Nereida reclinada nas costas de um cavalo-marinho, fresco de Pompéia |
AS NEREIDES1
Pudesse eu reter o teu fluir, ó quarto
Reter para sempre o teu quadrado branco
Denso de silêncio puro
E vida atenta
Reter o brilho
Da Cassiopeia2 em frente da janela
Reter a queda
Das ondas sobre a areia
E habitar para sempre o teu espelho
Que dos meus ombros jamais tombasse o tempo
Marinho misterioso e antigo
Assim como as nereides
Não
perderão jamais seu manto de água
Sophia de Mello Breyner
Andresen
NAVEGAÇÕES, 1ª
ed., versão inglesa de Ruth Fainlight, versão francesa de Joaquim Vital, 1983,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Musarum officia», com um disco
gravado pela Autora • 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho • 3.ª ed., 1996,
Lisboa, Editorial Caminho • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.
__________
Notas:
1 Nereides: Ninfas do mar. Filhas de Nereu,
um dos "Velhos do Mar", e de Dóris, uma Oceânide, e netas de Oceano
(pai de Dóris), eram divindades marinhas por excelência, de grande beleza. Eram
para muitos a personificação das ondas do mar e do aspeto jovial do mar. Seriam
mais de cinquenta e, para alguns, mesmo cem. Entre elas, são bastante
conhecidas Anfitrite, Calipso, Dione, Galateia, Janira, Orítia, Proto, Tétis,
entre outras. Tétis ficou famosa também por ser mãe de Aquiles, Anfitrite por
ser esposa de Poseidon, deus do mar - o mais volúvel dos deuses em questões
amorosas, deixando o maior número de filhos extraconjugais, superando mesmo
Zeus - ou Orítia, tida como filha de Erecteu, rei de Atenas. As Nereides faziam
parte, com os Tritões, do agitado cortejo de divindades do Mar. As Nereides
viviam no fundo do mar, de acordo com a tradição, num palácio do pai,
sentando-se num trono de ouro. O seu tempo era ocupado a fiar, a tecer e a
cantar, para além de se divertirem a cavalgar golfinhos ou cavalos-marinhos nas
ondas, como diziam os poetas gregos e os posteriores, com os seus longos
cabelos a boiar nas águas e alegremente a nadar e saltar por entre golfinhos e
tritões. A sua postura nos episódios fabulosos da mitologia grega era quase
sempre a de meras espectadoras, observando ou surgindo como meras figurantes,
raramente como atuantes ou decisivas em acontecimentos maiores. Por exemplo,
limitaram-se a consolar sua irmã Tétis, chorando com ela a morte de Aquiles e
de Pátroclo. Quando intervinham, era sempre de forma subalterna ou discreta,
como sucedeu quando ajudaram Hércules (Héracles) a obter de Nereu, seu pai,
indicações seguras para que o herói encontrasse o caminho para o país das
Hespérides. Entre outros episódios, as Nereides também estiveram presentes
quando Perseu libertou Andrómeda. (Nereide na Infopédia [em linha]. Porto:
Porto Editora. Disponível em https://www.infopedia.pt/$nereide)
2 Cassiopeia: Constelação Boreal - constelação
vizinha do Polo Norte, com cinco estrelas muito visíveis, em forma de W, e
outras menos visíveis, algumas variáveis e múltiplas.
I – Comentário de texto
Elabore um comentário do poema “As Nereides”
que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- tema e desenvolvimento;
- tempos verbais e sua dimensão semântica;
- identificação e descodificação dos
elementos simbólicos;
- alusões ao mundo antigo e sua
exemplificação.
II – Texto expositivo-argumentativo
Fazendo apelo à sua experiência de leitura, comente o excert0 que se segue, num texto expositivo-argumentativo bem estruturado, de 200 a 300 palavras, tendo em conta a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Como ela própria o diz: "O poema não
fala de uma vida ideal, mas de uma vida concreta". E nesse seu falar a
transfigura. É a busca de uma "relação justa com a pedra. com o rio, com a
árvore". E quem procura uma relação justa com as coisas procura
necessariamente "uma relação justa com o homem".
Manuel Alegre, Arte de Marear
I – Proposta
de correção do comentário de texto
O poema “As Nereides”, de Sophia de Mello
Breyner Andresen, é perfeitamente exemplificativo do desejo da poetisa em
adquirir um tempo absoluto. Para tal, no presente da escrita, manifesta o
desejo de fixar o tempo que se reporta ao passado, provavelmente ao da sua
infância, passada na (mágica) casa de praia. Logicamente que é um tempo que se
desliga do seu normal fluir, portanto é um "tempo fora do tempo". A
referência ao "quarto", ao "quadrado branco", à
"janela", ao “espelho", às "ondas" e à
"areia" remete para um espaço no qual pôde encontrar felicidade e
harmonia. Assim, surge um tempo e um espaço associados semanticamente pela ideia
de felicidade e harmonia.
O desejo do sujeito poético manifesta-se indubitavelmente
através do imperfeito do conjuntivo ("Pudesse" e "jamais
tombasse") associado ao infinitivo dos verbos "reter" e
"habitar", indiciador de ações e de continuidade. Em oposição ao modo
conjuntivo, surge o futuro do indicativo, no último verso, ("Não perderão
jamais") a traduzir a certeza de que as "nereides", pelo facto
de serem ninfas, divindades, possuirão para sempre aquilo que lhes pertence, independentemente
da passagem do tempo. De realçar aqui o facto de o verbo "perder" vir
na forma negativa, sinónimo, portanto, de "reter para sempre" (v. 2),
ação que o sujeito de enunciação gostaria de empreender, mas que não consegue devido
à efemeridade da vida humana.
