Sophia na Assembleia Constituinte |
CANTAR
Tão longo caminho
Quanto passo andado
E todas as portas
Encontrou fechadas
Tão longo o caminho
Como vai sozinho
Sua sombra errante
Desenha as paredes
Sob o sol a pino
Sob as luas verdes
A água de exílio
É brilhante e fria
Por estradas brancas
Ou por negras ruas
Quanto passo andado
Por amor da terra
País ocupado
Onde o medo impera
Num quarto fechado
As portas se fecham
Os olhos se fecham
Fecham-se janelas
As bocas se calam
Os gestos se escondem
Quando ele pergunta
Ninguém lhe responde
Só insultos colhe
Solidão vindima
O rosto lhe viram
E não querem vê-lo
Seu longo combate
Encontra silêncio
Silêncio daqueles
Que em sombras tornados
Em monstros se tornam
Naquela cidade
Tão poucos os homens
Sophia de Mello Breyner Andresen
LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.
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A Poética Musical de Sophia
“Cantar” expressa-se, estruturalmente, como um poema longo, sem estrofes, que se assemelha ao significado de “tão longo caminho” (vv. 1; 5). A forma do poema é bastante expressiva, delineando um contorno peculiar com a alternância de colunas, parecendo uma forma binária, constituída com duas seções, mas também pode ser interpretado como uma canção a duas vozes, numa espécie de pergunta-resposta para as situações cotidianas da voz poética. Essa forma de organização dos versos deixa o andamento do poema bastante vivo, manifestando-se, inclusive, em uma forma específica para traduzir os passos do Sujeito lírico durante essa caminhada (vv. 1; 5).
Nesse sentido, o texto de Sophia Andresen se aproxima da ideia de marcha, um estilo musical que é escrito originalmente para marchar, o que, neste caso, tem o sentido de marchar pela libertação de um “país ocupado/ onde o medo impera” (vv. 17-18), dado que se estabelece em relação a época da sua publicação. […]
No nível semântico, a voz poética canta a cena do seu “tão longo caminho” (v. 1), contando que alguém “encontrou” (v. 4) as portas das casas fechadas, provavelmente, controladas por uma rigorosa norma de segurança, típica, por sinal, dos regimes totalitários. O sujeito lírico continua contando, através da sua canção, que, por parte da Ditadura, em um contexto de ordem pública e de poder vigente, o caminho estava vazio, demonstrando estar preocupado em entender a situação do outro: “Como vai sozinho/ Sua sombra errante/ Desenha as paredes” (vv. 4-8).
A visão de um mundo modificado, possivelmente, por uma forte intervenção politicamente subversiva é representada no texto através de vários elementos, dentre eles: “Sob o sol a pino/ Sob as luas verdes/ A água de exílio/ É brilhante e fria (vv. 9-12). Em “Por estradas brancas/ Ou por negras ruas/ Quanto passo andado/ Por amor da terra” (vv. 13-16), o cantor faz uma alusão aos exilados e perseguidos, por meio das cores, revelando rejeição à situação política do país, para mostrar a existência de uma luta ideológica contra o discurso oficial, acentuando a ideia de um “País ocupado/ Onde o medo impera” (vv. 17-18).
Nos versos seguintes, o Eu lírico vai narrar a ação da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado): “Num quarto fechado/ As portas se fecham/ Os olhos se fecham/ Fecham-se janelas” (vv. 19-22). Em seguida, ele transmite a experiência de um possível interrogatório: “As bocas se calam/ Os gestos se escondem/ Quando ele pergunta/ Ninguém responde” (vv. 23-26); e acrescenta a reação desse episódio, em que “Só insultos colhe/ Solidão vindima/ Rosto lhe viram/ E não querem vê-lo” (vv. 27-30). A voz lírica canta que agora a batalha é longa, pois almeja desvendar as ações que tornam as pessoas monstruosas: “Seu longo combate/ Encontra silêncio/ Silêncio daqueles/ Que em sombras tornados/ Em monstros se tornam” (vv. 31-34). No final do poema, o Eu poético certamente afirma o resultado da intervenção política: “Naquela cidade/ Tão poucos homens” (vv. 35-36).
