"Um dia, mortos, gastos, voltaremos", in caderno com textos datados entre 1933 e 1935 |
UM DIA
Um dia, mortos, gastos,
voltaremos
A viver livres como os
animais
E mesmo tão cansados
floriremos
Irmãos vivos do mar e dos
pinhais.
O vento levará os mil
cansaços
Dos gestos agitados, irreais,
E há de voltar aos nossos
membros lassos
A leve rapidez dos
animais.
Só então poderemos
caminhar
Através do mistério que
se embala
No verde dos pinhais, na
voz do mar,
E em nós germinará a sua
fala.
Sophia
de Mello Breyner Andresen
DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições
Ática • 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1974, Lisboa, Edições
Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista,
2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho •
1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gastão
Cruz.
Textos de apoio
No poema “Um dia”
a relação entre o homem e a natureza assenta num sentimento de irmandade e,
portanto, fundamentada no equilíbrio e igualdade.
O poema recria um universo
de relações harmoniosas entre o sujeito poético e a natureza. O retorno à
natureza é visto como o alcançar da liberdade: assim como os animais vivem
livremente no seu espaço natural, o homem, na sua dimensão de ser irmão do mar
e dos pinhais, também ganha esse espaço de liberdade. Todos os desgastes
físicos sucumbem quando o homem retorna ao seu estado natural. Entendamos que
este estado natural tem inerente a conceção do ser humano na sua dimensão
ambivalente de ser social e ser natural, atingindo-se a harmonia existencial
quando ambas as dimensões convergem num equilíbrio mútuo. É este equilíbrio que
permite que no ser humano germine a fala dos pinhais e do mar, ou seja, a
possibilidade de interagir com a natureza, interpretando a sua linguagem
específica.
Olga Cardoso, Abordagem ecopoética
da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Universidade de Aveiro,
2012
***
DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática |
A musicalidade dos versos
de Andresen privilegia a busca por um dizer natural, que se volta, em última
instância, para a busca pela essência em cada unidade de sentido. […]
Como manifestação exemplar
de musicalidade e interseção entre as sonoridades das palavras, seja pela
proximidade entre os termos, seja pelo poema em sua totalidade, observa-se “Um
dia”.
O poema apresentado segue
um esquema fixo de rimas (a estrutura ABABCDCD EFEF), o que evoca uma
regularidade sonora que evidencia também um apelo discursivo, uma vez que «frequentemente
a nossa sensibilidade busca no verso o apoio da homofonia final; e do sistema
de homofonias de um poema extrai um tipo próprio de perceção poética, por vezes
independente dos valores semânticos». (CANDIDO, 2006, p. 62).
Desse modo, à perceção de
regularidade evocada pelas rimas é possível associar uma sensação de harmonia e
equilíbrio contrária à perceção dos “gestos agitados, irreais” mencionados pelo
eu lírico, como se a forma de dizer remetesse diretamente a uma temporalidade
lenta, de contemplação.
No nível semântico, a
poeta aproxima a linguagem humana à manifestação e presença dos elementos da
natureza, de modo que é possível estabelecer um diálogo com a ideia de que “a
nomeação é a forma encantatória de, na poesia, restituir aos objetos a sua
realidade, a sua pureza, ou a sua força mágica” (ROCHA, 1994, p. 167). Por meio
da utilização do recurso metafórico, que ocorre, conforme observa Candido
(2006, p. 122), “como se a transferência semântica se fizesse espontaneamente”,
o eu lírico antropomorfiza elementos como os pinhais e o mar ao lhes atribuir a
capacidade da fala. Do mesmo modo, a assimilação de características dos
elementos naturais à condição humana é explicitada pelo uso do verbo floriremos,
que aproxima ao agir humano uma ação essencialmente vinculada ao contexto
botânico. Observa-se, assim, um discurso em que a linguagem aproxima o humano
aos elementos naturais, de modo que a palavra passa a sugerir, conforme estudos
da lírica moderna, um “encantamento, uma evocação e um exorcismo da coisa que
nomeia” (FRIEDRICH, 1978, p. 28).
A noção de “sagrado”
também perpassa por toda a poética andreseana, uma vez que a autora se mostra
alinhada a uma perspectiva ecocrítica que procura uma “‘ressacralização’, por
assim dizer, de nossas perceções do mundo natural” (BICCA, 2018, p. 163), capaz
de colocar “os múltiplos ecossistemas acima dos estreitos interesses humanos”
(BICCA, 2018, p. 163). No poema “Um dia”, essa ressacralização é ressaltada
pela evocação dos animais, do mar e dos pinhais, ou seja, das diversas
representações que caracterizam elementos da natureza como “irmãos vivos”.
