ESTE É O TEMPO
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Deusa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens
renunciam.
Sophia de Mello Breyner Andresen
MAR NOVO, 1.ª ed., 1958, Lisboa,
Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido
e Mar Novo, Lisboa, Edições
Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª
edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Fernando
J.B. Martinho.
I -
Após a leitura cuidadosa
do poema, faça a sua análise, sem esquecer os níveis fónico, morfossintático e semântico,
e elabore um texto de acordo com os seguintes itens:
- denúncia e acusação;
- expressões intérpretes da repressão;
- a expressividade do termo "chacais";
- o contexto da produção do poema;
- a construção paralelística;
- os recursos estético·estilísticos.
II – Texto
expositivo
Num texto bem estruturado de cem a duzentas
palavras, comente a seguinte afirmação sobre a dimensão ética de Sophia de
Mello Breyner Andresen:
Nua e inteira, em serena atitude
e firme convicção, Sophia perscruta, questiona, denuncia e acusa, anuncia a esperança
e permanece.
Explicitação de cenários de resposta:
I – Comentário de texto
Denúncia e acusação
Poema como arma de denúncia:
- da repressão presente nas grades (v. 4) – símbolo da ausência de liberdade;
- do obscurantismo sugerido na «selva […] obscura»
(v. 2) e na «noite» (v. 5);
- da impureza e da injustiça traduzidas pela «luz do sol» que «se tornou impura» (v. 4);
- do sofrimento expresso no termo «amargura» (v. 7);
- do medo que leva os homens a renunciarem (último verso);
- da exploração e escravidão.
Poema como acusação:
- dos opressores e poderosos que encarceram (aprisionam);
- dos tiranos que fomentam o obscurantismo e praticam a injustiça;
- dos exploradores simbolizados pelos «chacais».
Os «chacais», como animais carnívoros que se alimentam dos detritos, surgem aqui a simbolizar os exploradores que vivem do esforço alheio.
Contexto
A situação política e social de Portugal, nos anos 50 e 60 do
séc. XX, foi marcada pela repressão, perseguição e pela exploração, a par de um
grande analfabetismo como forma de evitar a contestação.
O primeiro verso contribui para a denúncia e acusação num
contexto preciso do tempo dividido (na expressão de Sophia) ou tempo de
comportamento humano, marcado pela repressão, pela exploração, pela ameaça
constante.
Sophia, como outros escritores e artistas, acredita na força
da verdade contra a opressão e contra a submissão, por isso denuncia.
Construção paralelística
- «Este é o tempo» – «Esta é a noite» – «Este é o tempo» são três expressões que de forma paralelística marcam a estrutura e o tema do poema. Enquanto predicativos do sujeito (enunciado pelo determinante este/esta), «o tempo» e «a noite» exprimem a denúncia que se prolonga no poema e que se apresenta atual, como sugere a forma verbal «é» no presente do indicativo.
- «O tempo» remete para o tempo dividido, ou seja, para o tempo composto de diferentes tempos: de odiar, de destruir, de ameaçar, de violentar, de mentir, de sofrer, de escravizar... Este tempo opõe-se ao tempo absoluto, do que é eterno e do restabelecimento da unidade, da realização suprema do homem.
- «A noite» simboliza o medo, a crueldade, o crime, a perversão, a ameaça, o ódio, a escravidão...
Recursos estilísticos
- Paralelismo (versos l, 5 e 8).
- Metáfora na expressão "selva mais
obscura" ao aproximar o sistema político e social opressor de uma selva
que, embora contenha em si escuridão, surge pleonasticamente "mais
obscura"; e eufemismo, ao recorrer a uma expressão que,
aparentemente, suaviza o sentido de medo e de terror, mas que a imagem da selva
já contém.
- As imagens-símbolo da liberdade – "o ar azul" – e da claridade ou da pureza – "a luz do sol" – dão lugar a imagens da repressão – "grades" – e da impureza ou injustiça – "impura".
- Metáfora na referência aos
"chacais" como símbolo dos exploradores.
- Metáfora e personificação na referência
à "noite" "pesada de amargura".
