FÚRIAS
Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario
Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam
Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria
Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra
tempo
Sophia de Mello Breyner
Andresen
ILHAS, 1.ª ed., 1989, Lisboa, Texto Editora, ilustração
de Xavier Sousa Tavares • 2.ª ed., 1990, Lisboa, Texto Editora • 3.ª ed., 1992,
Lisboa, Texto Editora, ilustração de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., 2001,
Lisboa, Texto Editora • 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.
Para uma leitura do poema “Fúrias”
Resumo: O título
do poema “Fúrias”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, remete no plano
pré-textual para as quotidianas cóleras ou irritações que o determinaram (tal
como o título “Contrariedades”, de Cesário Verde), e no plano propriamente
textual para a metalinguagem do mito. As deusas da mitologia clássica são
convocadas e reconfiguradas neste texto de Sophia, no regime da paródia:
dessacralizadas, trivializadas, as Fúrias são aqui a imagem da desordem do mundo
atual, que nega ou destrói a ordem essencial da natureza. As representações
descritivas das Fúrias ao longo do poema convertem um sentido em forma, ao
mesmo tempo que operam a passagem do mito à eventualidade histórica,
falando-nos dum tempo “a contratempo” que quebrou a ordem natural do mundo.
Antes de serem, no título do
poema, nome de deusas da mitologia clássica, as “fúrias” são as iras, as
cóleras, as quotidianas irritações que pré-textualmente o determinaram. Até
certo ponto, esta composição faz lembrar “Contrariedades”, de Cesário Verde,
onde também a impaciência e o ressentimento se convertem em ímpeto ou “furor”
poético, e se corporizam na escrita. Ambos os poemas textualizam a exasperação
num título seguido da sua ilustração discursiva; ambos exprimem uma ligação ao
real de ordem sarcástica, condicionada por fatores adversos, por
“contrariedades” (Cesário) ou “contratempos” (Sophia), por uma impossibilidade
mais ou menos circunstancial de conciliação entre o sujeito e o mundo; ambos falam
excessivamente desse real, se bem que de formas
diferentes (o de Cesário é realista, o de Sophia não); e ambos têm uma
tonalidade catártica, graças a esse modo excessivo.
Mas o título
“Fúrias” remete, já no plano propriamente textual, para a metalinguagem do
mito. Fúrias são os “génios do mundo infernal nas crenças populares romanas
primitivas” (GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Lisboa: Difel, [19--]., p. 179), equivalentes às Erínias ou Euménides,
descritas como “violentas deusas que pertencem ao grupo das mais antigas forças
do panteão grego”, pelas quais “se exprime a conceção fundamental do espírito
helénico a respeito de uma certa ordem do mundo, que deve ser protegido das
forças anárquicas” (id., p. 147). Com os cabelos eriçados de serpentes, são geralmente
três, e não reconhecem qualquer outra autoridade divina, nem mesmo a de Zeus.
Da escuridão dos Infernos, onde moram, punem todos os excessos humanos,
perseguem os criminosos e enlouquecem as suas vítimas, castigando-as assim da hybris que
as faz esquecer a sua condição e desafiar a ordem social.
O poema de Sophia
convoca e reconfigura o mito, no regime da paródia, ou seja, da inflexão que
simultaneamente o decalca e deforma: “Sem cabelos eriçados de serpentes”, “Sem
rosto e sem máscara”, “Já não perseguem sacrílegos e parricidas/ Preferem
vítimas inocentes/ Que de forma nenhuma as provocaram”. Dessacralizadas,
trivializadas, em vez de protetoras da ordem social, as Fúrias são aqui a
imagem da desordem, ou duma nova ordem do mundo – esse mundo atual, estilhaçado
e confuso, “tão bem organizado que se desorganizou”, como Sophia o definiu numa
das suas fórmulas próprias. “A eficácia que se avaria”: eis a caracterização
poética da contingência, duma contingência que se sobrepõe à ordem essencial da
natureza, ocultando-a, negando-a ou destruindo-a (“Por elas o dia perde seus
longos planos lisos/ Seu sumo de fruta/ Sua fragrância de flor/Seu marinho
alvoroço”).
Num conhecido
ensaio intitulado “Le mythe, aujourd’hui”, Roland Barthes escreveu: “Quel est
le propre du mythe? C’est de transformer un sens en forme” (BARTHES, Roland. Mythologies.