O ato de cantar reforça tudo aquilo que a voz poética quer revelar ao mundo, a fim de cumprir seu papel na sociedade. Ordena suas experiências, para retornar ao movimento que transforma a fala em canto, assim como a escritora organiza suas sílabas, com temas e tensões melódicas.
Karoline Pereira, A Poética Musical de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021
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Entrega da condecoração por Mário Soares a Sophia Andresen.© Arquivo DN |
A poesia e a política
[…] a corrupção moral e política, a violência e a manipulação ideológica fazem de Portugal, em Grades, um “país ocupado”. Essa imagem é a base do poema “Cantar”.
Publicado originalmente em Livro Sexto, último texto da secção “As Grades”, o poema é composto por 37 versos, dispostos de uma maneira que, logo em um primeiro momento, leva a um estranhamento e a uma questão: haveria um modo correto de o ler? Os versos estão dispostos em duas colunas: a esquerda conta com dezanove versos, e a direita, com dezoito. Elas não estão, no entanto, dispostas uma ao lado da outra em uma reta: a coluna menor aparece um pouco abaixo da maior, o que visualmente provoca uma rutura entre os versos. Como as linhas não aparecem em espaços equivalentes, o leitor é levado a uma experiência distinta: é possível ler o poema por colunas ou fazer a leitura como um caminho: do verso primeiro da esquerda ao primeiro da direita e assim por diante, em uma espécie de descida em ziguezague.
O poema, metricamente, é composto por versos em redondilha menor. O primeiro verso – disposto na coluna da esquerda – tem seu sentido continuado no primeiro da coluna direita. Essa é a dinâmica da leitura que aqui é proposta, uma vez que o texto é elaborado a partir de suas frases curtas, ligadas em grande parte por preposições e pronomes. Pela sintaxe, observam-se, primeiramente, períodos fragmentados pela divisão espacial do poema.
A exemplo temos os quatro primeiros versos (dois da esquerda, dois da direita) que compõem um período completo com apenas um verbo conjugado: “Tão longo caminho / Quanto passo andado / E todas as portas / Encontrou fechadas”. Assim, se imaginarmos um ponto final, teríamos um período completo, formado por uma única oração. Essa ligação entre os versos é possível e constrói um sentido pleno, por isso a leitura da esquerda para a direita se configura como uma alternativa satisfatória para a leitura.
Observa-se a ausência de pontuação – traço da poética de Sophia Andresen –, o que reafirma a estruturação dupla possibilitada pela disposição dos versos. A ausência de marcações gráficas torna a sintaxe do texto fluida e dinâmica, levando à ideia de movimentação, como se estivéssemos diante de degraus que são percorridos em ziguezague. Apesar de não haver pontuação, é preciso considerar as relações semânticas e sintáticas que os versos apresentam: o verso inserido à esquerda completa-se com o que está à direita, determinando o ritmo e a progressão do texto. Dessa maneira, a leitura obedecendo ao caminho ziguezagueante é a preferível para esta análise.
O ziguezague também se refere ao tortuoso caminho descrito pela voz poética já no primeiro verso: “Tão longo caminho / Quanto passo andado”. Assim, o movimento da leitura percorre as longas distâncias trilhadas por alguém. O primeiro verso apresenta uma ideia de extensão na sua leitura, definida pelos sons nasalizados das sílabas “tão”, “lon” e “minho”. Esse aspeto é intensificado pela imagem do terceiro verso: as portas fechadas. É, então, a noção de alguém que anda ziguezagueando atrás de entradas, mas nenhuma está aberta. A estrutura em colunas reflete esse itinerário errante de alguém que busca em vão uma abertura. É interessante notar a estrutura em ziguezague como algo diferencial dos poemas de Sophia Andresen, pois a autora quis espacialmente marcar a tortuosidade do percurso.