- Aliteração do /t/ a traduzir o sofrimento e
a dor; aliteração das sibilantes /s, z / a sugerir a continuidade
da amargura; os fonemas fechados e nasais a reforçar as alusões a este tempo
dividido, de ameaça e opressão.
II – Texto expositivo
- A poesia de Sophia revela uma constante atenção aos problemas do homem e do mundo;
- É uma poesia de empenhamento
social e
político, de compromisso com o seu tempo e de denúncia das injustiças e
da opressão;
- Recorre a alegorias do tempo dividido, associado ao comportamento humano, por oposição ao tempo absoluto, transcendente, da unidade
da vida;
- A poesia de Sophia é uma moral: busca a consciencialização;
apresenta um papel formativo;
- A busca da justiça é uma coordenada fundamental de
toda a sua obra poética;
- Procura encaminhar o homem para o encontro com o divino;
- Alegra-se perante o esplendor do mundo; mas revolta-se "com paixão" face ao sofrimento do mundo;
- Sophia evoca o passado e a antiguidade para sugerir transformações do futuro;
- Procura conciliar a
cultura e a
educação helénicas com a ética romana e com a religião cristã;
- A sua poesia é um verdadeiro canto do
logos,
a manifestação de uma razão apaixonadamente inquieta na relação com
o educar e o saber.
Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Português A e B: acesso ao ensino superior 2000: preparação
para a prova de exame nacional – 12.º ano. Porto, Porto Editora,
2000, pp. 205, 408.
Textos de apoio
Texto de apoio 1
A obra de Sophia expõe o tempo e a esperança
de um “caminho para” a vida que protesta um futuro livre, mas que não o proporciona
“Este é o tempo em que os homens renunciam.”
Com base em sua perceção da ditadura
Salazarista como escritora, Sophia compreende e abarca seu momento histórico em
palavras metafóricas sua indignação. O discurso poético relata o cerceamento
feito pelo um regime de forças, no qual a censura, a falta de informação
ameaçavam o diálogo, a liberdade de ponderação. Contudo, não apenas a censura
criada pela ditadura de Salazar tolhia a liberdade criativa, mas também o
julgamento e o medo das consequências de um ato reprovável pela ditadura. Nesse
poema, a poetisa captou a reflexão do tempo da obscuridade e das grades criadas
pelos homens que renunciam a liberdade. Essa ação criadora e criativa
possibilita a reflexão dos trajetos navegáveis da arte pela realidade
limitadora do regime salazarista. Escrever para Sophia é provocar e enfrentar essa
situação de forma libertadora. A repreensão, tal como vista em muitas outras
ditaduras, não apenas em Portugal, gera questionamentos e reflexões alusivos a
agressão, a ao ataque dos pensamentos a tolhida de manifestações contrárias.
Fernanda Rodrigues Galve, “O Encontro de marés: João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello
Breynner Andresen” in XXVII Simpósio Nacional de História. Natal-RN,
2013
Texto de apoio 2
Grande parte dos poemas que compõem
este eixo é extraída de Livro Sexto, sobretudo da secção intitulada “As
grades”, é considerado por muitos críticos o livro mais político da autora: “Livro
Sexto marca o ponto mais extremo de intervenção combativa imediata na obra
de Sophia, enquanto globalidade de um único livro” (MAGALHÃES, J. In: GUSMÃO,
2010, p. 287), como observa Joaquim Manuel Magalhães. Apesar disso, ainda temos
nesse grupo poemas de Mar Novo, Geografia e Dual.
Os poemas abordam um tempo em que a voz
poética vê-se cerceada em meio à escuridão, ao ódio e à amargura, como
apresenta o conhecido poema “Este é o Tempo”, publicado originalmente em
Mar Novo.