Paris: Seuil, [19--] (1. ed. 1957) p. 204). É justamente o que Sophia faz neste
poema, ao lançar mão do mito para representar o real: ao parodiar e atualizar
esse mito, dá-lhe novas feições, enumera “formas” concretas das forças
infernais que atormentam ou castigam o homem contemporâneo, na sua
circunstância temporal e social: “São/ Torneira que se estraga atraso de
autocarro/ Sopa que transborda na panela/ Caneta que se perde aspirador que não
aspira/ Táxi que não há recibo extraviado/ Empurrão cotovelada espera/
Burocrático desvario”. Todos estes símiles ou exemplos se destinam a
presentificar essas forças, numa expressividade paratática que culmina e
encontra a sua síntese no verso “Elas são a peculiar maravilha do mundo
moderno” – verso onde a antífrase surge como a figura retórica da exasperação
dolorida.
Da presentificação
do mito em formas hodiernas resulta outro aspeto importante do poema: a
passagem do mito à História, da intemporalidade à contingência, do essencial ao
acidental. Não esqueçamos que as Erínias pertencem, na mitologia grega, ao
grupo das divindades mais antigas, anteriores ao próprio Zeus; a reconversão
dessas forças arquetípicas em acidentes dum tempo presente não podia ter maior
intencionalidade expressiva, pelo propositado desfasamento que cria. Abundam no
texto as referências ao tempo (“a mais íntima humildade/ Do quotidiano”, “as
meticulosas mãos do dia-a-dia”, “E o tempo é transformado/ Em tarefa e pressa/
A contratempo”), bem como as marcas duma deíxis temporal
(“agora”, “mundo moderno”), reforçadas pela datação do poema (1988).
Assim, as
equivalências descritivas das “Fúrias” não convertem apenas um sentido em
forma(s): elas operam também a passagem do mito à eventualidade histórica, e
falam-nos dum tempo “a contratempo”, que com o seu diferente compasso quebrou a
ordem natural do mundo – e, na circunstância, perturbou a harmoniosa serenidade
do poema.
Clara Rocha, “Para
uma leitura do poema ‘Fúrias’, de Sophia de Mello Breyner Andresen”, SCRIPTA,
Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 60-63, 2º sem. 2004
O mundo disfórico: a «cidade suja»
Mas a crítica de Sophia ao reino da
opressão e da divisão não se reduz ao tempo da opressão da Ditadura,
estendendo-se, nos seus últimos livros, ao âmbito civilizacional. Seguindo os
passos da crítica romântica ao culto da razão no iluminismo, a civilização
ocidental é apresentada como aquela que «traiu a imanência»264, onde
o «ser deixou de estar na phisis e passou a estar no logos»265, «o
pensamento se desligou da mão»266. Nos versos de Sophia esta traição
será aludida através das «Fúrias» e da cidade «Elsinore».
O
poema «Fúrias», segundo a própria Sophia, versa «justamente sobre este mundo de
destruição do quotidiano, de destruição do tempo da nossa vida»267.
Castigar os crimes suscetíveis de destruir
a harmonia e a ordem social é a missão das «Fúrias», as deusas violentas e
vingadoras, que nasceram das gotas de sangue de que a mutilação de Úrano
impregnou a terra. Ironicamente apresentadas como «a peculiar maravilha do
mundo moderno» e completamente dessacralizadas, as «Fúrias» neste poema não só
castigam os criminosos, mas estendem a atitude de vingança sobre todos os
homens ao serem responsáveis por um progresso alienante e voraz que procede à
subversão da «humilde paz quotidiana»269, representando, desta
forma, «todas aquelas implacáveis tarefas quotidianas que privam o homem de
qualquer tipo de aliança com o mundo»270. Agora elas não procuram os
criminosos, mas «Preferem vítimas inocentes / Que de forma nenhuma as
provocaram». O seu poder devastador e persistente manifestado, invisivelmente,
«Sem rosto e sem máscara / Sem nome e sem sopro», em múltiplas atuações, leva a
poetisa a identificá-las com as terríveis «hidras de mil cabeças» com as quais
os homens, privados de uma força hercúlea, se debatem sem as poder vencer.
São as «Fúrias», com o seu maléfico
domínio, que impossibilitam as sociedades modernas de fruir o que de melhor há
no mundo, como o «sumo da fruta», a «fragrância da flor» e o «marinho
alvoroço», tal é o ritmo alucinante a que estão votadas, «o tempo é
transformado / Em tarefa e pressa / A contratempo». Desta forma, o homem
«torna-se vítima de si mesmo»271.
O que há de mais doloroso em poemas como
este é a «consciência da falta coletiva e a impossibilidade de quem quer que
seja poder deixar de partilhar nessa falta»272. Helena Langrouva
chega mesmo a afirmar que a «consciência do “pecado organizado” do homem e da
sociedade por ele criada constitui um dos fulcros da obra de Sophia»273.
