terça-feira, 11 de outubro de 2022

O Hospital e a Praia, Sophia Andresen

Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos© D.R.

 

O HOSPITAL E A PRAIA

 

E eu caminhei no hospital

Onde o branco é desolado e sujo

Onde o branco é a cor que fica onde não há cor

E onde a luz é cinza

 

E eu caminhei nas praias e nos campos

O azul do mar e o roxo da distância

Enrolei-os em redor do meu pescoço

Caminhei na praia quase livre como um deus

 

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor1

Nem me lembrei de ti bebendo o vento

O vento era vento e a pedra pedra

E isso inteiramente me bastava

 

E nos espaços da manhã marinha

Quase livre como um deus eu caminhava

 

E todo o dia vivi como uma cega

 

Porém no hospital eu vi o rosto

Que não é pinheiral nem é rochedo

E vi a luz como cinza na parede

E vi a dor absurda e desmedida

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

_______

1 Senhor: Deus.

***

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema «O hospital e a praia», de Sophia de Mello Breyner Andresen.

1. Explicite a relação existente entre o título e a estrutura do poema.

2. Refira um efeito de sentido produzido pala anáfora «E eu caminhei» (vv. 1 a 5).

3. Interprete o valor simbólico das seguintes palavras: «branco» (vv. 2 e 3), «cinza» (vv. 4 e 18), «azul» e «roxo» (v. 6).

5. Caracterize a atitude do sujeito poético descrita ao longo da segunda, da terceira e da quarta estrofes.

6. Comente as relações de sentido que se estabelecem entre o verso «E todo o dia vivi como uma cega» (v. 15) e a última estrofe.

 

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A representação sucessiva dos dois espaços nomeados no título - o «Hospital» e a «Praia» - é a linha estruturadora do texto até ao verso 15. Assim, à evocação do «eu» caminhando no espaço fechado e disfórico do «hospital» (vv. 1-4), opõe-se a representação do «eu» caminhando «nas praias e nos campos» (v. 5), isto é, no espaço aberto da natureza, logo singularizado na «praia», lugar da luz e da beleza plenas (vv. 6-14). O confronto estabelecido entre os dois espaços experienciados pelo «eu» organiza o texto, acentuando a radical diferença entre ambos. A última estrofe, convocando de novo o «hospital», reforça tal contraposição: o espaço da plenitude e da liberdade surge enquadrado pelas duas estrofes que referem o espaço da privação e da dor (vv. 1-4 e 16-19).

 

2. A anáfora «E eu caminhei» (vv. 1 e 5) produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- marca o início de cada uma das representações do espaço, delimitando-as no poema;

- assinala o «eu» como o elemento instaurador de ambas as representações do espaço;

- põe em relevo a importância do «eu» e do seu movimento em relação aos espaços representados;

- acentua, por contraste com a repetição, o antagonismo entre os espaços representados;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

 

3. As palavras «branco» e «cinza» caracterizam o espaço do «hospital», conotando-o como um lugar de dor e de morte: o «branco», descrito como «desolado e sujo», é a negação da própria brancura e, mesmo, da cor como elemento positivo («a cor que fica onde não há cor»); «cinza», que pode ser lida quer como restos do fogo quer como a cor cinzenta, é também o símbolo da negatividade, da não-luz, da tristeza e da falta de esperança.

    O «azul» e o «roxo» - cores da «praia», associadas ao «mar» e à «distância» - conotam os seguintes sentidos: vida, espaço e liberdade, plenitude da natureza.

 

4. O sujeito poético é representado, ao longo das segunda, terceira e quarta estrofes, caminhando «nas praias e nos campos», numa atitude que traduz:

- um sentimento de íntimo acordo com a natureza;

- uma sensação de liberdade quase divina;

- a satisfação plena dos sentidos;

- um estado de felicidade e de plenitude;

- …

Nota - A apresentação de três elementos é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspectos de conteúdo.