É o tempo em que a voz poética encontra
somente valores que contrastam com o seu ideal. O dia dá lugar à noite, e o
espaço não é mais o local da ordem justa, do equilíbrio e da claridade, e sim
“Da selva mais obscura”. O poema, publicado em 1958, insere-se no período
pós-guerra, em plena ditadura salazarista e no início dos confrontos civis nas
colônias portuguesas. Temos aqui um poema, segundo Belchior, «que se desenha
nítido o tempo dividido como tempo de ódio e renúncia [...]. este tempo
dividido opõe-se radicalmente ao tempo absoluto de seu desejo. Donde a procura
por valores éticos como antídoto da podridão. Em contraste com um mundo liso e
puro, a moeda corrente da corrupção.» (BELCHIOR, 1986, p.39)
Esse tempo, conforme analisa Carlos
Ceia, é o regime político que a voz poética busca denunciar «[...] o tempo
funciona como uma metáfora política [...]. O tempo político depende de um
processo de codificação partilhado por todos os poetas portugueses que escreveram
antes do 25 de Abril: simboliza sempre o Regime fascista, que não poderia ser
nomeado diretamente.
Se este tempo está “dividido”, tal
deve-se à ação opressora deste Regime» (CEIA, C., 2003, p. 71, apud MALHEIRO,
H., 2008, p. 83). Assim, observamos, nesse poema e nos outros que compõem este
segundo eixo, a denúncia de um governo pautado na ameaça e no cerceamento do
pensamento dos indivíduos, limitados por ações opressoras e censura.
Como observa Helena Santos, os
primeiros versos desse poema fazem referências a versos de Dante em relação à
metáfora “selva obscura”. Porém, «enquanto que na Commedia de Dante a
“selva obscura” se insere inúmeras vezes num percurso iniciático, de procura de
luz e de conhecimento, irrompendo das trevas, neste poema de Sophia [“Este é o
Tempo”], a mesma metáfora não pressupõe um caminho de luz, mas de trevas, de
impureza e não de purificação, confirmado pelas metáforas de degenerescência do
“ar azul” e da “luz do sol” e “pela noite densa de chacais” (SANTOS, H., 1982,
p.174).
Os versos de Dante que iniciam a parte Inferno
da Divina Comédia fazem referência a uma alegórica “selva escura”,
onde Dante encontra a figura de Virgílio, o poeta latino que se oferece como
guia para adentrar o Inferno e o Purgatório: “A meio caminhar de nossa vida /
fui me encontrar numa selva escura: estava a reta minha via perdida”. O Inferno
é descrito como um local selvagem e obscuro, mas é um caminho a se seguir em
busca do Paraíso.
No poema de Sophia Andresen, porém, o
tempo da selva obscura é a denúncia do seu tempo presente, não há ideia de
redenção e de claridade, pois a noite é pesada e densa, repleta de chacais, uma
metáfora para a ameaça e para a tensão, uma vez que esses animais da família
dos lobos e dos cães, vivem à espreita atrás de suas caças. A animalização
agressiva, conforme observa Helena Malheiro, tem o objetivo de “designar a
violência dos tiranos que detêm o poder, e é mais do que evidente que os ‘chacais’
são as personagens sinistras da ‘selva’ política em que o país se tornou” (MALHEIRO,
H., 2008,p. 83).
A angústia e o risco da morte são os
ventos desse período, e a ameaça da opressão torna o dia em uma noite pesada
pela amargura. Nesse tempo de selva obscura oprimida pelos chacais, os homens
renunciam. Conforme analisa Malheiro, “Esta renúncia é a renúncia do homem
perante o Ser, enfatizada pela repetição dos demonstrativos ‘este’, ‘esta’, que
apontam mais uma vez para um presente corrupto e implacável que esmaga o
indivíduo”. Oprimidos, ameaçados, manipulados, esses homens abdicam de si
mesmos. Podemos pensar também, em uma perspetiva mais democrática, que os
indivíduos abdicam de sua relação com sua pátria, uma vez que o governo de
exceção cerceia grande parte dos mecanismos de participação política. É a desistência
também da liberdade, já que o ambiente tornou-se grades, alusão à prisão. Assim,
é o tempo de homens inseridos na selva da política, ameaçados pela fome de poder
dos chacais.
Aliás, os chacais não são os únicos
animais que aparecem em Grades como referências metafóricas de
substantivos de conotação negativa. Temos o abutre, animal conhecido pelo
hábito necrófago, ou seja, de alimentar-se de carne em estágio de putrefação.
