PAISAGEM
Passavam
pelo ar aves repentinas,
O
cheiro da terra era fundo e amargo,
E
ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam
na areia as suas crinas.
Era
o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era
a carne das árvores elástica e dura,
Eram
as gotas de sangue da resina
E
as folhas em que a luz se descombina.
Eram
os caminhos num ir lento,
Eram
as mãos profundas do vento
Era
o livre e luminoso chamamento
Da
asa dos espaços fugitiva.
Eram
os pinheirais onde o céu poisa,
Era
o peso e era a cor de cada coisa,
A
sua quietude, secretamente viva,
E
a sua exalação afirmativa.
Era
a verdade e a força do mar largo,
Cuja
voz, quando se quebra, sobe,
Era
o regresso sem fim e a claridade
Das
praias onde a direito o vento corre.
Sophia
de Mello Breyner Andresen
POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição
da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª
ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª
ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.
Textos de
apoio
Paisagem: luz
e cor
Em Sophia, o olhar sobre as paisagens é delineado
a partir de uma perspetiva subjetiva, paisagem percebida por todos os sentidos,
revelando um sujeito lírico que se dispersa na paisagem. A linguagem poética
adotada por Sophia desvela um mundo atravessado pela experiência subjetiva, um
mundo experimentado, cheirado, tateado, ouvido e falado. Partindo dessa
premissa, o que se vislumbra na escrita da poeta é a construção de um sujeito
que, por conta de uma relação entre mundo referencial e interioridade,
materializa essa experiência no topos do poema, como experiência
“mundificante”. Assim, evidencia-se, no poema, um novo mundo, uma nova
paisagem, resultante de uma referencialidade diluída na linguagem poética. No
poema “Paisagem” observamos tal reflexão.
O valor impressionista em que a
paisagem é percebida combina uma dimensão concreta, material e luminosa com uma
“exalação afirmativa”, na qual já se descobre a veemência e despojamento das
imagens, possibilitando ver a “claridade das praias onde a direito o vento corre”.
As imagens aparecem num movimento instantâneo: “passavam pelo ar aves
repentinas”, “E ao longe cavalgadas do mar largo /Sacudiam na areia as suas
crinas”. Imagens que surgem também de um clarão instantâneo: “num luminoso
chamamento”, e as coisas visíveis aparecem emitir uma radiação que não é apenas
luminosa, mas também sonora.
Espalham-se, assim, as palavras do
visível: “céu azul”, “campo verde”, “terra escura”, “luz”, “luminoso”, “claridade”,
a linguagem sendo uma forma de visibilidade, dando a ver o que é dito,
colocando no visível o que a palavra anuncia, “donde virão fenômeno (e seu conhecimento:
fenomenologia), fantasia, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão,
imaginação e palavra como resultados do ato da luz” (CHAUÍ, 1988, p. 34). Um
ato de ver que impulsiona o sonho; um olhar que pousa sobre as coisas e viaja
no meio delas. “Trabalhar o visível para que sirva ao invisível, eis a vida do
poeta” (TSVETÁEVA, 2017, p. 41).
O poema revela a experiência do
espanto fulgurante do mundo que surge aos olhos do observador diante de uma
referência literal. Afasta-se de qualquer “epistemologia prisioneira do
dualismo das categorias de sujeito e objeto” quando “inscreve o humano naquilo
que designa como o ‘real’” (GUSMÃO, 2005, p. 44). O olhar do eu lírico
transforma o local em paisagem por meio dos dados sensíveis ao descrever a
paisagem com suas impressões: “Eram os caminhos num ir lento /Eram as mãos
profundas do vento”. O olhar, assim, faz o sujeito lírico sair de si e se
perder na “asa dos espaços” ao mesmo tempo em que traz “o mundo para dentro de
si” (CHAUÍ, 1988, p. 31).