Assim, em oposição aos “gestos agitados, irreais” que fundamentam a consciência
do sujeito moderno em um mundo fragmentado, a poeta propõe “a leve rapidez dos
animais”, que lhes possibilita “caminhar através do mistério”, uma das
premissas de sua poética, que manifesta “a busca da palavra verdadeira,
remetente de um tempo mítico antes da profanação a que foi sujeita” (PEREIRA,
2003, p. 85).
Conforme destaca Friedrich
(1978, p. 51, grifos nossos), “há na palavra algo de sagrado que nos
impede de fazer dela um jogo de azar. Manejar com engenho uma língua significa
exercer uma espécie de magia evocadora”. Essa “magia evocadora” é
evidenciada constantemente na poética de Andresen, sobretudo em razão do uso de
diferentes recursos metafóricos. Em “Um dia”, o verso “E em nós germinará a sua
fala” é uma legítima manifestação do sentido de um “encantamento” por meio da
palavra, de modo que a autora aproxima novamente um verbo oriundo da botânica, germinar,
a uma característica essencialmente humana, a fala, o que propõe uma
ressignificação das relações entre o humano e o não humano.
É possível analisar a obra
andreseana sob a perspetiva proposta por Paz (1991, p. 98) de que “escrever um
poema é decifrar o universo, só para cifrá-lo novamente”. Em “Um dia”, versos
como “Através do mistério que se embala/ No verde
dos pinhais, na voz do mar” (ANDRESEN, 2015, p. 171, grifos
nossos) revelam essa permanente busca por decifrar o universo por meio da
linguagem poética. Para isso, utilizam-se recursos sonoros como as aliterações,
que são constantes sonoras ou, antes, um efeito sonoro particular (CANDIDO,
2006, p. 33), nesse caso a repetição do som das letras s e v, que
remete diretamente ao efeito sonoro da passagem do vento. Do mesmo modo,
observa-se uma regularidade de rimas (cansaços/ lassos; irreais/ animais etc.)
responsável por estabelecer “uma sonoridade contínua e nitidamente percetível
no poema” (CANDIDO, 2006, p. 62), o que também vai ao encontro da busca por uma
unidade almejada, expressa como sentido íntimo do texto. Conforme Malheiro,
para Andresen “a poesia opera, verdadeiramente, uma operação alquímica de
mágica fusão do Real, na sua aparição encantada” (MALHEIRO, 2008, p. 297), de
modo que o sentido de encantamento obtido por meio do emprego de recursos poéticos
pode ser definido como o ápice do olhar contemplativo voltado para as formas da
natureza.
Murillo Castex, Uma
arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello
Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022
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GRADES [Antologia de Poemas de Resistência], 1970, Lisboa, Publicações Dom Quixote |
Há em Grades, assim, a
consciência de um “Tempo de injustiça e de vileza”, em que Portugal encontra-se
ocupado por mentiras, violência, repressão, ameaça e manipulação. Há também a
consciência de que aquele que canta nesses tempos vive da tormenta, como a
procelária, pois vive sempre o conflito de nomear sua pátria em condições quase
inomináveis e em tempos de exílio. Porém, Sophia Andresen faz frente a essa
tempestade e renova seu canto, que tem a força de presentificar – assim como o das
Musas – seu projeto poético que busca a inteireza. Ela canta porque a política
faz parte daquilo que a poesia compreende e de que se constitui. Há, então, a
força do canto que nomeia as circunstâncias de terror e a esperança, ainda que
utópica, de um dia renomear seu país pela linha clara e criadora do rosto de
seu povo. Há também o canto da liberdade. Essa visão aparece no poema “Um
dia”.
O poema é o primeiro texto da seleção
de Grades, mas é publicado originalmente em 1947 no segundo livro de
poesia da autora, Dia do Mar. É inusitado que o primeiro poema da
seleção seja o último analisado neste trabalho. Porém, buscaremos explorar seus
aspectos de forma a explicar por que ele encerra o terceiro eixo.