Por isso, por extensão de sentido, é relacionado comumente à morte e, quando o
termo é usado como uma metáfora de um indivíduo, temos ligada a essa pessoa a
imagem de alguém que busca a morte, que a deflagra ou que vive dela de alguma
maneira. É nesse viés que se constrói o poema “O velho abutre”, publicado originalmente
em Livro Sexto:
O VELHO ABUTRE
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
A imagem da ave necrófaga é lida,
geralmente, como uma referência a António de Oliveira Salazar. O indivíduo
descrito pela voz poética gosta da degradação e da podridão, mas é sábio,
sobretudo em relação aos seus discursos, que diminuem as almas. Pelos
discursos, podem extrair a ideia da demagogia, manipulação ideológica, palavras
de exaltação nacional e de manutenção da ordem, e esses elementos são importantes
para a continuidade de governos autoritários.
Há nesse “abutre” também um aspeto de
orgulho de suas ações, pela ideia de alisar as penas. A podridão pode ser lida
como a corrupção praticada por esse indivíduo, a falsidade e a arbitrariedade
de suas ordens e a ameaça contra seus opositores. Os discursos minimizam as
almas, pois são monólogos de coerção ideológica que inibem a reflexão daqueles
que passivamente o escutam.
Em “O Velho Abutre” e “Este é
o tempo”, temos um momento em que os homens renunciam e suas almas
tornam-se menores. Ambas as imagens relacionam-se com o tempo de medo, de
amargura e de tensão, protagonizados pelo abutre e pelos chacais. Essa perceção
do tempo atual é também denunciada em “Data”, poema extraído de Livro
Sexto, de maneira bem detalhada […].
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
***
Texto de apoio 3
Não faltam, todavia, em Mar Novo,
como põem em evidência os poemas referidos e outros que poderíamos citar, nomeadamente
um muito breve que prolonga, inclusive a nível sintático, «Porque» e que, desta
vez, tem explicitamente como dedicatário Francisco Sousa Tavares («Porque nos
outros há sempre qualquer nojo / Que me gela e me afasta / E em ti há sempre um
pouco de mar largo / Que de olhos cegos atrás de ti me arrasta.»), exemplos de
uma preocupação ética que progressivamente ganha uma dimensão política.
O que é igualmente o caso do díptico
inspirado «nos painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento, que devia
ser construído em Sagres», e em cuja segunda parte especialmente não seria
difícil ao leitor da época identificar nos «senhores sombrios desta noite /
Onde se perde morre e se desvia /A antiga linha clara e criadora / Do nosso
rosto volta do para o dia» a arbitrariedade de Salazar, a quem se atribui a não
concretização do projeto «Mar Novo» do arquiteto João Andresen, irmão de
Sophia, que alcançara o primeiro prémio no concurso para o Monumento ao Infante
D. Henrique, em Sagres, em meados dos anos 50, em coautoria com o pintor Júlio
Resende e o escultor Barata Feyo. A escolha do nome do projeto para título do
livro pode, assim, ser lida como uma homenagem de Sophia àqueles que, na
circunstância, representavam a «linha clara e criadora / Do nosso rosto voltado
para o dia» de que se fala no fecho do díptico.
Há, por outro lado, na quinta coletânea
poética de Sophia, inequivocamente mais extensa que a anterior, uma progressão dramática,
de alguma forma acentuada pela divisão do livro em três partes, que diz
igualmente respeito à relação da poeta com Deus. No início do livro, diante da
existência do mal à sua volta, a própria «obra» de Deus se lhe apresenta como
uma obra cindida, dividida, e em extrema agonia, ela chega mesmo a
interrogar-se se alguém não terá vencido Deus ou desviado os seus «caminhos»:
«Senhor se da tua pura justiça / Nascem os monstros que em minha roda eu vejo /
É porque alguém te venceu ou desviou / Em não sei que penumbra os teus caminhos
// Foram talvez os anjos revoltados. / Muito tempo antes de eu ter vindo / Já
se tinha a tua obra dividido // E em vão eu busco a tua face antiga / És sempre
um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.» Já
perto do fecho do livro, porém, surge um poema que proclama a necessidade de um
Deus que dê um sentido à torturada e mutilada condição humana: «És Tu que estás
à transparência das cidades / Vê-se o Teu rosto para além dos bairros interditos
// O mal palpável próximo insistente / Parece tornar-Te evidente. // Sobe do
destino uma sede de Ti. / Não somos só isto que torce / Com as mãos cortadas
aqui.» Quando se atinge o fim do volume, o conflito parece ter-se resolvido, e
o rosto de Deus, revelando-se-lhe nos elementos naturais, como que desfaz a sua
intranquila questionação: «Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de
amplidão e de lisura.»
