sábado, 15 de outubro de 2022

Chamei por mim quando cantava o mar, Sophia Andresen

Sophia Andresen - © Getty Images



Chamei por mim quando cantava o mar

Chamei por mim quando corriam fontes

Chamei por mim quando os heróis morriam

E cada ser me deu sinal de mim.


Sophia de Mello Breyner Andresen

CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 



 

Poética musical de Sophia de Mello Breyner Andresen

Em “Chamei por mim”, do livro Coral (1950) a escritora Sophia Mello Breyner Andresen mostra ao leitor a força do poema, e, ao invocar o auxílio ou clamar, faz com que outrem venha ao encontro do sujeito lírico. Chamar faz surgir outras vozes dentro da própria voz do Eu poético. Essas vozes serão denominadas “por mim”, situando que a arte poética ou a canção é um legado do artista ao mundo.

O poema é composto por quatro versos, os três primeiros apresentam o mesmo tema no começo das frases “chamei por mim quando” e realizam variações de ideias no final de cada verso. O último não traz o tema, parece ser um verso diferente, mas possui uma ligação com os três versos anteriores, que pode ser estabelecida através da relação entre o som e o sentido da palavra “mim”. Percebe-se que os três primeiros versos são realizados em um padrão grave; o último, em um padrão agudo. […]

No plano sonoro, Sophia Andresen produz a aliteração da letra “M” no texto, que está presente nas palavras-título “chaMei por MiM”, reaparecendo três vezes ao longo do poema, e em outras palavras, como “Mar” (v. 1), “corriaM” (v. 2), “MorriaM” (v. 3), “Me” (v. 4) e “MiM” (1-4). Verifica-se que a aliteração é repetida mais vezes na palavra “MiM”, no título e em todos os versos, e sugere uma maior atenção do leitor para a própria voz do Sujeito lírico.

A assonância de “A” ocorre na forma nasal (an), como em “quANdo” (vv. 1-3), cANtava (v. 1), corriAM (v. 3) e morriAM (v. 3), e na forma oral (a), como em “chAmei” (v. 1-3), mAr (v. 1), cAdA (v. 4) e sinAl (v. 4). Leva a pensar que o som que se repete parece referir ao verbo transitivo indireto que compõe o título do poema – “chamei” –, dando o significado de dizer em voz alta, invocar ou atrair algo para si.

Convém separar os versos do poema por apresentarem arranjos suficientemente harmônicos, o que permite refletir sobre a organização das sílabas de Andresen, através do processo de harmonização fônica como a reiteração vocálica na disposição de sílabas próximas na unidade dos versos, tornando-se dispensável a restrição deste andamento fônico apenas às vogais fortes, já que a harmonização sonora é localizada respectivamente em sílabas fortes e sílabas fracas:

 

“Chamei por mim quando cantava o mar” (v. 1).

       a                             a          a    a  a       a

 

“Chamei por mim quando corriam fontes” (v. 2).

               i            i                           i

 

“Chamei por mim quando os heróis morriam” (v. 3).

                   o                        o  o        o        o

 

E cada ser me deu sinal de mim” (v. 4).

  e             e      e   e                e

 

A harmonização fónica também ocorre com a reiteração dupla ou múltipla de consoantes no alinhamento de palavras próximas:

 

“Chamei por mim quando cantava o mar” (v. 1).

         m           m  m                                 m

 

“Chamei por mim quando corriam fontes” (v. 2).

                                  k           k

 

“Chamei por mim quando os heróis morriam” (v. 3).

                     r                                  r            r

 

“E cada ser me deu sinal de mim” (v. 4).

         d                d               d

 

Existem efeitos combinatórios de reiteração vocálica e consonântica no poema, o que pode provocar as mais variadas homofonias, podendo-se supor que essa harmonização fônica nasce livremente no coração dos versos, em uma possível aplicação da “teoria ordenada das sílabas”:

 

“Chamei por mim quando cantava o mar” (v. 1).

                                  kã           kã

 

“E cada ser me deu sinal de mim.” (v. 4).

                            de             de

 

Percebe-se que a harmonização fónica pode ser fundamentada no parentesco de um só traço articulatório, com reiterações parciais e os efeitos sonoros peculiares pelo contraste entre os traços não reiterados:

 

“Chamei por mim quando cantava o mar” (v. 1).

         m            m m        n         n            m

 

Chamei por mim quando corriam fontes” (v. 2).

   x    m    p r  m m  k    nd    k  r    m f  nt

 

“Chamei por mim quando os heróis morriam” (v. 3).

   x                r                            s      r   s       r

 

“E cada ser me deu sinal de mim” (v. 4).

          d   s           d      s       d

 

Observa-se um episódio de rima entre a palavra final de um verso e outra no interior do verso seguinte, gerador de mais uma musicalidade no poema, pois quando os sons são repetidos formam um grande recurso musical e rítmico, bem como ocorre na rima soante perfeita em “corriam/ morriam” (vv. 2-3):

“Chamei por mim quando os heróis morriam

E cada ser me deu sinal de mim” (vv. 3-4).