A palavra poética de Sophia de Mello
Breyner Andresen reveste-se de uma simbologia própria, como é exemplo este
poema. Assim, ao invocar o "quarto" (v. 1), procura reconquistar um
mundo perdido. Pelo espaço que representa, o "quarto" transmite
conforto, intimidade, silêncio, favorecendo o contacto com o interior - introspeção.
O elemento que permite a ligação com o exterior será a "janela",
portanto, o meio que permite alcançar a liberdade, pois favorece o contacto com
o espaço natural - a praia. O "branco" do quarto ("quadrado branco")
liga-se à ideia de pureza e tranquilidade, assim como o "espelho" retrata
pureza e brilho, pois os espelhos nunca são baços, isto é, dão sempre conta da
verdade do mundo, tal como o refere no poema "Os Espelhos". O "brilho"
associa-se à luz, portanto, à harmonia, ao mundo cósmico. A referência ao
"manto de água" liga-se também à ideia de pureza, visto ser símbolo
da vida e da sua dinâmica.
Ao longo do texto, facilmente se deteta a
ausência de referências a figuras humanas, evidenciando-se, porém, a
recorrência a divindades mitológicas, para as quais aponta o título ("As
Nereides"). Pelo facto de pertencerem a um plano "superior" ao
dos homens, o sujeito poético pretende fazer realçar a ideia de perfeição
desses seres "fora do tempo", em oposição ao homem, ser que caminha
para o caos. Ora, ao fazer alusão ao mundo antigo, o que a poetisa pretende é
tornar os homens mais divinos, mais capazes de avançar para o Bem e para a
Verdade.
Em jeito de conclusão, este é mais um dos
textos poéticos de Sophia de Mello Breyner Andresen, onde se evidencia a
procura de um tempo perfeito, equilibrado e harmonioso, ideais típicos da
antiguidade, tão prezada pela poetisa. Por outro lado, o poema revela também
uma tomada de consciência de que o ser humano é dominado pelo tempo,
contrariamente aos deuses, fator que poderá dar energias ao homem para passar
do caos ao cosmos.
II – Proposta
de correção do texto expositivo-argumentativo
A “relação justa com as coisas" e “com
o homem" apresenta-se como a preocupação primordial da poetisa, enquanto
medianeira do Absoluto, de um mundo mais autêntico.
Sophia de Mello Breyner Andresen recorre
frequentemente à antiguidade clássica, retirando-lhe o que de cósmico a
caracteriza, nomeadamente os valores de harmonia, ordem, equilíbrio e sossego.
São, no fundo, estes valores que ela gostaria de encontrar entre os homens,
porém, a realidade do mundo em que vivemos diz-lhe que a injustiça reina, pois
ainda há os que ganham "o pão com o suor do (teu) rosto" e os que
"com o suor dos outros" ganham "o pão" ("As pessoas
sensíveis").
É o mundo real, objetivo que perpassa nos
seus poemas, magicamente transformado pela palavra poética, capaz de denunciar
a sociedade caótica, através da intersecção dos quatro elementos primordiais
(ar, água, terra e fogo), tal como testemunha o poema "Praia".
Revela-se um jogo dialético entre a
perfeição e o declínio na busca de uma outra plenitude, daí surgir o carácter
moral da sua poesia.
A sua obra poética, que parte sempre do
mundo real, revela uma preocupação com a procura da justiça, o que a leva a
denunciar situações que se ligam a atos repreensíveis, tais como a corrupção e
a marginalização de quem é coerente e procura a justiça e a verdade. A este
propósito, citam-se os poemas "Porque" (1958) e "Data"
(1962), reveladores de uma pura consciência relativamente à repressão existente
durante a ditadura salazarista.
Ora, todos os aspetos mencionados relativamente à obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen surgem através de uma linguagem simbólica e alegórica, capaz de captar magicamente pela forma corno evoca o mundo concreto.
(Fonte: Dossier
Exame ‑ Português A, 12.º ano, Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003)
The Nereid Monument. From Xanthos (Lycia), modern-day Antalya Province, Turkey. 390–380 BC. Room 17, the British Museum, London |
Texto
de apoio
O desejo de comungar com
os deuses, de respirar os locais e jardins límpidos e de, com os deuses, ser
capaz de viver céu e mar introduz na obra Sophia a nostalgia do passado e
obriga a esforço para cristalizar na poesia esse tempo mítico. Assim acontece
em “No tempo dividido” – poema do livro homónimo (p. 38) –, em que o
esquecimento dos deuses arrasta a uma vida monótona, sem memória, na qual o
tempo «a si próprio se devora». A aspiração de reter o tempo aparece bem
explícita em “As Nereides”, de Geografia
(p. 52). É o anseio de apreender e segurar
cada coisa, como permanente presença – o «denso silêncio puro», a «vida atenta»
do quarto, o brilho da Cassiopeia, «a queda / Das ondas sobre a areia –, para que
o tempo não passasse e pudesse ser como as Nereides que nunca perderão «seu
manto de água».
A tentativa de tornar
permanente o momento e as coisas, num desejo de com elas se identificar e desse
modo evitar que o «tempo / marinho misterioso e antigo» tombe dos ombros, é
reiteradamente sublinhada pela repetição anafórica de ‘reter’ nas duas
primeiras estrofes e pelas aliterações dos dois primeiros versos da terceira
estância.
José Ribeiro Ferreira, “Nostalgia do passado em Sophia: o fascínio da Grécia”, in MÁTHESIS 15 2006 197-210.
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- Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17
“As
Nereides, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-20.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/as-nereides-sophia-andresen.html
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