Contudo, ao apreender a paisagem
como algo percebido, não reduz a paisagem a um “puro espetáculo” percebido
apenas pela visão, mas envolve todos os outros sentidos. Nava (2004, p. 176),
ao comentar sobre a escrita de Sophia, afirma que “a intensidade com que as coisas
se oferecem aos sentidos, ao ponto de as sensações daí resultantes transmutarem
a sua natureza, faz com que nesta poesia os sentidos adquiram um relevo muito
especial”. Há um momento no poema em que a intensidade do visível se torna tão
violenta que solicita todos os sentidos.
A poeta situa o eu lírico na paisagem,
no mundo fenoménico, como um ser que se conjuga no espaço, um ser que faz dos
sentidos uma teia a enredar toda a carne do mundo que se revela a sua frente. A
paisagem está delineada por uma perspetiva subjetiva, uma vez que fica em evidência
a resposta afetiva à paisagem. Trata-se de uma experiência vivencial, que exige
o colorido íntimo de quem olha, sente, escuta e cheira a paisagem, que se
desdobra a sua frente. Uma profusão de sensações físicas, corpóreas, permite
uma configuração demasiadamente plástica das palavras, quebrando-se, assim, a
distância entre signo e coisa: o mar largo, o voo das aves, o cheiro e a cor
escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a cavalgar, os pinheirais,
delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de grande apelo imagético
e sensorial. A poeta faz ver e sentir essa paisagem/imagem fazendo uso de
sinestesias que nos remetem à experiência de quem observa, gerando na escrita o
efeito paisagem. A combinação de sensações (visual, auditiva, gustativa, olfativa)
é uma maneira de captar o real que se quer apreender no poema, pela linguagem.
A ressonância do poema é inseparável das emoções que se desdobram com o mundo.
Não se trata somente de um olhar,
mas um olhar que aprofunda o horizonte, que sente o “cheiro da terra fundo e
amargo”. Não se vê apensas o que se apresenta à vista, mas um “visual que
continua além do horizonte” (COLLOT, 2013, p. 21). O princípio da fenomenologia
se justifica pela atitude filosófica que encontramos no eu lírico, que é de
admiração e envolvimento diante do mundo. A paisagem aparece como mundo vivido
e experienciado pelo sujeito lírico. Ocorre uma intercomunicação de diferentes
mundos, diferentes composições de imagens — aves, terra, ar, mar, sangue,
animal (crina), céu, campo, árvores, resina, mão —, que sofrem uma metamorfose,
deixando de exibir suas características comuns: as cavalgadas e as crinas dizem
respeito ao mar; “a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da
resina”, afirmando o caráter imagético poético do poema ao revelar imagens que
não representam necessariamente a realidade imediata de uma paisagem, “mas o
que poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do ‘impossível verossímil’ de
Aristóteles (PAZ, 2012, p. 105, grifo do autor). Segundo Paz, as palavras e
imagens entram no campo da pluralidade, aproximando realidades opostas. No
processo dialético, pedras e plumas desaparecem em favor de um terceiro
significado que já não é pedra nem plumas, mas outra coisa. “Ao enunciar a identidade
dos opostos, atenta contra os fundamentos do nosso pensar”, escreve Paz. E continua:
Uma
paisagem de Góngora não é o mesmo que uma paisagem natural, mas ambas têm
realidade e consistência, embora vivem em esferas diferentes. São duas ordens
de realidade paralelas e autônomas. Nesse caso, o poeta faz algo mais que dizer
a verdade; ele cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria
existência. As imagens poéticas têm sua própria lógica [...] (PAZ, 2012, p. 113).
Nesse sentido, a imagem do poeta
tem sentido em diversos níveis: autênticas genuínas, pois tratam-se de uma
verdade subjetiva, ao mesmo tempo em que constituem uma realidade objetiva. Esta
vibração uníssona do mundo manifesta-se ao próprio nível estilístico, por meio de
personificações, sinestesias e comparações: “Eram as gotas de sangue da resina”;
“Eram as mãos profundas do vento”, criando, no poema, outra paisagem possível,
que parte do ponto de vista do poeta, exigindo a mesma atitude do leitor. O
poema não revela em nenhum momento a presença direta de um “eu”, mas ele está
implícito como elemento que compõe uma subjetividade. Ao perceber (e
reconfigurar) a paisagem no poema, a perceção se faz presente como um motivo
importante de criação literária e de reflexão teórica para a poeta, implicando a
relação íntima entre sujeito e mundo. O sujeito lírico fala das coisas para
falar de si, ou seja, utiliza a concretude do mundo para mergulhar em
sentimentos, em uma espiritualidade capaz de abarcar seu próprio eu; encontro
com a natureza, que é, sobretudo, um encontro com a sua própria interioridade.