A sombra que percorre esse caminho é errante. Se considerarmos que o nome do poema é “Cantar”, tal imagem suscitaria a presença marcante de um ser que cantasse. Contudo, nesse poema, observa-se uma voz lírica que fala sobre um alguém – marcado pelo uso da 3ª pessoa do singular – descrito por sua sombra, a qual, conforme indica o terceiro e quarto verso, andou, mas encontrou fechadas todas as portas.
Assim, a voz poética não descreve um homem, mas, sim uma sombra que está em um longo caminho de buscas e questionamentos. A sombra é a projeção obscura produzida pela intercetação da luz por um corpo, porém, em “Cantar”, ela representa a metáfora do homem obscurecido, daquele que está em um longo combate e encontra todas as portas fechadas. É também obscuro porque não pode ser identificado, está oculto em sua longa procura. Nesse sentido, aproximamo-nos do contexto sociopolítico em que “Cantar” se insere.
Em um período ditatorial, de repressão, censura e ameaça, podemos ler a sombra como o resultado da opressão vivida. O homem não é nomeado, não aparece claramente no poema, pois não pode ser identificado em sua procura. A imagem das portas fechadas reforça essa leitura, pois ela representa a ausência de liberdade, a recusa de outros homens em abrir uma porta para aquele que procura, ou seja, a negação do apoio e a aceitação da injustiça e da desumanidade que é enfrentada por todos. A sombra busca portas abertas em vão, pois este é o “tempo de ameaça e de medo”. Nesse sentido, pela opressão do regime e pela aceitação dos outros, aquele que procura romper esse contexto expressa-se pela imagem da sombra – um indivíduo sem identidade, pois o tempo é de ameaça e medo.
Tal sombra “desenha as paredes / sob o sol a pino / sob as luas verdes”. Essa imagem nos indica o quão longos são a sua procura e o seu percurso, o que marca e intensifica a passagem do tempo. Observamos também que a referência temporal ao dia aparece por meio de uma oposição, a qual pode reforçar o desejo de liberdade em um tempo de penúria, que a luz transformou-se em grades.
O sol a pino representa o ponto mais alto que o astro pode alcançar na abóboda celeste. É um momento em que seus raios atingem verticalmente a terra, e a plena luminosidade é alcançada. Essa imagem contrasta com as “luas verdes”, que podem ser compreendidas como o momento em que a lua está encoberta pelas nuvens, e sua luminosidade fica ora acinzentada, ora esverdeada, uma vez que a visão do satélite natural torna-se quase um esboço no céu.
Tal oposição mantém-se nos versos seguintes, o que nos leva a pensar nos contrastes que formam o caminho trilhado pela sombra errante:
A água de exílio
É brilhante e fria
Por estradas brancas
Ou por negras ruas
As estradas são brancas, mas as ruas são negras. Essas imagens podem ser lidas pela oposição dia e noite dos versos anteriores. As estradas são claras, iluminadas, representando a luz do dia no percurso da sombra errante. Seu caminho mantém-se até a noite, e sua busca acontece na escuridão das ruas. Ocorre, assim, a marcação do tempo da ação da sombra – o longo percurso.
As duas imagens também podem ser lidas sob o viés da forte militarização e do policiamento que os espaços públicos apresentam durante períodos de ditadura. As estradas, por exemplo, sempre têm forte controle de fronteiras, justamente para evitar fugas e exílios e capturar presos políticos que se opõem ao regime. O branco, assim, não teria no poema um aspeto da claridade positiva que a poesia andreseniana busca, mas, sim, uma noção de apagamento, de quase anulação, pois as suas vias não levam ao lugar desejado, a liberdade. O branco também pode ser lido como a luz da tortura, que permite a investigação daqueles que se opõe ao regime. As ruas negras, por sua vez, podem ser lidas como espaços obscuros, ocupados pela opressão do policiamento e pela ameaça constante da delação.