“Um dia” é composto por três quadras de
versos decassílabos e apresenta esquema rímico ABAB / CBCB / DEDE. No primeiro
verso, temos uma referência temporal futura e imprecisa: “um dia”. É a partir
dessa data indefinida que podemos compreender o que a voz poética deseja. É
algo futuro que ocorrerá somente quando, depois de mortos, voltarmos: «É uma
esperança utópica porque aspira ao regresso ao estado de liberdade animal, com
gestos rápidos e distensos, para aqueles que foram impedidos de se exprimirem e
estão fatigados dos “gestos agitados”» (SANTOS, H., 1982, p. 172).
Assim, há uma esperança de voltar à
liberdade do estado primitivo, original, como os animais, porém seu caráter é
idealizado, pois isso só acontecerá com o ressurgimento possibilitado pela
morte. Assim, esta deve ser vista em uma chave positiva, pois é “sobretudo
renascimento, num encontro real pelo qual o eu se salva” (MALHEIRO, H., 2008,
p. 144).
A voz poética afirma que, apesar do
cansaço, os homens irão florir, o que os aproxima do mundo vegetal, das plantas
e de suas flores, que florescem e se reproduzem. Essa aproximação, feita por
meio da metáfora do florescimento, indica que, nesse futuro indeterminado, os
homens serão livres como as plantas, isto é, apesar de serem diferentes, eles
se relacionarão com o mundo da mesma maneira. O viés de igualdade é reforçado
no quarto verso da primeira quadra, pois os humanos serão “irmãos vivos do mar
e dos pinhais”. O que pode ser lido como “uma aspiração de florescimento e
fraternidade, não social, mas ontológica, entre homens e natureza” (SANTOS, H.,
op. cit, p. 172).
Mas, para que esse viés exista, é
necessária a morte, ou seja, é preciso que o homem rompa a “barreira da
destruição criada pela vida exterior” (Ibidem). Para que o ser humano possa
reintegrar-se no mundo de modo igual aos elementos da terra, é fundamental que
haja um ressurgimento. Como observa Eduardo Prado Coelho, é uma “hipótese
redentora”, pois “a dimensão ‘animal’ é extremamente poderosa” (COELHO, E.,
1980, p. 24), uma vez que ela estabelece uma relação justa com o mundo. A mesma
noção se estende aos elementos vegetais, como os pinhais, que aparecem duas
vezes no texto. Na poesia andreseniana, “há a possibilidade de a morte ser
perfeita [...]. A morte perfeita é a passagem do tempo comum para o temo fora
do tempo” (Ibidem), observa Coelho.
Nesse tempo futuro ideal, o vento
levará o cansaço dos homens, o que nos leva a crer que o tempo atual é pesado e
desgastante. Assim, podemos relacionar essa ideia ao contexto de publicação do
poema, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Como vimos no segundo
capítulo, apesar de Portugal declarar-se neutro no conflito armado, havia
relações questionáveis entre o fascismo e o Estado Novo. Tal ligação intensifica
o viés de ameaça e pressão que os órgãos estatais disseminavam na sociedade. O
tempo atual da voz poética é marcado pela tensão constante e perigo iminente, o
que pode ser lido pela imagem dos “gestos agitados. irreais”. O esgotamento do
homem atinge seus membros, mas com a redenção desse tempo atual, sua rapidez votará,
pois ele será livre como os animais.
Convém ressaltar que a morte, no poema,
não se configura como algo negativo, e sim positivo, pois é redentora e
reveladora de um novo tempo que seremos parte do mundo como os elementos
naturais e os animais. O aspeto negativo está no tempo atual que, apesar de não
ser nomeado no texto, apresenta-se como o momento de desgaste e angústia. Logo,
é possível compreender uma cisão entre o mundo natural e o mundo dos homens.
Enquanto aquele é pleno de liberdade e vida, este representa o cansaço, a
agonia e a sobrevivência.
Temos uma aproximação entre esse tempo
cantado pela voz poética de ressurgimento e liberdade e o conceito de physis,
trabalhado anteriormente. A morte possibilitaria um retorno em que os homens
estariam religados ao mundo e aos seus elementos naturais, como as árvores e os
animais. Já não haveria o cansaço e o exílio impostos por um mundo em que o
indivíduo não está unido à sua realidade. Já não haveria o desgaste de pessoas
que estão desligadas de sua pátria em razão da imposição do poder e de suas
armas. Já não haveria a necessidade de esconder-se, de calar-se, pois não
existiria a supremacia e a subjugação. Todos seriam partes livres que comporiam
o mundo em uma relação harmónica.
