Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos© D.R. |
O HOSPITAL E A
PRAIA
E eu caminhei
no hospital
Onde o branco é
desolado e sujo
Onde o branco é
a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é
cinza
E eu caminhei
nas praias e nos campos
O azul do mar e
o roxo da distância
Enrolei-os em
redor do meu pescoço
Caminhei na
praia quase livre como um deus
Não perguntei
por ti à pedra meu Senhor1
Nem me lembrei
de ti bebendo o vento
O vento era
vento e a pedra pedra
E isso
inteiramente me bastava
E nos espaços
da manhã marinha
Quase livre
como um deus eu caminhava
E todo o dia
vivi como uma cega
Porém no
hospital eu vi o rosto
Que não é
pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como
cinza na parede
E vi a dor
absurda e desmedida
Sophia de Mello Breyner Andresen
LIVRO SEXTO,
1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa,
Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª
ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores •
6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª
edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo
Rubim.
_______
1
Senhor: Deus.
***
Apresente, de forma bem estruturada, as
suas respostas ao questionário sobre o poema «O hospital e a praia», de Sophia
de Mello Breyner Andresen.
1. Explicite a relação existente entre o título
e a estrutura do poema.
2. Refira um efeito de sentido produzido pala
anáfora «E eu caminhei» (vv. 1 a 5).
3. Interprete o valor simbólico das seguintes
palavras: «branco» (vv. 2 e 3), «cinza» (vv. 4 e 18), «azul» e «roxo» (v. 6).
5. Caracterize a atitude do sujeito poético
descrita ao longo da segunda, da terceira e da quarta estrofes.
6. Comente as relações de sentido que se
estabelecem entre o verso «E todo o dia vivi como uma cega» (v. 15) e a última
estrofe.
Explicitação de cenários de resposta:
1.
A representação sucessiva dos dois espaços nomeados no título - o «Hospital» e
a «Praia» - é a linha estruturadora do texto até ao verso 15. Assim, à evocação
do «eu» caminhando no espaço fechado e disfórico do «hospital» (vv. 1-4),
opõe-se a representação do «eu» caminhando «nas praias e nos campos» (v. 5),
isto é, no espaço aberto da natureza, logo singularizado na «praia», lugar da
luz e da beleza plenas (vv. 6-14). O confronto estabelecido entre os dois
espaços experienciados pelo «eu» organiza o texto, acentuando a radical
diferença entre ambos. A última estrofe, convocando de novo o «hospital»,
reforça tal contraposição: o espaço da plenitude e da liberdade surge
enquadrado pelas duas estrofes que referem o espaço da privação e da dor (vv.
1-4 e 16-19).
2.
A anáfora «E eu caminhei» (vv. 1 e 5) produz, entre outros, os seguintes
efeitos de sentido:
- marca o início de cada uma das
representações do espaço, delimitando-as no poema;
- assinala o «eu» como o elemento
instaurador de ambas as representações do espaço;
- põe em relevo a importância do «eu» e do
seu movimento em relação aos espaços representados;
- acentua, por contraste com a repetição, o
antagonismo entre os espaços representados;
- …
Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta
requer a explicitação de um efeito de sentido.
3.
As palavras «branco» e «cinza» caracterizam o espaço do «hospital», conotando-o
como um lugar de dor e de morte: o «branco», descrito como «desolado e sujo», é
a negação da própria brancura e, mesmo, da cor como elemento positivo («a cor
que fica onde não há cor»); «cinza», que pode ser lida quer como restos do fogo
quer como a cor cinzenta, é também o símbolo da negatividade, da não-luz, da
tristeza e da falta de esperança.
O «azul» e o «roxo» - cores da «praia»,
associadas ao «mar» e à «distância» - conotam os seguintes sentidos: vida,
espaço e liberdade, plenitude da natureza.
4.
O sujeito poético é representado, ao longo das segunda, terceira e quarta
estrofes, caminhando «nas praias e nos campos», numa atitude que traduz:
-
um sentimento de íntimo acordo com a natureza;
-
uma sensação de liberdade quase divina;
-
a satisfação plena dos sentidos;
-
um estado de felicidade e de plenitude;
-
…
Nota - A apresentação de três elementos é
considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos
aspectos de conteúdo.
5.