Ainda por uma relação de quase oposição, podemos pensar na água do exílio. A água – elemento fundador, de origem – torna-se a água do exílio, é brilhante, mas é também fria. Assim, se o exílio passa a ser a única opção em um país ocupado, imperado pelo medo, tal alternativa concretiza-se em frieza. O exílio parece, em um primeiro momento, a única possibilidade de fugir do cerceamento e da violência que o sistema impõe, por isso o adjetivo “brilhante”. Porém, não é algo seguro e acolhedor, e a falta de seu país torna essa opção fria, pelo sofrimento causado.
A sombra errante mantém-se em seu longo percurso, reforçado pela repetição do verso “Quanto passo andado”, os quais são dados “Por amor da terra”, que se define, no momento, como “país ocupado” controlado pelo medo. Nesses versos, observamos a denúncia clara e objetiva do regime ditatorial que tornava Portugal uma nação ameaçada pela violência e pela limitação intelectual. A sombra do homem continua sua jornada, mas as portas continuam a se fechar.
Essa ideia é inserida no poema a partir do uso da metonímia. “Portas” e “janelas” aparecem como representação de espaço, local. Podemos pensar nesses elementos como estrutura de uma casa e, por extensão, cidade e, em uma gradação de sentido, nação. São símbolos de uma forma de liberdade, pois representam os canais de entrada e saída e o limite entre o dentro e o fora. Fechadas, significam o terror e a ameaça e reforçam o encarceramento em que o homem português vive e impossibilita a proximidade daquele que está fora por causa da coerção e do controle.
A partir do 11º verso da esquerda, temos partes que representam o homem: olhos, rostos, bocas. Novamente, observamos o recurso da metonímia, e esses fragmentos de homens podem ser lidos de duas formas: primeiramente, pelas funções que essas partes praticam. Os olhos se fecham para não enxergar o terror que se passa. No mesmo sentido, as bocas não falam, não se pronunciam, não denunciam toda a ameaça que as envolve. A boca é o canal que exerce a função de comunicação, porém, no poema, ela está calada. Esse silêncio, como a ausência da linguagem, é tão poderoso quanto a própria presença dela. O silêncio não é a ação de não falar. É a não ação. Os rostos desviam o olhar e “os gestos se escondem”, ou seja, não há ação dessas pessoas. Como se estivessem paralisadas, elas se eximem de ajudar o outro, em oposição à busca incessante da sombra errante cantada pela voz poética.
A inação das pessoas reforça a imagem do isolamento da sombra que procura. A solidão aparece numa construção interessante no verso catorze da coluna direita: “Solidão vindima”. A palavra “vindima” refere-se à colheita de uvas, fruta que é um símbolo marcante cultural e economicamente a Portugal. Mas o símbolo aparece dando uma qualidade à solidão, pois a nação está calada. Os símbolos não falam mais pela nação, o que é intensificado pelo silêncio das bocas que se calam. Assim como vimos no poema “Regresso”, os símbolos portugueses talvez não possam mais representar o que os homens daquela terra são, pois o vínculo entre a nação e seus indivíduos é rompido por um governo que ocupa e submete.
Tal visão da submissão é, novamente, um contraste com o projeto poético andreseniano, que está presente no poema por meio da busca da sombra. Se a política é a ação do homem que visa gerir e integrar os seus semelhantes em um território que lhes é comum, a ditadura mostra-se o oposto dela: são homens que não buscam administrar o bem de todos, mas, sim, impor aquilo que acreditam ser a ordem e o correto, com base em valores que não são compartilhados por todos, uma vez que são instaurados por meio da opressão, da violência, do cerceamento e do medo.