 

5. O verso «E todo o dia vivi como uma cega», que conclui a descrição da vivência da «praia», apresenta tal vivência como um estado de cegueira do «eu», isto é, de alienação relativamente à realidade nua e crua. O significado desta alienação clarifica-se nas relações semânticas que este verso estabelece com a última estrofe em que, de novo, é convocado o «hospital». Assim, a conjunção adversativa «Porém» marca a oposição entre a atitude do «eu» na «praia» e no «hospital»; a repetição da forma verbal «vi», que ocorre três vezes e duas delas em posição anafórica, intensifica e sublinha o valor da evidência do sofrimento testemunhado no «hospital», acentuando, por antítese, o significado da expressão «vivi como uma cega», alusiva à «praia». Em suma, a cegueira de que o «eu» se recrimina é a da sua consciência, ofuscada pela luz da «praia» e «cega» para a realidade da «dor» humana, «absurda e desmedida», brutalmente revelada no «hospital».

 

Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B, 1.ª fase, 2.ª chamada. Portugal, GAVE, 2002

 

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     Textos de apoio

 

O espaço natural e a identidade do sujeito

Em “O Hospital e a Praia”, publicado em Livro Sexto, observa-se mais uma vez o conflito entre o espaço natural, virgem e imaculado, e o espaço habitado pelo homem, de onde irrompe a escuridão e o sofrimento. Nesse poema, é interessante observar como elementos simbólicos inerentes ao conceito de limpidez e claridade assumem sentidos opostos:

E eu caminhei no Hospital

Onde o branco é desolado e sujo

Onde o branco é a cor que fica quando não há cor

E onde a luz é cinza

 

Na estrofe acima, que abre o poema, é possível observar que, conforme as imagens inerentes ao espaço natural se deslocam para o ambiente corrompido pelo homem, elas sofrem mudanças em seu sentido original. Aqui, o conceito de pluralidade das imagens, de Octavio Paz, pode ser identificado na mudança que a simbologia da cor branca e da luz sofrem. Antes associado ao conceito daquilo que é puro, o branco agora remete à ideia de algo sujo. Sempre ligada à ideia de vida, a luz, por sua vez, ganha nuances sombrias, na medida em que se revela cinza no hospital. Ao tratar dessa ambivalência de sentidos, o poeta e ensaísta mexicano aponta:

As palavras se conduzem como seres caprichosos e autônomos. Sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, ‘aquele e o mais além’. O pensamento não se resigna; forçado a usá-las, uma e outra vez a linguagem se rebela e rompe os diques da sintaxe e do dicionário (PAZ, 2005, p. 49)

 

Na mesma linha, Bachelard chama atenção para a natureza instável da imagem, que, além de jamais se prender a sentidos definitivos, também caminha sobre a tênue linha da tensão:

E quanto às imagens, logo fica evidente que atrair e repelir não resultam em experiências contrárias. Os termos são contrários. Ao estudarmos a eletricidade ou o magnetismo, podemos falar simetricamente de repulsão e atração. Basta uma ideia de sinais algébricos. Mas as imagens não aceitam ideias tranquilas, nem sobretudo ideias definitivas. Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens (BACHELARD, 2008, p. 19).

 

Mas, se os versos iniciais de “O hospital e a praia” configuram um cenário invertido, na segunda estância, o espaço natural surge para confrontar o ambiente maculado pelo homem; fazendo frente à ideia de clausura que um espaço fechado como o hospital pode vir a sugerir, o sujeito defronta-se agora com um espaço aberto, a praia, onde ele caminha “livre como um deus”, como é possível observar nos versos que seguem:

E eu caminhei nas praias e nos campos

O azul do mar e o roxo da distância

Enrolei-os em redor do meu pescoço

Caminhei na praia quase livre como um deus

 

Na medida em que o sujeito busca fazer da vastidão do meio natural um prolongamento do seu ser, é interessante traçar uma relação entre a profundidade do mundo e a profundidade do ser íntimo da qual fala Bachelard ao afirmar que “diante de uma imensidade evidente, como a imensidade da noite, o poeta pode nos indicar os caminhos da profundidade íntima” (BACHELARD, 2008, p. 194). Nesse contexto, ao enrolar em redor do seu pescoço a vastidão das praias, do mar e dos campos, o sujeito procura a grandeza íntima que o mundo exterior “vem ajudar a revelar”, segundo Bachelard (p.197).

