DATA
(à maneira d’Eustache Deschamps)
Tempo de solidão e de
incerteza
Tempo de medo e tempo de
traição
Tempo de injustiça e de
vileza
Tempo de negação
Tempo de covardia e tempo
de ira
Tempo de mascarada e de
mentira
Tempo que mata quem o
denuncia
Tempo de escravidão
Tempo dos coniventes sem
cadastro
Tempo de silêncio e de
mordaça
Tempo onde o sangue não
tem rastro
Tempo de ameaça
Sophia
de Mello Breyner Andresen
LIVRO SEXTO, 1.ª
ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria
Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed.,
1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª
ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª
edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo
Rubim.
Na década das maiores convulsões
colonialistas, Sophia publica em Livro Sexto (1962) o mais
representativo poema sobre o tempo político, "Data".
A metáfora do tempo é aqui baseada na
técnica da substituição e da identidade: "tempo" é sempre uma palavra
de código para substituir a proibida palavra "Regime" (subjugador e
fascista), código que era reconhecido e utilizado por todos os poetas da época.
Esta metáfora - que obedece a um esquema simples de construção: A = B, em que A
= tempo e B = Regime - permite outras associações preposicionais, dando
preferência a conceitos abstratos, o que só serve para reforçar a subtileza da
metáfora: solidão, incerteza, medo, traição, injustiça, vileza, negação,
covardia, ira, mascarada, mentira, escravidão, conivência, silêncio, ameaça. O
tempo de tudo isto pretende ser aquilo a que Ovídio chamava Tempus edax
rerum (Metamorphoses, 15, 234), o tempo devorador de todas as
coisas, com a particularidade de o tempo político de Sophia apenas querer
devorar as coisas que são coercitivas da liberdade individual dos cidadãos.
Carlos Ceia, “As Fracturas do
Tempo Délfico na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen”, Revista da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas n.º 11. Lisboa, Edições Colibri, 1998
***
Vejamos o caso do poema “Data”. Seu
título é, contraditoriamente, “Data” sem data, tempo indeterminado pairante
sobre os homens. Sua presença quase fantasmagórica desse modo coloca em cena
uma universalização da “Data” que intitula o poema: é uma data qualquer e é toda
data que, no mundo contemporâneo, submete os homens aos desígnios da
temporalidade assombrosa do “país ocupado”. Não se consegue precisá-la porque o
tempo em que ocorre persegue os homens.
Eis um poema com três quartetos que
obedecem rigidamente a um esquema de três decassílabos iniciais seguidos de um
hexassílabo final. Os versos todos usam a anáfora inicial “Tempo de” ou “Tempo
que”. Esse padrão rítmico e de conteúdo estabelece uma circularidade interna
aos versos e que atravessa todo o poema. Constrói-se um tempo inescapável que
justifica a perseguição assinalada anteriormente: o tempo do agora condiciona
os homens aos horrores elencados através dos versos e, mesmo se houver horrores
não listados, o poema termina com os potenciais horrores em aberto: “Tempo de
ameaça”.
Ao contrário dos versos finais das
estrofes anteriores, perfeitos hexassílabos, o último verso se baseia numa
construção mais peculiar. Ele só será hexassílabo se separarmos “de” e o “a-”
de “ameaça”, o que infringe a escansão mais estabelecida tradicionalmente.
Assim, ou o lemos como pentassílabo (afrontando o padrão que o poema todo
obedece), ou o lemos como hexassílabo (exigindo uma pausa mais longa e inusual
em um momento chave do poema). A retração métrica do verso final ou a pausa
entre sílabas fundíveis induzem em todo caso a um estranhamento que não é outra
coisa senão, metaforicamente, a própria ameaça que o verso anuncia. Contribui
para essa leitura as aliterações da consoante fricativa alveolar [s] em toda a última
quadra, gerando ainda mais tensão.
Por fim, “à maneira de Eustache
Deschamps”, na epígrafe, deslinda sutilmente no poema sua intencionalidade de
teor testemunhal. Deschamps foi um poeta francês da Baixa Idade Média
responsável por estabelecer algumas formas tradicionais do cancioneiro
medieval. Faz sentido citá-lo em um poema cuja musicalidade tem marcadamente
tom medieval, seja pelas repetições, seja pela métrica padronizada. Indo além
dessa leitura, é preciso considerar que a produção lírica de Deschamps
“testemunhava” os acontecimentos históricos que o escritor vivia (DRUCIAK,
2018). Citá-lo significa, para Andresen, reconhecer sua idêntica posição de testemunha
perante os fatos que se desenrolavam, porém, tal qual Deschamps, testemunha
ativa e partícipe em seu tempo, já que nossa poeta não se esquiva da política
concreta nem de elementos políticos em sua escrita.