No poema, Sophia Andresen representa de forma concretizada substantivos abstratos, como o insulto e o gesto. Esses substantivos aparecem ligados a verbos de ação que, geralmente, são associados a substantivos concretos: “os gestos se escondem” e os insultos são colhidos. Da materialidade dada pelos verbos, a autora cria imagens mais concretas para o gesto e o insulto – termos que são formas de linguagem. Os gestos representam a ausência de ação dos outros indivíduos, o que contrasta com os insultos que “brotam”, surgem a todos os momentos e podem ser colhidos.
Os insultos podem ser lidos como as ofensas verbais que os órgãos de controle utilizam para submeter aqueles dos quais desconfiam e reforçam a violência e a ameaça do mesmo momento. As portas se fecham e os gestos se escondem, imagens que reforçam o cenário de cerceamento da liberdade. Assim, a linguagem, que representa parte da construção de uma nação, exprime, em ambas as imagens, a impossibilidade de pensamento livre de controle, o que é enfatizado pelo silêncio dos homens.
O silêncio é enfatizado pela imagem dos rostos que se viram, os quais, formados pelas bocas e pelos olhos dos versos anteriores, relacionam-se à ideia de identidade. É pelo rosto que um indivíduo é identificado, mas, no poema, eles aparecem virados e se recusam a ver a sombra errante. Além de representarem a negação de apoio ao combate protagonizado pela sombra, os rostos, ao se virarem, não se deixam ver, não são identificados. É a identidade do povo que está obscura, encoberta e escondida pela opressão e pelo cerceamento.
A língua é um fator que aparece fortemente ligado ao “longo combate” da sombra errante no poema, o qual, porém, somente “Encontra silêncio”. O não dizer dos homens torna-os sombras. No entanto, diferentemente da sombra errante, temos sombras passivas, que renunciam o seu direito de falar e agir. A primeira sombra é a projeção de alguém que age, que busca, mas encontra as portas e janelas fechadas e a quem rostos se viram. Esse indivíduo, que trilha um extenso caminho, só recebe insultos e vê seu longo combate encontrar somente silêncio. As sombras finais não falam e não agem: a não ação transforma homens em “monstros”, em sombras que refletem os tão poucos homens que habitam a cidade.
A monstruosidade, assim como os animais dos poemas anteriores, pode ser lida como uma alegoria da conivência e da passividade dos cidadãos. Um homem que não luta para transformar seu mundo não exerce aquilo que o distingue como tal, transformando-se em animais, sombras ou monstros. Nesse resumo do percurso feito pelo alguém sobre o qual narra a voz poética, observa-se a cisão da linguagem como elemento que insere na cidade “homens sombras”. Essa reflexão retoma de forma concreta e clara não somente um contexto político em que há cerceamento da liberdade, mas também uma situação em que o silêncio define a omissão e a passividade daqueles que optam por não agir.
A autora parte, nesse sentido, de símbolos e figuras formadoras de uma imagem maior, a nação: o amor da terra – ligação ao território – inscrito no oitavo verso direito; a língua – expressa pelas palavras gestos, insultos e silêncio e pela dupla perguntar-responder – e o povo e sua identidade – representado por termos como olhos, boca, rosto, ninguém. Só se chega à noção de país por meio da ligação e equilíbrio de todos esses fatores, mas não é a essa situação de inteireza que a voz poética vê ao seu redor.
Tais elementos formadores da nação aparecem espacialmente inscritos: eles estão em um território que se encontra sitiado pelo medo, pelo silêncio e pela ocultação. Da mesma formam que os homens aparecem fragmentados em “bocas”, “olhos” e “gestos”, o ambiente também o está: a voz poética fala de alguém que encontra portas e janelas fechadas “num quarto fechado”. A voz poética encontra, assim, um ambiente em que nada está aberto, nada está livre, pois as janelas e portas, canais de passagem, estão cerradas. As imagens enfatizam esses canais, mas eles não permitem a liberdade de entrar.