Ao mesmo tempo, e num livro, não o
esqueçamos, que a própria autora via como estando intimamente ligado ao anterior,
adensa-se, em Mar Novo, um sentimento trágico da vida que se
manifesta num mal-estar, numa negatividade que se diz em termos como
«desespero», «absurdo», «desencontro», «náusea», «nojo», todos eles pondo em
evidência que a poeta não permaneceu imune a um certo ar do tempo típico dos fins
dos anos 40 e dos anos 50 em Portugal e noutros países, muito marcado, como se
sabe, pelas filosofias da existência. Em nenhuma outra obra da autora, poderia
mesmo dizer-se, é tão pronunciada essa negatividade, tão intensamente se recorta
a presença da treva. Expressões reiteradas como «em vão», «nunca mais» dão bem
conta do desalento, da «desilusão» que submerge o sujeito, da dificuldade de
manter viva a esperança, no meio do «vazio» e da «agonia». Por outro lado, a
preposição «sem», obsessivamente recorrente, ilustra, de modo inexcedível, o quanto
o mundo representado no livro é, em regra, um mundo ferido de despossessão, de
privação, de perda, de falha, longe da plenitude, da ideia de unidade que, no
fundo, a poesia de Sophia nunca deixou de perseguir. Melhor que nenhum outro
texto, de Mar Novo ilustra, um poema como «Marinheiro sem Mar» essa
perda, essa separação irremediável do «corpo da unidade», a entrega, afinal, ao
«tempo dividido» e tudo o que ele possa significar. Nele se conta a história,
de inequívoco cunho alegórico e de sombrias tonalidades apocalípticas, de um
marinheiro que se afastou para sempre do seio aconchegado do seu mundo
matricial, e a que nenhuma nostalgia, por mais pungente que seja, o poderá
jamais devolver:
«[...] // Porque ele tem um navio mas
sem mastros / Porque o mar secou / Porque o destino apagou / O seu nome dos
astros // Porque o seu caminho foi perdido / O seu triunfo vendido / E ele tem
as mãos pesadas de desastres // E é em vão que ele se ergue entre os sinais /
Buscando a luz da madrugada pura / Chamando pelo vento que há nos cais //
Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto / As imagens são eternas e precisas / Em vão
chamará pelo vento / Que a direito corre pelas praias lisas // Ele morrerá sem
mar e sem navios / Sem rumo distante e sem mastros esguios / Morrerá entre
paredes cinzentas / Pedaços de braços e restos de cabeças / Boiarão na penumbra
de madrugadas lentas. // [...]».
O desengano que domina o sujeito
propicia a ligação de muitos dos poemas de Mar Novo a uma categoria
genológica como a elegia, em alguns casos, e dentro de um livro tão tocado,
direta ou indiretamente, pela sombra da morte, assumindo mesmo a feição de
elegia fúnebre. Neste âmbito destaca-se um texto em que, surpreendentemente, se
não tem notado um nítido eco do famoso «Menino da sua mãe» de Pessoa. Nem
faltam em «O soldado morto», o poema de que estamos a falar, para além,
naturalmente, da circunstância de a personagem no centro da cena ser em ambos os
casos um soldado morto, a presença de termos comuns, como «céus», «cego»,
«brisa» e «perdido/perdidos»; «Os infinitos céus fitam seu rosto / Absoluto e
cego / E a brisa agora beija a sua boca / Que nunca mais há de beijar ninguém.
// Tem as duas mãos côncavas ainda / De possessão, de impulso, de promessa. /
Dos seus ombros desprende-se uma espera / Que dividida na tarde se dispersa. //
E a luz, as horas, as colinas / São como pranto em torno do seu rosto / Porque ele
foi jogado e foi perdido / E no céu passam aves repentinas.» O sentimento elegíaco
faz, por sua vez, apelo, no título de um curto poema da primeira parte do
livro, ao cante jondo, o primitivo canto andaluz: «Numa noite sem lua o meu
amor morreu / Homens sem nome levaram pela rua / Um corpo nu e morto que era o meu.»