Nessa busca pela comunhão com o natural, é interessante, por fim, observar que o real natural por si só já basta para o “eu” poético. É como se diante do esplendor desse meio distante da intervenção do homem os questionamentos e as explicações fossem supérfluas:

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor

Nem me lembrei de ti bebendo o vento

O vento era vento e a pedra pedra

E isso inteiramente me bastava

 

E nos espaços da manhã marinha

Quase livre como um deus eu caminhava

 

Porém no hospital eu vi o rosto

Que não é pinheiral nem é rochedo

E vi a luz como cinza na parede

E vi a dor absurda e desmedida

 

Gabriela Cerqueira, Mar de concreto: uma leitura da cidade e de sua relação com o mar nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2011

 

***

 

O mito e a condição humana na obra poética de Sophia

São inúmeros os poemas que apresentam a cidade como o espaço do terror, da destruição máxima, do isolamento e da completa degradação do ser humano. Um deles diz o seguinte:

Cidade

As ameaças quase visíveis surgem

Nascem

Do exausto horizonte mortas luas

E estrangulada sou por grandes polvos

Nas tristezas das ruas.

(in Livro Sexto, 1962)

 

A cidade atualiza e, de certo modo, consolida o mito da queda original, que narra o destino de separação do homem, com a consequente rutura de sua integração harmoniosa com o universo, o que põe fim a um tempo de bem-aventurança, de plenitude e de alegria. A representação da cidade não é apenas mímesis de um espaço real, mas projeta também uma dimensão mítica à encenação da trajetória do homem sobre a terra, empreendida na obra de Sophia. Para se contrapor a esta imagem do mundo degradado, a poeta cria uma série de outras imagens que simbolizam espaços sagrados, fontes de restauração e de cura do homem. É o caso da “praia”, espaço sagrado que se opõe ao “hospital”, imagem metonímica da cidade, que reforça a ideia de que o homem está doente e precisa ser curado.

Por pertencer ao campo semântico relacionado à doença e à busca de cura, a imagem do “hospital” [no poema “O hospital e a praia”] instaura a reflexão acerca do estado doentio do homem contemporâneo. A imagem da praia se opõe à do hospital, já no próprio título, pela conjunção “e”, que estabelece dupla relação entre os termos. Ambos se aproximam e se repelem ao mesmo tempo.

Por estar colocado no mesmo campo semântico de “hospital”, o vocábulo “praia” tem seus sentidos denotativos ampliados, sendo tomada como espaço que se destina à cura, embora apresente conotações inteiramente opostas. O hospital é o local da “dor absurda e desmedida”, conotada pelo “branco desolado e sujo” e pela “luz cinza”, enquanto a praia é configurada como um espaço inundado pelo “azul do mar”.

Repleta de ar puro, de beleza, de sossego, a praia é naturalmente um espaço que favorece a saúde física. Tomada, porém, em suas dimensões míticas, trata-se de um espaço que também pode proporcionar a cura dos males de raiz metafísica, possibilitando a restauração integral do homem, ao promover sua religação com o cosmos. Por sua contiguidade ao mar, outro poderoso espaço mítico na estética andresiana, a carga semântica de extrato metafísico fica ainda mais ampliada.

Pode-se concluir que a cura almejada pelo eu lírico, para o homem, diz respeito àquela rutura que resultou de seu antigo desligamento do cosmos, representado metonimicamente pela praia.

Ao mesmo tempo em que contempla o mundo pairando seu olhar sobre espaços mitificados, que trazem um sopro de esperança e de renovação diante do abismo e da perene destruição, a poeta também tece dura crítica ao estado atual deste universo, como obra da insanidade, da soberba, do desejo desmedido de poder e dominação.

Embora seja eminentemente crítica da sociedade moderna, trata-se de uma poesia mergulhada numa aura de positividade e de celebração da vida, propondo uma reconstrução da mesma por meio da restauração dos mitos. Para pensar mais neste aspeto seria importante determo-nos um pouco mais sobre a trajetória mítica do homem. Ou, em outras palavras, cabe aqui uma reflexão sobre o mito da origem e da queda.

 

Maria Fernandes, “O mito e a condição humana na obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen”. Revista Texto Poético | ISSN: 1808-5385 | Vol. 16 (1o sem-2014) | p. 93-122

 

Poderá também gostar de:

 

  • Ocorrência do termo “cidade” na Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen - compilação de textos.

 

 


O Hospital e a Praia, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-11. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/o-hospital-e-praia-sophia-andresen.html


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