Sophia Andresen - © Getty Images |
Chamei por mim quando cantava o mar
Chamei por mim quando corriam fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões
Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c.
1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed.,
revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa,
Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013,
prefácio de Manuel Gusmão.
Poética
musical de Sophia de Mello Breyner Andresen
Em
“Chamei por mim”, do livro Coral (1950) a escritora Sophia Mello Breyner
Andresen mostra ao leitor a força do poema, e, ao invocar o auxílio ou clamar,
faz com que outrem venha ao encontro do sujeito lírico. Chamar faz surgir
outras vozes dentro da própria voz do Eu poético. Essas vozes serão denominadas
“por mim”, situando que a arte poética ou a canção é um legado do artista ao
mundo.
O poema é
composto por quatro versos, os três primeiros apresentam o mesmo tema no começo
das frases “chamei por mim quando” e realizam variações de ideias no final de
cada verso. O último não traz o tema, parece ser um verso diferente, mas possui
uma ligação com os três versos anteriores, que pode ser estabelecida através da
relação entre o som e o sentido da palavra “mim”. Percebe-se que os três
primeiros versos são realizados em um padrão grave; o último, em um padrão
agudo. […]
No plano sonoro, Sophia
Andresen produz a aliteração da letra “M” no texto, que está presente nas
palavras-título “chaMei por MiM”, reaparecendo três vezes ao longo do poema, e
em outras palavras, como “Mar” (v. 1), “corriaM” (v. 2), “MorriaM” (v. 3), “Me”
(v. 4) e “MiM” (1-4). Verifica-se que a aliteração é repetida mais vezes na
palavra “MiM”, no título e em todos os versos, e sugere uma maior atenção do
leitor para a própria voz do Sujeito lírico.
A assonância de “A” ocorre
na forma nasal (an), como em “quANdo” (vv. 1-3), cANtava (v. 1), corriAM (v. 3)
e morriAM (v. 3), e na forma oral (a), como em “chAmei” (v. 1-3), mAr (v. 1),
cAdA (v. 4) e sinAl (v. 4). Leva a pensar que o som que se repete parece
referir ao verbo transitivo indireto que compõe o título do poema – “chamei” –,
dando o significado de dizer em voz alta, invocar ou atrair algo para si.
Convém separar os versos do
poema por apresentarem arranjos suficientemente harmônicos, o que permite
refletir sobre a organização das sílabas de Andresen, através do processo de
harmonização fônica como a reiteração vocálica na disposição de sílabas
próximas na unidade dos versos, tornando-se dispensável a restrição deste
andamento fônico apenas às vogais fortes, já que a harmonização sonora é
localizada respectivamente em sílabas fortes e sílabas fracas:
“Chamei por mim quando cantava o mar” (v. 1).
a
a a a
a a
“Chamei por mim quando corriam
fontes” (v. 2).
i i i
“Chamei por mim quando os heróis
morriam” (v. 3).
o
o o o o
“E cada ser me deu sinal
de mim” (v. 4).
e e e e
e
A harmonização fónica
também ocorre com a reiteração dupla ou múltipla de consoantes no alinhamento
de palavras próximas:
“Chamei por mim quando cantava
o mar” (v. 1).
m m m m
“Chamei por mim quando corriam fontes” (v. 2).
k k
“Chamei por mim quando os heróis morriam” (v. 3).
r r r
“E cada ser me deu sinal de mim” (v. 4).
d d
d
Existem efeitos
combinatórios de reiteração vocálica e consonântica no poema, o que pode
provocar as mais variadas homofonias, podendo-se supor que essa harmonização
fônica nasce livremente no coração dos versos, em uma possível aplicação da
“teoria ordenada das sílabas”:
“Chamei por mim quando
cantava o mar” (v. 1).
kã kã
“E cada ser me deu
sinal de mim.” (v. 4).
de
de
Percebe-se que a
harmonização fónica pode ser fundamentada no parentesco de um só traço
articulatório, com reiterações parciais e os efeitos sonoros peculiares pelo
contraste entre os traços não reiterados:
“Chamei por mim
quando cantava o mar” (v. 1).
m m m n n m
“Chamei por
mim quando corriam fontes”
(v. 2).
x m p r m m k nd k r m f nt
“Chamei por mim
quando os heróis morriam” (v. 3).
x r s r s r
“E cada ser
me deu sinal de mim” (v. 4).
d s d s d
Observa-se um episódio de
rima entre a palavra final de um verso e outra no interior do verso seguinte,
gerador de mais uma musicalidade no poema, pois quando os sons são repetidos formam
um grande recurso musical e rítmico, bem como ocorre na rima soante perfeita em
“corriam/ morriam” (vv. 2-3):
“Chamei por mim
quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim”
(vv. 3-4).