Ao ultrapassar esse tempo presente de
medo e conflito, o indivíduo pode ser livre, conforme apresenta a última
estrofe na imagem do caminhar. Essa liberdade ocorre “através do mistério que
se embala / No verde dos pinhas, na voz do mar”. Tal mistério pode ser lido
como a plenitude e a harmonia da natureza. A voz do mar, ou seja, a sonoridade
emitida por esse elemento, germinará nos homens, imagem a qual expressa a
reunião do indivíduo, na sua condição de livre, com as águas. O homem – que
fala – dirá suas palavras e nelas estará a voz do mar, pois eles se tornam
elementos iguais nesse novo tempo. Esse vínculo entre o homem e a natureza
aproxima-se da noção da physis grega, sendo a total integração e laço de
todos os elementos do mundo, inclusive os homens.
Temos, assim, em “Um dia”, o tempo
idealizado organizado pela physis, em que todos os elementos estão
conectados entre si, formando um todo que compreende igualmente as partes. Mas
o tempo presente não é o da physis, e o homem não mais se vê como parte
desse todo. Ele não se enxerga como parte em relação a seus próprios semelhantes,
por isso o tempo é de medo, de angústia, de esgotamento. O momento da guerra e
da ditadura não expressa um vínculo entre homens, mas, sim, a ação de oprimir os
mais fracos e a eles se sobrepor, buscando sempre o poder maior.
O que encontramos no poema não é o
cantar do “tempo que os homens renunciam”, e sim o canto do poeta que deseja a
liberdade e a religação. É também o canto do poeta, nesses tempos de selva
obscura, a busca pela relação justa entre o homem e o seu mundo, fazendo-a
ressurgir. Sophia Andresen entende que a poesia é o canto do ser inteiro e
integrado à terra, o que compõe o seu fazer poético e também sua postura
política, o que torna seu projeto ser po-ético.
Buscar a totalidade, a justiça e a
liberdade pede que a autora olhe seu tempo presente, em que esses valores estavam
cerceados. E, assim, em poemas como “Um dia” e “Procelária” temos uma voz
poética que deseja a inteireza e o vínculo entre os homens e sua realidade.
Procurar a verdade, a liberdade e a religação entre os homens e o mundo é um
ato político, e esses elementos compõem o projeto po-ético andreseniano. A moral,
a poesia e a política não são para Sophia Andresen valores dissociáveis: «Foi a
poesia que me obrigou a pensar na política. E é a poesia que praticamente me
permitiu intervir na política. [...] E a poesia obrigou-me a pensar na política
porque me ensinou a não aceitar a degradação da vida. E a poesia ensinou-me a
procurar a totalidade que não é o domínio do masculino, mas o acordo com o
humano.» (ANDRESEN, S., 1975, pp. 05-06)
Desse modo, a poesia leva a autora a
pensar sua realidade e a se posicionar diante do medo e da injustiça que
observa, conforme ela afirma em seu ensaio Poesia e Revolução: “porque
busca a inteireza do homem, a poesia numa sociedade como aquela em que vivemos
é necessariamente revolucionária – é o não aceitar fundamental” (Idem, 1977, p.
77). E a política é a busca pela justiça, pois ela pede uma relação justa entre
homens. A poesia de Sophia Andresen também pede essa justiça e para ela “é a
poesia que desaliena, que funda a desalienação, que estabelece a relação
inteira do homem consigo próprio, com os outros, e com a vida, com o mundo e
com as coisas” (Idem, 1977, p. 78).
Essa ideia alude as palavras de Octavio
Paz: “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética
é revolucionária por natureza. [...] A
poesia revela este mundo, cria outro” (PAZ, O., 1982, p. 15). E é esse o projeto
poético andreseniano que observamos em Grades. A escritora construiu um caminho,
por meio da poesia, em que buscou denunciar o sofrimento, o medo, a injustiça e
o cerceamento de seu contexto. Ainda assim, falou da importância da resistência
nesses tempos obscuros e mostrou sua crença na religação do homem com seus
iguais e sua realidade como parte da sua postura política. Por isso, seu
projeto é poético. E o espaço em que essa reunião e inteireza se tornam
possíveis é o poema. O poema é, então, a aliança do homem com o mundo, o que
torna o canto de Grades um longo combate e uma intensa resistência para
aqueles que estão no mau tempo.
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
Poderá
também gostar de:
“Um
dia, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-30. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/um-dia-sophia-andresen.html
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