Lembre-se, a propósito, que Federico Garcia Lorca, tido por Sophia como uma das
suas grandes referências literárias, publicou um livro com o título Poema del
Cante Jondo e dedicou estudos ao cante de tão fundo enraizamento na sua
Andaluzia natal. Em Lorca, Sophia era particularmente sensível ao que chamava
as suas «superimagens», e em que reconhecia a força sortílega de «metáforas
muito especiais», conforme declarou em entrevista a Eduardo Prado Coelho, em
1986. Muito da atmosfera que geram tais imagens e metáforas se pode encontrar
no enigmático texto de Mar Novo, no qual se pressente alguma familiaridade
com os temas emotivos do cante jondo.
O mais eloquente exemplo de elegia
fúnebre no livro de 1958 e, no entanto, «Meditação do Duque de Gandia sobre a morte
de Isabel de Portugal», poema que, ao mesmo tempo, se afirma como um dos mais
altos momentos no exigentíssimo percurso de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Não está aqui em causa saber se corresponde à verdade ou se é do domínio da
lenda a famosa exclamação atribuída ao marquês de Lombay e futuro Duque de
Gandia diante do cadáver em decomposição da mulher de Carlos V, quando da sua
tumulação em maio de 1539 em Granada: «Nunca mas, nunca mas servir a Señor que
se me pueda morir!» (cf. o importante estudo de Vasco Graça Moura, «Retratos de
Isabel», Oceanos, n.° 3, março de 1990). O que antes, agora, nos importa
é encarar o poema como texto literário, independentemente do que haja ou não de
verdade histórica em tudo o que terá rodeado a decisão de o marquês de Lombay,
Francisco de borja (que mais tarde chegaria a ser o terceiro geral da Companhia
de Jesus e que viria mesmo a ser canonizado no século XVII), de deixar o
século, em resultado da contemplação do corpo desfigurado pela morte da imperatriz
à qual supostamente devotaria um amor preso ainda, na primeira metade do século
XVI, aos ditames do amor cortês, corno deixam transparecer termos como «servir»
e «Señor». Antes disso, transcreva-se, para melhor elucidação, a passagem da Historia
de la Vida y Hechos del Emperador Carlos V, de Fray Prudencio de Sandoval
citada por Graça Moura no seu ensaio: «Hizo tanto efecto esta vista en el
marquês, que causó en él una profunda imaginación [...] y viendo que era tal, determinó
servir a otro señor y a otra Majestad que no perece».
É o Duque de Gandia que, no texto,
assume a fala, tendo esta como destinatário a própria imperatriz, já morta. O
monólogo da personagem é apresentado pela poeta como uma «meditação», a qual é
tradicionalmente um traço indissociável do funcionamento da elegia. Trata-se,
na circunstância de uma meditação específica, a meditatio mortis. Tudo se
centra no efeito que a contemplação do corpo em decomposição de Isabel de
Portugal tem sobre o Duque, no abalo profundo que ele sofre e que o conduz a
fazer a si próprio a promessa de dar um rumo diferente à sua vida, a decidir
entregar-se totalmente ao serviço de Deus, Senhor não sujeito à morte. É a
consciência fulminante da sua própria finitude, espelhada na degradação do
corpo de um ser que via como a figuração de uma beleza perfeita, que o leva a
uma decisão tão radical. A determinação irrevogável do Duque fica bem patente
na expressão temporal que se repete no início de cada uma das estrofes. A fala
do personagem, por outro lado, adequa-se perfeitamente à consciência da
fragilidade e da brevidade da vida humana que é a de um homem marcado pelo desengano
próprio da sua época. Ao mesmo tempo, porém, insinua-se, inevitavelmente, na
fala do Duque, a linguagem que á a da própria poeta que lhe dá vida, e que traz
a marca de um período histórico ferido de negatividade, tão sensível em dois
termos de rara violência expressiva como «nojo» e «negação», num verso já perto
do fecho do poema.