 

No nível semântico, a presença da anáfora (no começo) “chamei por mim quando” (vv. 1-3) é evidenciada ao longo do poema, com palavras e sinais, que indicam ao leitor as causas desse chamamento. O primeiro é “quando cantava o mar”, fazendo uma alusão aos poetas e músicos que se dedicavam à temática poética das viagens marítimas, levando a supor que a canção é uma herança, a qual o eu poético invoca dentro do seu próprio ser. Em “quando corriam fontes” menciona-se a importância do domínio da cultura clássica, procurada em livros, em arquivos pelos estudiosos e, como tal, revelada na perspetiva dos antigos gregos, recomendando-se estar atento à nascente das águas, pois a figura mítica de Apolo e as musas está associada à fonte de Hipocrene, que favorecia a inspiração poética. A última invocação é “chamar por mim/quando os heróis morriam”, remetendo à tradição cultural da arte (canto ou poema) ao narrar a trajetória e as proezas das pessoas de grande coragem, como um semideus, o protagonista principal ou a autor de grandes feitos. Essa tradição narrativa pode ser compreendida como um legado da cultura grega para o povo português. Em “Cada ser me deu sinal de mim” (v. 4), o Sujeito lírico alude a essas vozes poéticas que estão habitando dentro dele como uma memória, uma recordação ou lembrança, manifestando ao mundo exterior, através da transmissão oral ou por escrito, seus pensamentos ou suas inspirações, para ele também ser o portador de uma revelação.

 

Karoline Pereira, Poética musical de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto Alegre, Instituto de Letras – UFRGS, 2021

 

CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes 


 

Modernidade e dimensão contemplativa

Nesses versos, o recurso do encadeamento, cuja característica é “repetir de verso a verso fonemas, palavras, frases e até um verso inteiro” (BANDEIRA, 2009, p. 1222), adquire fundamental importância. Assim, os três versos iniciais seguem a mesma estrutura de frase (“Chamei por mim quando”), seguida de ações que tomam como sujeito o mar, as fontes e os heróis, respectivamente. O resultado da repetição dessa estrutura sintática é a criação de um efeito de ampla ressonância, que sugere uma contínua e interminável busca pela própria identidade por parte do eu lírico, diante de um cenário de fragmentação. O desfecho do poema rompe com a estrutura frasal dos três primeiros versos, o que representa uma síntese que aglutina todas as sentenças anteriores, uma vez que o eu lírico afirma que cada um dos seres evocados “me deu sinal de mim”.

Nesse sentido, as diversas evocações dos seres e dos elementos naturais representam, na obra andreseana, “marcos de uma peregrinação interior que é também a demanda de uma identidade por encontrar” (MACEDO, 2013, p. 68). Conforme a dimensão do “cantar” sugerida pelo eu lírico, cada ser evocado engendra a possibilidade de uma tomada de consciência, uma vez que “céu, mar, árvores, rochas, corpos – são restituídos como emblemas de um mundo intemporal de totalidade perdida” (MACEDO, 2013, p. 68), no qual a linguagem poética configura um refúgio em que é possível repensar noções de identidade e as relações de dominação de caráter antropocêntrico.

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

Sophia Andresen, por por Adriano Miranda



Fenomenologia: abertura para o mundo

De acordo com Buescu (2005, pp. 57, 59), em Sophia, a relação com a fenomenologia está precisamente no sentido “de uma orientação total e fundadora para o que, no mundo, permite ao sujeito compreender-se como dele fazendo parte. Estar atento ao mundo como forma de estar atento a si. Escutar o mundo para poder falar”. Acrescenta que, esse tipo de “escuta” em Sophia não sugere qualquer tipo de transcendentalismo, mas antes uma intimidade com o imanente, numa relação de estreita atenção ao que faz ver e ouvir ao sujeito, pois “só não vê quem está desatento ao real [...]”. É o que se nota no poema sem título, cujo primeiro verso é: “Chamei por mim quando cantava o mar”.

No poema fica em evidência o sentido fenomenológico de sua reflexão poética. O sujeito lírico olha as imagens, escuta as vozes que partem da natureza, a fim de desocultar o emergir do fenómeno que se revela, exigindo o desembaraço do olhar, dos sentidos, de modo a fazer aparecer, interpretar, um (outro) mundo que estava encoberto. O eu lírico, ao colocar-se frente à paisagem, chama por si “quando cantava o mar, quando corriam fontes, quando os heróis morriam”, revelando total abertura ao mundo, e compreendendo-se como dele fazendo parte ao receber o sinal de si. O sujeito busca a reconstituição de si que advém do mundo natural, das coisas, buscando rejuntar o que foi dividido, ou seja, trata-se de um encontro de identificação a partir do outro. O sujeito somente apreende os sinais que recebe porque sua natureza interna manifesta familiaridade com o mar e com as fontes. Procura-se na natureza, encontrando-se a partir das relações com o mundo. No processo de ver e ouvir o entorno, o sujeito coloca-se na escrita, no regime de uma imanência percetiva, dando lugar, posteriormente, à manifestação de uma imagem-paisagem mental.

 

Vanessa Silva, A geopoética de Sophia de Mello Breyner Andresen: paisagem e escrita. PUC-SP, 2019

 


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Chamei por mim quando cantava o mar, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-15. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/chamei-por-mim-quando-cantava-o-mar.html


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