E, na verdade, na obra de Sophia existem referências ao «pecado burguês»274,
ao «pecado organizado»275, àqueles «que atormentam o ar com os seus
pecados»276, ao não pagar o justo salário que é um «pecado que brada
aos céus»277 e ao «pecado da revolta»278. A palavra
pecado, não sendo muito frequente na escrita de Sophia, está sempre associada à
sua dimensão social, como transparece no poema «Elsinore»279:
No palácio dos Átridas como em Elsinore
Tudo era cavernoso – as paredes
Eram grossas o espaço excessivo e sonoro
Roucas as vozes da maldição antiga
Porém em Micenas o sangue era exposto
E
corria vermelho como num grande talho
Sujando apenas as mãos dos assassinos
E a água da bandeira –
Lá fora o rio a luz
Continuavam limpos e transparentes
O crime era um corpo estranho circunscrito
Não pertencia à natureza das coisas
Em Elsinore ao contrário o mal era um veneno
Subtil
Invadia o ar e a luz – penetrava
Os ouvidos as narinas o próprio pensamento
–
O amor era impossível e ninguém podia
Libertar-se:
O inferno vomitava sua pestilência invadia
As veias e os rios:
No entanto o mal não se via era apenas
Um leve sabor a podre que fazia parte
Da natureza das coisas280.
A
oposição mar/cidade, já desenvolvida anteriormente, neste poema surge na
contraposição entre a unidade e a perfeição do mundo grego (Átridas) e o caos
do mundo contemporâneo (Elsinore). No mundo grego, ordenado e harmonioso, o
miasma estava circunscrito aos lugares do crime e aos criminosos, tal como
convoca na invocação dos Átridas: «O crime era um corpo estranho circunscrito /
Não pertencia à natureza das coisas», o mal não vazava para o exterior,
contaminando somente quem o praticava: «Sujando apenas as mãos dos assassinos /
E a água da banheira - / Lá fora o rio a luz / Continuavam limpos e
transparentes». Já em Elsinore, reino da Dinamarca, o mal revestia-se de uma
subtil complexidade, «um veneno subtil», e expandia-se pelo mundo inteiro,
tornando-se incontrolável, «Invadia o ar e a luz», «As veias e os rios». Os
horrores não eram exorcizados e «ninguém podia / Libertar-se», pois, ao
contrário de Micenas, o mal «fazia parte / Da natureza das coisas». Neste mundo
contemporâneo, todo o corpo social se torna responsável, todos pactuam, todos o
alimentam: «o mal não se via era apenas / Um leve sabor a podre que fazia parte
/ Da natureza das coisas».
Esse
mal surge na metáfora englobante do mundo contemporâneo, um mundo cada vez mais
experimentado como caos sem horizontes que é ainda evocado nos dois últimos
versos de «Não te esqueças nunca», de Ilhas: «Não esqueças nunca
Treblinka e Hiroshima / o horror o terror a suprema ignomínia»281.
Daí que por mais que o sujeito poético» suba e desça montanhas e colinas,
atravesse rios, na procura de um de um «país sem mal»282, tal como o
revolucionário do seu tempo, nada tinha «encontrado»283.
Emanuel Sousa, Poesia e
Transcendência: Uma leitura teológica da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Teologia, 2010 (data de defesa da
tese: 2012)
_____________
264 Carta de Sophia de Mello Breyner Andresen a
Jorge de Sena, 18 de novembro de 1972. In Correspondência: Sophia Mello
Breyner e Jorge de Sena, p. 124.
265 Carta de Sophia de Mello Breyner Andresen a
Jorge de Sena, 18 de novembro de 1972. In Correspondência: Sophia Mello
Breyner e Jorge de Sena, p. 124.
266 ANDRESEN – O Nome das Coisas, p. 43.
267 Entrevista a J. A.
Sousa. Jornal de Notícias (28 de março de 1990) 9.
269 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p.
43.
270 CUNHA, António M. dos
Santos – Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos gregos e encontro com o
real. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 120.
271 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p.
43.
272 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p.
43.
273 LANGROUVA – De Homero a Sophia, p. 162.
274 ANDRESEN – Posfácio, p. 74.
275 ANDRESEN – Posfácio, p. 74.
276 ANDRESEN – Geografia, p. 23.
277 ANDRESEN – Contos Exemplares, p. 58.
278 ANDRESEN – Contos Exemplares, p. 65.
279 Elsinore é uma
localidade situada na Dinamarca, ligada à peça de Hamlet de William
Shakespeare, traduzida por Sophia, publicada pela Editora Lello, em 1987.
280 ANDRESEN – Ilhas,
p. 68.
281 ANDRESEN – Ilhas, p. 16.
282 ANDRESEN – Ilhas,
p. 56.
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“Fúrias,
Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-17. Disponível
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