Prossegue em Mar Novo o interesse,
da poeta pelos temas clássicos, que, já vem do livro de estreia e se manterá,
como é sabido, até ao fim do seu percurso. Não por acaso certamente, num livro
de predominante atmosfera disfórica, os temas tratados, de Electra e das
Parcas, estão associados à morte. O mito da irmã de Orestes, em que, aqui, nos
fixamos, é, desde os gregos, um dos que, ao longo dos séculos, maior fortuna teve
em termos de tratamento literário. Em tempos modernos ganhou ele especial
vigor, gozando compreensivelmente da preferência da literatura dramática, dado
o destaque de que já beneficiara junto dos grandes tragediógrafos helénicos.
A tradição em que a «Electra» de Sophia
se insere não é diretamente a dos que, na modernidade, levaram o tema da filha de
Ãgamémnon e Clitmnestra aos palcos, um Hofmannsthal, um Eugene O'Neill, um
Giraudoux, um Sartre, um Gerhart Hauptmann, uma Yourcenar, mas a plasticidade cénica
do seu poema não deixa de pôr em evidência as suas fortes virtualidades dramáticas,
ademais vindo de uma autora que, como se sabe, se interessou pela escrita
teatral, quer a nível criativo propriamente dito, quer no domínio da recriação,
literária que é a tradução. O que mais impressiona no texto de Sophia é a sua violência
com que transmite o pathos trágico através da concretude de um verbo
como escorrer e de signos como o «sangue» e as «lágrimas», e nos projeta
em imagens de pesadelo e horror como a das «duas mãos torcidas» que aparecem «numa
janela». É nessas duas mãos, em que reconhecemos uma sinédoque do inabalável
desejo de vingança da Electra matricida que se centra a nossa atenção e que faz
dela uma figura que suscita em nós sentimentos contraditórios de repulsa e
compreensão. Sophia, por outro lado, não se furta, no tratamento do tema, à
linguagem que é a do seu tempo, e alguns dos termos de que se socorre, como «traição»,
«náusea», «absurdo», fazem parte do léxico preferencial de algumas correntes
existencialistas, gozando então de grande voga entre nós.
A descoberta de Rimbaud por Sophia
ter-se-á dado na sua juventude, como podemos deduzir de uma carta dirigida à
mãe em maio de 1961, informando-a da morte de José Ribeira, seu amigo dos
tempos dos verões passados na praia da Granja. Este era, juntamente com António
Cálem, um dos amigos a quem lia, conforme diz, «tudo o que escrevia», antes de
ter publicado versos (vide catálogo da exposição na Biblioteca Nacional,
Sophia de Mello Breyner Andresen — uma Vida de Poesia, org. de Paula Morão e
Teresa Amado, 2011). Terá ele, muito provavelmente, lido o poema «O Vidente»,
datado de novembro de 1941, e que fazia parte dos chamados «Cadernos Rasgados»
que Cálem colou. O referido texto era, no original, dedicado a Ruy Cinatti (cf.
ibid), e teve a sua primeira publicação nas páginas da revista Aventura
(1942-1944), fundada por este poeta, vindo a ser incluído no livro de estreia,
de 1944. Cinatti, que era um pouco mais velho que Sophia, conheceu-o ainda
adolescente, como recordou numa palestra proferida em 1964 na Universidade de
Perugia. Fazia ela parte de um grupo de gente muito nova, para quem Cinatti era
«o poeta mítico», uma espécie de «guru», alguém que lhes levava «perturbação» e
«assombro». É com emoção que Sophia evoca as leituras que Cinatti fazia «ao sol
e à brisa» de poesias de Pessoa e Pound. Não sabemos é se terá sido este seu
amigo, que via também como «o heraldo de toda a modernidade», a iniciá-la em
Rimbaud, ele que, afinal, para o título do seu primeiro livro, Nós não somos
deste mundo, de 1941, viria precisamente a glosar palavras do autor de Une
Saison en Enfer, e que, a seu convite, em dezembro desse mesmo ano, deu a Jorge
de Sena a oportunidade de fazer uma conferência, para a Juventude Universitária
Católica de Lisboa, sobre «Rimbaud ou o Dogma da Trindade Poética», que seria
publicada, juntamente com «Ode a Arthur Rimbaud», de Carlos Queiroz, no 2.° número
de Aventura, em agosto de 1942.