O último verso da quarta estrofe: “exalação
afirmativa”, sugere que o poema é a celebração da plenitude e vivacidade, que
exala, emana, a potência do mundo. Ou seja, coisas, seres e espaços afirmam-se
positivamente, exibindo uma paisagem que se abre pela escrita. Ao usar a
palavra “exalação afirmativa”, Sophia afirma o que seria o papel basilar de seu
projeto poético: transmitir, pela escrita, a existência de tudo que compõe a
condição humana do sujeito, fazendo-nos lembrar que estamos fisiologicamente
ligados à terra. Essa é a postura ética de Sophia.
É em virtude disso que Gusmão
(2005) afirma a existência de três fatores conjugados na poesia de Sophia: a
evidência poética, responsável pela criação de uma imagem que se dá a ver e é, ao mesmo tempo, condição de
visibilidade. Em segundo lugar, a justeza, que é a forma encontrada pela poeta
para registrar cada objeto numa “forma justa”, a justiça que é caracterizada
pela preocupação com o social que Sophia articula poeticamente, propondo uma outra
ética fundada sobre a estética.
Nesse sentido, podemos lançar a
hipótese de que o efeito estético, em Sophia, operaria como profanação do
discurso pragmático ao lançar imagens, sons, efeitos de visualidade e dos sentidos
no poético, evidenciando a inoperância contracomunicativa como seu ato político;
linguagem poética que atua como “um uso especial que não coincide com o consumo
utilitário” (AGAMBEN, 2007, p. 67). “Especial”, faz-se importante ressaltar, não
implica separação da experiência comum, numa espécie de sacralização do estético,
mas trazer a linguagem de volta para o próprio homem, que deve habitá-la.
O sentido de inoperância da
linguagem poética nos coloca em outro ritmo, ritmo que está na poesia, que nos
tira do movimento automático da linguagem útil, que cumpre apenas uma função e
que se desvanece assim que se realiza. Pelo ritmo o poema alcança a subjetividade
do sujeito, propondo desautomatizar a sensibilidade e propor outra realidade. “A
criação poética consiste, em boa parte, nessa utilização voluntária do ritmo
como agente de sedução [...]. O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo
(PAZ, 2012, p. 63), ritmo que não é medida vazia, “mas uma direção, um sentido
(p. 63).
Vanessa
Silva, A geopoética de Sophia de Mello Breyner
Andresen: paisagem e escrita. PUC-SP,
2019
***
Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na
poesia de Sophia
A
perspetiva fenomenológica também é evidente no poema “Paisagem”.
No poema apresentado, o eu lírico descreve
a paisagem de uma praia por meio do contato com as formas dos elementos
naturais, que são nomeados e encadeados ao longo de uma descrição segundo a
qual a linguagem instaura um tempo mítico (FERRAZ, 2013, p. 57), como atesta o
verso “Eram os caminhos num ir lento”. Este, por sua vez, atenta para uma
relação em que a experiência do real adquire um máximo grau de poeticidade, o
que permite ao eu lírico explicitar o “regresso sem fim e a claridade/ Das
praias onde a direito o vento corre”.
Com base na experiência de imersão no
contato com os elementos naturais expressa em aspetos descritivos do poema,
como “Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,/ Era a carne das árvores
elástica e dura,/ Eram as gotas de sangue da resina/ E as folhas em que a luz
se descombina”, a perspetiva fenomenológica propõe que “o mundo é não aquilo
que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me
indubitavelmente com ele, mas não o possuo, pois ele é inesgotável”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Assim, perpassa pelo poema a ideia de “um mundo
anterior, inalienável e puro” (PEREIRA, 2003, p. 58), sobretudo mediante o
emprego de metáforas que associam os elementos da natureza observados pelo eu
lírico à ideia de uma temporalidade que jamais pode ser completamente
apreendida: “Eram as mãos profundas do vento/ Era o livre e luminoso
chamamento/ Da asa dos espaços fugitiva”. Conforme observa Fernandes (2019, p.
