dolente da expressão poética dos vagos sentimentos de mágoa e tédio, é construída, por exemplo:
. pelas aliterações (em /l/ v. 4; em /s/ vv. 11, 14, 15);
. pelas assonâncias (vogais nasais nos vv. 1, 2, 3);
. pelo paralelismo anafórico (vv. 14, 15);
. pelo ritmo da estrofe (sempre a quintilha), da métrica (sempre o verso de 7 sílabas), da rima;
. pelo ritmo das estruturas frásica e discursiva (nas 1.a e 3.a estrofes a frase prolonga-se por toda a estrofe).
- Marcas características da poesia ortónima pessoana
- os elementos aquáticos da simbólica pessoana;
- o cruzamento do sentir e do pensar;
- o oxímoro;
- a simplicidade formal;
- a sugestão poética simbolista.
(Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Dec.-Lei nº
286/89, de 29 de agosto). Curso Geral – Agrupamento 4. Prova Escrita de Português A nº 138 e respetivos critérios de classificação. Portugal, GAVE [IAVE], 1997,
1.ª fase, 2.ª chamada)
III –
Comentário de texto
Tópicos de aplicação: |
Exemplo de comentário de texto: |
|
Este poema, pertencente a
Fernando Pessoa ortónimo, está relacionado com a vertente neogarrettiana, uma
vez que está inserido no Cancioneiro e faz lembrar as cantigas de
embalar e a nostalgia que caracterizou uma parte da produção poética
pessoana. |
- Estado de espírito do sujeito poético |
No texto apresentado, o
sujeito poético encontra-se perplexo, indeciso, algo confuso e magoado, descontente
com a vida, dando-nos dela uma visão negativa. |
- Marcas de objetividade/ subjetividade |
A subjetividade do eu-lírico
é visível nas marcas de primeira pessoa ("Meus pensamentos";
"Não sei"), na forma como visualiza o mundo exterior, vendo nele o
que de mais triste tem, nos sentimentos de tédio e mágoa que o expressam, no
facto de ele próprio se desdobrar em sujeito e objeto (os seus pensamentos transformam-se
em "coisas", em "pós"). Contudo, é possível detetar-se uma
passagem do subjetivo ao objetivo, atendendo a que ele próprio objetiva os
pensamentos, usando a terceira pessoa, e coisifica-os, isto é, tenta
concretizar algo de abstrato, de modo a conferir maior exatidão ao seu estado
de espírito. |
- Campos semânticos da fragmentação e
do negativismo |
Através da tentativa em
caracterizar de forma objetiva o que vai no seu íntimo, o sujeito poético
acaba por se retratar como alguém que se sente dividido, fragmentado, quando
compara os seus pensamentos a "algas", a "cabelos lentos",
a “folhas", a "pós remoinhando", o que significa que ele relativiza
o que lhe vai na alma, isto é, tenta desmistificar, simplificar a
complexidade dos seus pensamentos, identificando-os com fenómenos que ocorrem
na natureza. Apesar disso, essa relativização é mais aparente que concreta,
dado que o vocabulário de cariz negativo sugere, de imediato, um estado de
espírito conturbado e perplexo, que praticamente se anula quando afirma que
os seus pensamentos são como "As algas, cabelos lentos/ Do corpo manadas
águas", ou "folhas mortas", "águas paradas" / "coisas
vestindo nadas", "casas abandonadas", "sem remédio".
Como se pode constatar, há em todos estes termos uma forte sensação de mágoa,
de dor, de tristeza que se costuma detetar na poesia do ortónimo. |
- Recursos estilísticos e sua
expressividade |
Para expressar a forma
como se sente ou vê os seus pensamentos, o "eu" poético vai
servir-se de um conjunto de recursos estilísticos, destacando-se a comparação,
presente nas duas primeiras quintilhas ("Como, no sono dos ventos";
"... como folhas mortas"), pela qual tenta concretizar o abstrato,
ou fazer percecionar, através de diferentes sugestões, o modo como interpreta
os seus pensamentos. A complexidade do seu ser é de tal forma latente que são
feitas várias afirmações, que encerram algumas metáforas, e cujo objetivo continua
a ser o que esteve subjacente ao emprego da comparação. Quando afirma que os pensamentos
"são coisas vestindo nadas / Pós remoinhando nas portas / Das casas
abandonadas", está, novamente, a tentar descodificar o modo como se
sente, e em particular, como considera os pensamentos. Encontram-se ainda
algumas reflexões de tipo antitético, como por exemplo "vestígio do
"não foi", "Não sei se para, se flui", que traduzem
indefinição, dúvida, e que são reforçadas pelo paralelismo anafórico da
expressão "Não sei se", que remete, simultaneamente, para a
permanência desse estado de espírito. Para além dos recursos assinalados, há
ainda a aliteração em "l" no verso 4 e em "s" nos versos
11, 14, e 15, que sugerem o tédio e a inquietação, respetivamente. |
- Marcas da poesia do ortónimo |
O conjunto de processos estilísticos
presentes, e já assinalados, está correlacionado com a poesia pessoana,
principalmente pelo carácter antitético que enforma o texto e que remete para
o pensamento dicotómico que o caracteriza e que é percetível na dualidade entre
o sentir e o pensar, que o poeta traduz pela passagem do subjetivo ao objetivo.
O domínio do simbólico é também aqui largamente utilizado e coaduna-se com a
formação simbolista do autor e que ele expressa por metáforas e imagens
sugestivas. Para além das
características temáticas ou de conteúdo apontadas, também se destaca, a
nível formal, a simplicidade estrófica e métrica, pelo uso de quintilhas em
redondilha maior, que remetem para a lírica tradicional, e revitalizada por
Garrett, autor que Pessoa leu e que muito o influenciou. |
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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018.
- Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Boiam leves, desatentos,
meus pensamentos de mágoa (Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 07-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/boiam-leves-desatentos-meus-pensamentos.html
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