Observamos, então, uma construção da nação por sua ausência, por sua divisão e por seu cerceamento. O canto da voz poética e o combate da sombra errante contrastam com a inação dos outros indivíduos, que estão subjugados e limitados pelo regime instaurado há tanto tempo em seu país. A paralisia desses homens faz deles sombras passivas, que se tornam monstros. Temos a denúncia de uma nação cujo povo encontra-se limitado, preso e incapaz de agir em tempos de ditadura.
Como observa Helena Malheiro, “Em ‘Cantar’, também a estrutura gráfica do poema, em duas colunas paralelas onde os versos voluntariamente se desencontram, transmite-nos a fragmentação que o ‘tempo divido’ impõe ao sujeito” (MALHEIRO, H., 2008, p. 93). Esse “tempo dividido” refere-se à ditadura, à violência e à ameaça por ela impostos. Assim, “construído como um jogo de ecos, este poema [...] repete, ainda de forma mais enérgica, a temática do exílio, da solidão e do medo” (Ibidem).
Nesse sentido, convém analisarmos o título do poema. “Cantar”, inicialmente, possibilita uma dupla leitura. Podemos pensar no verbo cantar, isto é, na ação de expressar-se vocal e melodicamente acerca de um determinado conteúdo, e também no substantivo “cantar”, como o próprio canto, a composição poética propriamente dita. Aparentemente sutil, a dupla semântica já indica um questionamento que orienta o poema: existe o cantar – o canto – sem a possibilidade de cantar – a ação?
Essa dupla leitura vincula-se ao elemento contextual fortemente marcado no poema, uma vez que a voz artística em Portugal, na década de 60, enfrentava uma forte limitação ideológica. Ainda que houvesse o canto, a ação cantar estava reprimida. A censura, arma elementar de coerção do governo autoritário, foi um fator de cerceamento de diversos escritores contemporâneos a Sophia Andresen, e a própria autora lidou com a proibição e intensa pressão desempenhada pela PIDE, como vimos anteriormente.
O título do poema reforça a expressão da sombra errante, ainda que esteja em um ambiente cerceador. Aqueles que buscam lutar por seus valores contrários ao regime são ameaçados, mas a sombra mantém seu longo combate, o que pode ser lido como uma espécie de canto na tentativa de diálogo que ela estabelece em seu percurso, algo que é dito, mas não é ouvido. Existe um sujeito que tenta cantar, porém ninguém quer escutá-lo. A voz poética, por sua vez, une-se a esse canto. O cantar, assim, encontra sua expressão no longo caminho desempenado pela sombra errante que, mesmo encontrando todas as portas fechadas, mantém sua luta.
Além da questão sociopolítica, o termo “cantar” também suscita uma relação fundamental com a tradição helênica, tão cara a Sophia Andresen. Para que se entenda essa influência, é importante conhecer a maneira peculiar como se estrutura o mundo grego. Ele é organizado pelo discurso numinoso, isto é, influenciado pelo aspeto divino, o que pode ser visto na obra de Hesíodo, a Teogonia, a qual canta a origem dos deuses. Jaa Torrano explica, em seu prefácio à edição desse livro, que “Sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida que vieram à luz pela primeira vez” (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 19). Ligado à presença sagrada das Musas, o cantar é o exercício por excelência da linguagem, a qual, por sua vez, é imanente ao ser. A Teogonia organizase, assim, pela ideia de que o ser – a presença, a aparição – ocorre na linguagem e pela linguagem, porque é ela a força divina de nomear. Como observa Jaa Torrano, «A rigor, não há na Teogonia uma relação entre linguagem e ser, mas uma imanência recíproca entre eles. Na Teogonia o reino do ser é o não esquecimento, a aparição (alethéa); toda negação do ser vem da manifestação da Noite e seus filhos, entre eles o Esquecimento (léthe, lesmosyne). A linguagem [...] é filha da Memória, ou seja, desse divino Poder trazer à Presença o não presente, coisas passadas e futuras. Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória» (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 29).
