Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei.
Sophia de Mello Breyner Andresen
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões
Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c.
1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed.,
revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa,
Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013,
prefácio de Manuel Gusmão.
No poema
«Eu chamei-te para ser», o sujeito poético afirma a razão do seu apelo ao
destinatário, com o qual quis iniciar uma caminhada a dois («Chamei-te para
sonhar o que sonhaste»), rompendo com a identidade inicial («Chamei-te para não
ser eu»).
A
metáfora «a torre» («Que viste»; «que eu fui») vista/sonhada pelo destinatário
e procurada pelo sujeito poético que quer ajustar-se, coincidir com esse sonho,
é a representação da superioridade difícil de alcançar, o sonho, em si mesmo,
alto e erguido ao céu.
(E. Pinto et alii, Plural - Língua Portuguesa 10.º Ano. Livro
do Professor, 2003, p. 39)
***
Invocado pelo sujeito poético, esse tu
constitui o próprio sujeito, que aqui já busca um processo de identificação
com esse outro: “Chamei-te
para me perder nos teus caminhos”. É a tentativa
de despersonalizar-se que fica
impressa no verso “Pedi-te que
apagasses / A torre que eu fui a
minha vida [...]”, tentando tornar possível a vivência de um presente contínuo, sem fronteiras,
livre da prisão temporal do quotidiano, como afirma Pereira Soares (2000), a fim
de reformular sua própria existência.
Isso porque há em alguns poemas um
abatimento advindo do sentimento de plenitude perdida, em que o sujeito,
segundo Pereira Soares (2000), intromete-se conscientemente no processo
imanente, afastando-se de si mesmo:
Numa disciplina constante procuro a lei
da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm máscaras e véus com
que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa
das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços,
para o vazio horror das voltas do caminho.
(in Coral)
No poema, o sujeito busca, por meio da
disciplina, a contenção entrevista na expressão “equilíbrio
dos meus passos”, que não é conseguida devido às “máscaras e véus” com que as coisas
se revestem. Quando o sujeito consegue apagar a si mesmo, “quando eu um momento
espantada me esqueço”, a “força perversa” das coisas o retoma.
Segundo a conceção teórica de Collot
(2013a), pode-se afirmar que Sophia enquanto poetisa parece projetar-se para fora
de si, na imagem das coisas, as quais, por possuírem máscaras, não podem
garantir a contenção que a poeta busca quando efetua tal projeção. Ainda que essa contenção não se dê de todo,
tal como no vidente de Rimbaud, é “em seu sobressalto pelas coisas inaudíveis e
inomináveis” que a poeta descobre o desconhecido que traz em si, vindo a se
tornar “prisioneira de ninguém”, já que não se identifica de todo com essa
outra entidade.
Kelly Delgado, Uma
leitura aproximativa de João Cabral de Melo Neto com Alberto Caeiro e Sophia de
Mello Breyner Andresen. Goiânia-GO, UFG, 2018
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“Eu
chamei-te para ser a torre, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de
Poesia, 2022-10-14. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/eu-chamei-te-para-ser-torre-sophia.html
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