O verso «E todo o dia vivi como uma cega», que conclui a descrição da vivência
da «praia», apresenta tal vivência como um estado de cegueira do «eu», isto é,
de alienação relativamente à realidade nua e crua. O significado desta
alienação clarifica-se nas relações semânticas que este verso estabelece com a
última estrofe em que, de novo, é convocado o «hospital». Assim, a conjunção
adversativa «Porém» marca a oposição entre a atitude do «eu» na «praia» e no
«hospital»; a repetição da forma verbal «vi», que ocorre três vezes e duas
delas em posição anafórica, intensifica e sublinha o valor da evidência do
sofrimento testemunhado no «hospital», acentuando, por antítese, o significado
da expressão «vivi como uma cega», alusiva à «praia». Em suma, a cegueira de
que o «eu» se recrimina é a da sua consciência, ofuscada pela luz da «praia» e
«cega» para a realidade da «dor» humana, «absurda e desmedida», brutalmente
revelada no «hospital».
Exame Nacional do Ensino
Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto).
Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B, 1.ª fase,
2.ª chamada. Portugal, GAVE, 2002
***
Textos de apoio
O espaço natural e a identidade do sujeito
Em “O Hospital e a Praia”, publicado em Livro Sexto, observa-se
mais uma vez o conflito entre o espaço natural, virgem e imaculado, e o espaço habitado
pelo homem, de onde irrompe a escuridão e o sofrimento. Nesse poema, é
interessante observar como elementos simbólicos inerentes ao conceito de
limpidez e claridade assumem sentidos opostos:
E eu caminhei no Hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica quando não há cor
E onde a luz é cinza
Na estrofe acima, que abre o poema, é possível observar que, conforme as
imagens inerentes ao espaço natural se deslocam para o ambiente corrompido pelo
homem, elas sofrem mudanças em seu sentido original. Aqui, o conceito de
pluralidade das imagens, de Octavio Paz, pode ser identificado na mudança que a
simbologia da cor branca e da luz sofrem. Antes associado ao conceito daquilo
que é puro, o branco agora remete à ideia de algo sujo. Sempre ligada à ideia
de vida, a luz, por sua vez, ganha nuances sombrias, na medida em que se revela
cinza no hospital. Ao tratar dessa ambivalência de sentidos, o poeta e ensaísta
mexicano aponta:
As palavras se conduzem como seres caprichosos e autônomos.
Sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, ‘aquele e o mais além’. O
pensamento não se resigna; forçado a usá-las, uma e outra vez a linguagem se
rebela e rompe os diques da sintaxe e do dicionário (PAZ, 2005, p.
49)
Na mesma linha, Bachelard chama atenção para a natureza instável da imagem,
que, além de jamais se prender a sentidos definitivos, também caminha sobre a
tênue linha da tensão:
E quanto às imagens, logo fica evidente que atrair
e repelir não resultam em experiências contrárias. Os termos são contrários. Ao
estudarmos a eletricidade ou o magnetismo, podemos falar simetricamente de
repulsão e atração. Basta uma ideia de sinais algébricos. Mas as imagens não
aceitam ideias tranquilas, nem sobretudo ideias definitivas. Incessantemente a
imaginação imagina e se enriquece com novas imagens (BACHELARD,
2008, p. 19).
Mas, se os versos iniciais de “O hospital e a praia” configuram um cenário
invertido, na segunda estância, o espaço natural surge para confrontar o
ambiente maculado pelo homem; fazendo frente à ideia de clausura que um espaço
fechado como o hospital pode vir a sugerir, o sujeito defronta-se agora com um
espaço aberto, a praia, onde ele caminha “livre como um deus”, como é possível
observar nos versos que seguem:
E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus
Na medida em que o sujeito busca fazer da vastidão do meio natural um prolongamento
do seu ser, é interessante traçar uma relação entre a profundidade do mundo e a
profundidade do ser íntimo da qual fala Bachelard ao afirmar que “diante de uma
imensidade evidente, como a imensidade da noite, o poeta pode nos indicar os
caminhos da profundidade íntima” (BACHELARD, 2008, p. 194). Nesse contexto, ao
enrolar em redor do seu pescoço a vastidão das praias, do mar e dos campos, o
sujeito procura a grandeza íntima que o mundo exterior “vem ajudar a revelar”,
segundo Bachelard (p.197).