No nível
semântico, a presença da anáfora (no começo) “chamei por mim quando” (vv. 1-3)
é evidenciada ao longo do poema, com palavras e sinais, que indicam ao leitor
as causas desse chamamento. O primeiro é “quando cantava o mar”, fazendo uma
alusão aos poetas e músicos que se dedicavam à temática poética das viagens
marítimas, levando a supor que a canção é uma herança, a qual o eu poético
invoca dentro do seu próprio ser. Em “quando corriam fontes” menciona-se a
importância do domínio da cultura clássica, procurada em livros, em arquivos
pelos estudiosos e, como tal, revelada na perspetiva dos antigos gregos,
recomendando-se estar atento à nascente das águas, pois a figura mítica de Apolo
e as musas está associada à fonte de Hipocrene, que favorecia a inspiração
poética. A última invocação é “chamar por mim/quando os heróis morriam”,
remetendo à tradição cultural da arte (canto ou poema) ao narrar a trajetória e
as proezas das pessoas de grande coragem, como um semideus, o protagonista
principal ou a autor de grandes feitos. Essa tradição narrativa pode ser
compreendida como um legado da cultura grega para o povo português. Em “Cada
ser me deu sinal de mim” (v. 4), o Sujeito lírico alude a essas vozes poéticas
que estão habitando dentro dele como uma memória, uma recordação ou lembrança,
manifestando ao mundo exterior, através da transmissão oral ou por escrito,
seus pensamentos ou suas inspirações, para ele também ser o portador de uma revelação.
Karoline
Pereira, Poética musical
de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto Alegre, Instituto de Letras –
UFRGS, 2021
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes |
Modernidade
e dimensão contemplativa
Nesses versos, o recurso do
encadeamento, cuja característica é “repetir de verso a verso fonemas,
palavras, frases e até um verso inteiro” (BANDEIRA, 2009, p. 1222), adquire
fundamental importância. Assim, os três versos iniciais seguem a mesma
estrutura de frase (“Chamei por mim quando”), seguida de ações que tomam como
sujeito o mar, as fontes e os heróis, respectivamente. O resultado da repetição
dessa estrutura sintática é a criação de um efeito de ampla ressonância, que
sugere uma contínua e interminável busca pela própria identidade por parte do
eu lírico, diante de um cenário de fragmentação. O desfecho do poema rompe com
a estrutura frasal dos três primeiros versos, o que representa uma síntese que
aglutina todas as sentenças anteriores, uma vez que o eu lírico afirma que cada
um dos seres evocados “me deu sinal de mim”.
Nesse sentido, as diversas evocações
dos seres e dos elementos naturais representam, na obra andreseana, “marcos de
uma peregrinação interior que é também a demanda de uma identidade por
encontrar” (MACEDO, 2013, p. 68). Conforme a dimensão do “cantar” sugerida pelo
eu lírico, cada ser evocado engendra a possibilidade de uma tomada de
consciência, uma vez que “céu, mar, árvores, rochas, corpos – são restituídos
como emblemas de um mundo intemporal de totalidade perdida” (MACEDO, 2013, p.
68), no qual a linguagem poética configura um refúgio em que é possível
repensar noções de identidade e as relações de dominação de caráter
antropocêntrico.
Murillo Castex, Uma arte do ser:
relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Curitiba, UTFPR, 2022
Sophia Andresen, por por Adriano Miranda |
Fenomenologia: abertura para o mundo
De acordo com Buescu (2005, pp. 57, 59), em
Sophia, a relação com a fenomenologia está precisamente no sentido “de uma
orientação total e fundadora para o que, no mundo, permite ao sujeito
compreender-se como dele fazendo parte. Estar atento ao mundo como forma de
estar atento a si. Escutar o mundo para poder falar”. Acrescenta que, esse tipo
de “escuta” em Sophia não sugere qualquer tipo de transcendentalismo, mas antes
uma intimidade com o imanente, numa relação de estreita atenção ao que faz ver
e ouvir ao sujeito, pois “só não vê quem está desatento ao real [...]”. É o que
se nota no poema sem título, cujo primeiro verso é: “Chamei por mim quando
cantava o mar”.
No poema fica em evidência o sentido
fenomenológico de sua reflexão poética. O sujeito lírico olha as imagens,
escuta as vozes que partem da natureza, a fim de desocultar o emergir do
fenómeno que se revela, exigindo o desembaraço do olhar, dos sentidos, de modo
a fazer aparecer, interpretar, um (outro) mundo que estava encoberto. O eu
lírico, ao colocar-se frente à paisagem, chama por si “quando cantava o mar,
quando corriam fontes, quando os heróis morriam”, revelando total abertura ao
mundo, e compreendendo-se como dele fazendo parte ao receber o sinal de si. O
sujeito busca a reconstituição de si que advém do mundo natural, das coisas,
buscando rejuntar o que foi dividido, ou seja, trata-se de um encontro de
identificação a partir do outro. O sujeito somente apreende os sinais que
recebe porque sua natureza interna manifesta familiaridade com o mar e com as
fontes. Procura-se na natureza, encontrando-se a partir das relações com o
mundo. No processo de ver e ouvir o entorno, o sujeito coloca-se na escrita, no
regime de uma imanência percetiva, dando lugar, posteriormente, à manifestação
de uma imagem-paisagem mental.
Vanessa
Silva, A geopoética de Sophia de Mello Breyner
Andresen: paisagem e escrita. PUC-SP,
2019
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“Chamei
por mim quando cantava o mar, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de
Poesia, 2022-10-15. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/chamei-por-mim-quando-cantava-o-mar.html
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