244), «[...] a poesia de Sophia não é explicativa, como a fenomenologia também
não o é; a fenomenologia toma os fenômenos no sentido grego do termo (phainómenon):
aquilo que aparece ou se manifesta. Assim também parece ser a poesia
andreseniana».
Assim,
a visão da “verdade e a força do mar largo” denota um contexto segundo o qual
“o aparecer opõe-se ao parecer, como a religião se opõe à verossimilhança e,
por conseguinte, este naturalismo se opõe ao (mero) realismo” (RUBIM, 2013, p.
236), de modo a suscitar um efeito de “regresso sem fim” que é, afinal, uma
busca essencial da poética andreseana.
Murillo Castex, Uma arte do ser: relações
entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022
***
O lugar do ser
A poesia de Sophia […] nasce dessa consciência
cristalina, dessa claridade da visão atenta ao mundo. Daí irrompe, no texto,
outro universo, glorificado, puro, intenso: a realidade feita poesia.
Podemos notar tal feito no poema “Paisagem”,
da obra de estreia de Sophia, Poesia I.
Nesse poema, o eu lírico atém-se ao mundo,
esmiuçando-o numa descrição fincada no esplendor do real. Uma profusão de sensações
físicas, corpóreas, permite uma configuração demasiadamente plástica das
palavras, quebrando-se, assim, a distância entre signo e coisa. O voo das aves,
o cheiro e a cor escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a
cavalgar, os pinheirais delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de
grande apelo imagético e sensorial. No último verso da quarta estrofe, a
expressão “exaltação afirmativa” confirma o que até agora vínhamos enumerando e
salientando na poesia de Sophia. Com efeito, nessa lírica as coisas, os seres e
os espaços afirmam-se positivamente, abertos, em plenitude; eles ganham um
gesto expressivo, uma moldura viva, tornando-se exaltados. O substantivo “exaltação”
é emblemático e compõe um termo fundamental para o fazer poético da escritora
de Ilhas.
Ao usar tal termo, Sophia exalta, pela escrita, a existência de tudo o que compõe
a dimensão espacial do homem.
A exatidão da escrita, escrutinando o sensível,
pode ser notada no seguinte verso: “Era o peso e era a cor de cada coisa”. Tal
afirmativa, pela obviedade, denota, paradoxalmente, o sentido inaugural do
mundo, desvelando o ineditismo das coisas, o absurdo que é o simples existir do
estar aí, aos nossos olhos. O verbo ser não dá relevo à “coisa” propriamente
dita, mas aos seus qualificadores. Paradoxalmente, ele torna os elementos físicos
abstratos, para em seguida intensificar a presença do objeto. Ao nuançar o
detalhe e não o conjunto da coisa, o poema exalta o ente descrito,
metonimicamente, destacando-lhe seus atributos físicos, sua carnadura. Por
conseguinte, o verbo ser no infinitivo, permite-nos também apreender uma situação
física, espacial, singular. Ele funciona no sentido de algo que se realiza, de
algo que se faz, que acontece. Poderíamos traduzi-lo da seguinte maneira:
fez-se o peso e a cor de cada coisa, fez-se a concretude sensível como algo inédito.
Ao nomear o mundo físico, a palavra arrebata-o, dando-lhe um peso maior, uma
corporalidade mais densa, mais plena. Esse verso, portanto, em sua justeza e
simplicidade, instaura o próprio absurdo do existente: as coisas simplesmente são
e o poema capta esse deslumbramento do saber a própria coisa em si.
Alexandre
Felizardo, “O Lugar do Ser: Topoanálise em Sophia de Mello Breyner Andresen”.
Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011
Poderá
também gostar de:
“Paisagem,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-29. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/paisagem-sophia-andresen.html
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