Nessa busca pela comunhão com o natural, é interessante, por fim, observar
que o real natural por si só já basta para o “eu” poético. É como se diante do
esplendor desse meio distante da intervenção do homem os questionamentos e as
explicações fossem supérfluas:
Não perguntei por ti à pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava
E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus eu caminhava
Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida
Gabriela Cerqueira, Mar de concreto: uma leitura da cidade e de sua relação com o
mar nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH,
2011
***
O mito e a condição humana na obra poética de
Sophia
São inúmeros os poemas que apresentam a cidade como o espaço do
terror, da destruição máxima, do isolamento e da completa degradação do ser
humano. Um deles diz o seguinte:
Cidade
As ameaças quase visíveis surgem
Nascem
Do exausto horizonte mortas luas
E estrangulada sou por grandes polvos
Nas tristezas das ruas.
(in Livro Sexto, 1962)
A cidade atualiza e, de certo modo, consolida o mito da queda original,
que narra o destino de separação do homem, com a consequente rutura de sua
integração harmoniosa com o universo, o que põe fim a um tempo de
bem-aventurança, de plenitude e de alegria. A representação da cidade não é
apenas mímesis de um espaço real, mas projeta também uma dimensão mítica à
encenação da trajetória do homem sobre a terra, empreendida na obra de Sophia.
Para se contrapor a esta imagem do mundo degradado, a poeta cria uma série de
outras imagens que simbolizam espaços sagrados, fontes de restauração e de cura
do homem. É o caso da “praia”, espaço sagrado que se opõe ao “hospital”,
imagem metonímica da cidade, que reforça a ideia de que o homem está doente e
precisa ser curado.
Por pertencer ao campo semântico relacionado à doença e à busca de
cura, a imagem do “hospital” [no poema “O hospital e a praia”] instaura
a reflexão acerca do estado doentio do homem contemporâneo. A imagem da praia se
opõe à do hospital, já no próprio título, pela conjunção “e”, que estabelece
dupla relação entre os termos. Ambos se aproximam e se repelem ao mesmo tempo.
Por estar colocado no mesmo campo semântico de “hospital”, o vocábulo
“praia” tem seus sentidos denotativos ampliados, sendo tomada como espaço que
se destina à cura, embora apresente conotações inteiramente opostas. O hospital
é o local da “dor absurda e desmedida”, conotada pelo “branco desolado e sujo”
e pela “luz cinza”, enquanto a praia é configurada como um espaço inundado pelo
“azul do mar”.
Repleta de ar puro, de beleza, de sossego, a praia é naturalmente um
espaço que favorece a saúde física. Tomada, porém, em suas dimensões míticas,
trata-se de um espaço que também pode proporcionar a cura dos males de raiz
metafísica, possibilitando a restauração integral do homem, ao promover sua
religação com o cosmos. Por sua contiguidade ao mar, outro poderoso espaço
mítico na estética andresiana, a carga semântica de extrato metafísico fica ainda
mais ampliada.
Pode-se concluir que a cura almejada pelo eu lírico, para o homem, diz
respeito àquela rutura que resultou de seu antigo desligamento do cosmos,
representado metonimicamente pela praia.
Ao mesmo tempo em que contempla o mundo pairando seu olhar sobre
espaços mitificados, que trazem um sopro de esperança e de renovação diante do
abismo e da perene destruição, a poeta também tece dura crítica ao estado atual
deste universo, como obra da insanidade, da soberba, do desejo desmedido de
poder e dominação.
Embora seja eminentemente crítica da sociedade moderna, trata-se de
uma poesia mergulhada numa aura de positividade e de celebração da vida,
propondo uma reconstrução da mesma por meio da restauração dos mitos. Para
pensar mais neste aspeto seria importante determo-nos um pouco mais sobre a
trajetória mítica do homem. Ou, em outras palavras, cabe aqui uma reflexão sobre
o mito da origem e da queda.
Maria Fernandes, “O mito e a condição humana na obra poética de Sophia de Mello
Breyner Andresen”. Revista Texto Poético | ISSN: 1808-5385 | Vol. 16 (1o sem-2014)
| p. 93-122
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também gostar de:
- Ocorrência do termo “cidade” na Obra Poética de Sophia de
Mello Breyner Andresen - compilação de textos.
- Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17
“O
Hospital e a Praia, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia,
2022-10-11. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/o-hospital-e-praia-sophia-andresen.html
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