O título do poema vindo a público em Poesia
deixa claro que eram do conhecimento de Sophia as chamadas «Cartas do Vidente»,
peça indispensável de toda a mitologia rimbaldiana.
O texto é percorrido pelo entusiasmo
que à poeta trazia a leitura de uma obra que lhe anunciava uma «pátria nunca
vista», e se lhe apresentava como «o sinal / De que as coisas sonhadas
existiam». O visionarismo de Rimbaud, as «imagens de oiro que ele vira» vinham
bem ao encontro de uma poesia como a da primeira Sophia especialmente atenta ao
que era a força transfiguradora «Interior à alma». Mas já então, como o
testemunha o final do poema, numa alusão à mudança dramática que se operou no
destino de Rimbaud, para ela constituía motivo de fim do questionamento e de
angustiada inquietação a quebra que se dera no poeta; «E ei-lo caído à beira do
caminho, / Ele -
oque partira com mais força, / Ele -
oque partira pra mais longe. // Porque o ergueste assim como um sinal? /
Pusemos tantos sonhos em seu nome! / Como iremos além da encruzilhada / Onde os
seus olhos de astro se quebraram?»
O retrato de Rimbaud que emerge, por
sua vez, do poema «Semi-Rimbaud» de Mar Novo, remete, por um lado, para
o que no autor de Illuminations haverá de poeta maldito, apostado no
«mal», que «Constrói [...] com gestos rigorosos» e, por outro lado, de
instaurador de uma subversão radical que «sonha a inversão total das coisas»,
ou que, para utilizarmos as palavras do próprio Rimbaud na carta de 15 maio de
1871 a Paul Démeny, defende «um longo, imenso e regulado desregramento de todos
os sentidos». Mais uma vez a leitura desta carta se revela de grande utilidade
para chegarmos a uma melhor compreensão da visão que Sophia tem do poeta francês,
e do entendimento que ele próprio faz do poeta enquanto vidente. Lembremos um
passo famoso da carta. Aí diz Rimbaud, com uma radicalidade próxima da que
caracteriza os textos manifestários, que o anima «uma força sobre-humana, que o
faz tornar-se o maior de todos os doentes, o grande criminoso, o grande maldito
— e o supremo sábio!
[…]
Sophia disse, numa alocação de 1975,
que «a arte da nossa época é uma arte fragmentária». Tal fragmentariedade
ter-se-ia tornado mais notória a partir de Cristo Cigano, de 1961, que a
própria poeta via como um ponto de viragem na sua obra. A verdade, porém, é que
podem encontrar-se já em Mar Novo sinais de uma mais transgressiva
modernidade, que contraria a imagem de expressão clássica que é geralmente
associada à Sophia dos primeiros livros. Um dos mais conhecidos poemas do livro
de 1958, «Porque», pela sucessão de orações causais e pela ausência de oração
principal, manifesta já uma tendência para a agramaticalidade e para a adoção
de procedimentos hostis à frase que se tornarão mais correntes na autora a partir
dos anos 60. Assim como a utilização da técnica da montagem, tão frequente mais
tarde, é, de alguma forma, antecipada no poema «Sequência», que se apresenta
como uma verdadeira sequência de imagens, dispostas segundo o princípio de uma montagem
aproximável da própria montagem cinematográfica, ao mesmo tempo que não deixa
de evocar os inventários tão do agrado dos surrealistas; «A sua face
transpôs os temporais / O vento azul rolou entre os seus braços // A penumbra subiu
e rodeou / O seu rosto aceso as suas mãos iguais // Dos seus ombros nasceram as
estátuas / E o gesto dos seus dedos / Encantou os navios // Baloiça um
enforcado na baía / Mãos sem corpo levam castiçais // Uma cortina enrola-se na
brisa / Uma porta bate e de repente / Um corredor fica vazio.»
Fernando J.B. Martinho, Prefácio a Mar Novo. Lisboa, Assírio
& Alvim, 2013
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“Este
é o tempo, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-06.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/este-e-o-tempo-sophia-andresen.html
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