Na visão de Hesíodo, o elemento sagrado da linguagem, ou seja, seu poder de revelação, torna-a em “raiz originante de todo o poder e o exercício de poder” (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 31), conforme observa Torrano. O exercício do canto, dessa maneira, liga-se de modo imanente ao poder sagrado da linguagem e a toda forma de poder decorrente dele. Assim, Sophia Andresen, ao trazer a palavra de forma concreta e objetiva, cria um vínculo entre o aspeto clássico, o qual vê na linguagem o poder de presentificar o universo e os seus elementos, e o aspeto político, representado por meio da censura, do cerceamento da liberdade e do poder intenso inerente à linguagem.
A linguagem é, portanto, fundamental na reflexão promovida pelo poema. Desde o título, Sophia Andresen alude ao poder da linguagem e do canto sagrado, presentificado pelos gregos arcaicos por meio das musas que apresentam o mundo e organizam-no, revelando o poder da palavra, algo presente na sua obra poética como um todo: «A poética de Sophia Andresen transita entre a revelação (aléthea) e o esquecimento (lesmosyne) e baseia-se, fundamentalmente, no conceito de justiça (díke) cognato do verbo latino dico (dicere). Dizer é a palavra-mote que será glosada em toda a sua obra, não apenas como garantia da existência da coisa nomeada [...] mas, sobretudo, como postura ética, em que a beleza e o horror do mundo são ditos para serem vistos» (POMA, P., 2011, p. 107).
“Cantar” no poema representa a longa busca da sombra errante que, apesar da censura, da opressão do governo e da aceitação dos outros indivíduos, manteve seu combate. O termo representa também o combate da voz poética que expressa seu canto. A autora volta-se para a totalidade vendo na sua ausência a presença da escuridão e do horror, mas reforça a ideia de que a palavra pode instaurar a possibilidade justa do equilíbrio e da inteireza do homem em relação à sua pátria. E, por meio do seu canto, exprime sua busca pela inteireza, ainda que cante o tempo do país ocupado.
Em consequência dessa situação, temos, muitas vezes, o exílio, ideia que é tematizada em alguns poemas de Grades direta e indiretamente. O termo é definido pela noção de desterro, isto é, “des-terra”, uma separação da terra. A ação de exilar-se pode acontecer por degredo, ou seja, pena judicialmente imposta ou pode ser uma decisão do próprio indivíduo. Em tempos de governos totalitários, é comum ouvirmos falar de pessoas que foram exiladas ou se autoexilaram, numa tentativa de fugir de alguma punição que teriam no seu país. Entretanto, em Grades, podemos pensar, além desses significados, em uma terceira noção: o sentimento de não pertencimento de um indivíduo em sua própria terra, ainda que nela permaneça e viva.
Como vimos, a voz poética de “Este é o Tempo” fala de um “tempo em que os homens renunciam” (ANDRESEN, S., 1970, p.13). Tal recusa pode ser lida como uma desistência de sua pátria. Em tempos sombrios, os homens renunciam a muitas coisas, como sua liberdade, seu poder de decisão, sem bem-estar. Mas, quando se torna necessário distanciar-se fisicamente do lugar de origem para poder sobreviver, também temos uma renúncia. Em um contexto de ditadura militar, como se configura o contexto de Grades, podemos pensar que os homens – seja voluntária ou involuntariamente – renunciam à sua cidadania, ao seu papel político, à sua liberdade. Nesse sentido, essa renúncia pode ser lida como uma espécie de exílio.
Em “Cantar”, como observamos, temos o homem isolado que caminha sozinho e depara-se com a “água de exílio”. Essa ideia é retomada no poema “Exílio”, também publicado originalmente em Livro Sexto […].
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
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“Cantar,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-31. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/cantar-sophia-andresen.html
“Cantar,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-31. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/cantar-sophia-andresen.html
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