Samuel Pereira, O
testemunho na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen: aproximações entre
ética e estética. Goiânia, UFG-FL, 2022
***
O “tempo em que os homens renunciam” é
marcado pela solidão, pela incerteza, pelo medo, pela opressão, pela violência
e por diversos valores que podem ser reunidos em torno da ideia de injustiça.
Assim como os chacais do poema anterior, temos a ameaça novamente neste poema,
mas de forma clara e direta. A vileza se traduz nesse tempo por meio da
traição, da violência, da falsidade, da escravidão. A opressão e o cerceamento
do indivíduo aparecem pela imagem da mordaça, que cala a voz que deseja romper
esse cenário e irromper esses dias de escuridão.
Os substantivos são listados quase em
oposição às palavras que usamos para definir o projeto poético andreseniano. A
busca pela verdade, clareza, justiça, inteireza e harmonia das coisas e do
mundo aparece no poema pelo contraste apresentado pela voz poética na definição
de seu tempo. A verdade arrefece entre a falsidade, as máscaras e a traição. A
justiça não encontra pares na escravidão, no medo e na vileza. E a inteireza não
se constitui na desarmonia da ameaça, da solidão e da incerteza. Esse tempo cantado
pela voz poética é aquele em que o homem tira do homem sua humanidade.
O poema se constitui com frases
simples, há apenas três orações em todo o poema: “Tempo que mata quem o
denuncia” e “Tempo onde o sangue não tem rasto”. Mas os verbos não são
necessários para que compreenda toda a imagem da repressão e ameaça, para que
se entenda como o tempo se constitui de modo que a injustiça impera. E, onde há
império, não há igualdade nem harmonia. A enumeração de substantivos aparece em
gradação e eles são “repartidos por variados campos semânticos cujo denominador
comum é a negação, o processo lento de aniquilamento” (SANTOS, H., 1982, p. 174).
Assim: «a anáfora, sugestivamente encenada e gradativa, enumera de forma exaustiva
uma longa lista de conceitos abstratos e poderosamente negativos para culminar
de forma inequívoca na guerra, no aniquilamento e na morte» (MALHEIRO, H.,
2008, p. 84).
Nesse sentido, o ritmo de gradação da
enumeração pode ser visto do sentido passivo ao ativo, isto é, daquele que
recebe a ação e daquele que a pratica. Como dissemos, não há quase verbos de
ação no poema, mas as imagens trazidas dependem da ação humana e dessa ideia é
possível depreender um aspeto passivo ou ativo. Na primeira estrofe, por
exemplo, temos mais substantivos de caráter passivo, como a solidão, incerteza
e medo. A partir da segunda estrofe, as imagens oferecem um sentido mais ativo,
pois há a “ira”, a “mascarada”, a “mentira”, além do período composto por duas
orações. Por fim, na terceira estrofe, chegamos àqueles que se silenciam, que
são coniventes, que não deixam rastro. É o tempo da ameaça, isto é, aquele que
consegue impor-se pela tensão e pelo medo.
O título “Data” reforça a ideia de que
há uma relação com o tempo atual da voz poética, uma vez que o termo se
configura como período de tempo definido. Por extensão de sentido, a palavra
também se refere a “época”, como a época em que se vive. Esse significado
encontra lugar no contexto em que Sophia Andresen publica Livro Sexto,
pois a ditadura do Estado Novo estava já no poder há cerca de 35 anos. Essa
perspetiva é intensificada pelo tempo verbal das três orações que se encontram
no poema – “mata”, “denuncia”, “tem” –, o presente com aspeto durativo, ou
seja, indica a continuidade da ação.
O tempo de ameaça citado no verso que
finaliza o poema “Data” suscita também a ideia da censura, muito forte no
período do Estado Novo. A ação da PIDE, a polícia política do governo
salazarista, parece ser tematizada nos textos que trazem a ameaça como imagem
do contexto de que fala a voz poética. Além de “Data”, temos no poema “Pranto
pelo dia de hoje”, também extraído de Livro Sexto, uma voz poética que
fala o pesar de assistir a criação e a luta serem impedidas e cerceadas […].
Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015
Poderá
também gostar de:
- Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17
“Data:
Tempo de solidão e de incerteza, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha
de Poesia, 2022-10-06. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/data-tempo-de-solidao-e-de-incerteza.html
Sem comentários:
Enviar um comentário