Fernando Pessoa, Mensagem
Segunda Parte - Mar Português
Possessio maris
Mar é símbolo do português; é lição do ter
sido; é metáfora de todo o navegar e procura; é fonte inspiradora do Portugal a
haver.
Os doze poemas da segunda
parte correspondem ao ciclo do zodíaco completo: ciclo do que se cumpriu (o
mar), mas também o ciclo do eterno retorno.
Os poemas I e XII ligam-se em ciclo:
- « Senhor, falta cumprir-se
Portugal!» (I - «O Infante»[1])
- «E outra vez conquistaremos a
Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!» (XII - «Prece»)
Almada Negreiros (1893-1970). «O Infante» (Ilustração para Mensagem). 1934. |
I
O Infante[2]
|
Deus quer, o
homem sonha, a obra nasce, |
Linhas de leitura do poema “O Infante”, de Fernando
Pessoa:
1.ª parte: v. 1
O
poeta usou o nome «homem» para conferir um valor universal à afirmação.
Aliás, os verbos no presente do indicativo confirmam essa intenção.
O
poema parte, pois, de uma concepção providencialista da vida humana (a vida
humana é regida por interesses superiores).
O 1.º verso é a expressão lapidar da conceção messiânica que já vinha a ser afirmada e continuará a ser um tema-guia da obra. Os três termos da afirmação axiomática ou aforística (de tipo proverbial) encadeiam-se por uma ordem lógica de causa-efeito: «Deus quer» (é o agente primeiro), «o homem sonha» (capta a intenção divina, está em sintonia com o divino), «a obra nasce» (efeito de um agente primeiro e de um agente segundo). Se Deus não quisesse, o homem não sonharia e a obra não nasceria.
2.ª parte: vv. 2-8
A missão para a qual se escolheu o Infante foi unir a terra e o mar (vv. 2-3: «que a terra fosse toda uma, / Que o mar unisse»). Trata-se de uma teofania, isto é, uma revelação divina. Assim, as palavras estão carregadas de simbolismo iniciático:
- vv. 3, 10 e 11 «mar» (símbolo de desconhecido, mistério); v. 8, «o azul profundo» (do mar imenso, do fundo do mistério, a ideia de origem, profundidade);
- v. 4, «Sagrou-te», v. 9, «Quem te sagrou criou-te português» (consagrou-te, ungiu-te, destinou-te, Sagres. O infante surge-nos aqui mais como o símbolo do herói português escolhido por Deus para ser agente da sua vontade do que um ser individual),
- v. 4, «desfazendo a espuma» (desfazendo o mistério);
- v. 4, «espuma» (branca), v. 5, «orla branca», v. 6, «Clareou», v. 8 «Surgir» - aparecimento (todas estas palavras exprimem a passagem do mistério para a plena luz, sair das sombras, revelar-se, desocultar-se, tornar conhecido o desconhecido);
- v. 7, «de repente» (carácter súbito e miraculoso da Revelação);
- v. 8, «redonda» (a esfera é símbolo da unidade, da perfeição cósmica; no texto, símbolo da totalidade da obra querida por Deus);
- v. 10, «nos deu sinal» (dar um sinal da partida para a aventura é dar a chave para decifrar o mistério).
A
segunda parte do texto (vv. 2-8) apresenta-nos a vontade de Deus que quer toda
a terra unida pelo mar (que a separava), confiando essa missão ao Infante, que
levou, como por encanto, essa «orla branca» até ao fim do mundo, surgindo, em
visão miraculosa, «a terra […] redonda, do
azul profundo».
Esta segunda parte do texto subdivide-se em três momentos:
- vv. 2-4: «Deus quis» até «Sagrou-te»: a ação de Deus (Deus, o agente da vontade, quer a unidade da terra);
- v.4: a ação do Infante, herói ungido por Deus;
- vv. 5-8: e a realização da obra por Revelação (o grandioso feito que transcende as forças humanas, próprias de heróis).
«O
que interessa a Pessoa é que o infante é agente sacralizado de uma missão de
descobrir o Mundo, de estreitar os laços entre os continentes e de criar um
mar português [aspectos que se ligam à simbologia do grifo]» (António Machado Pires, 1987).
3.ª parte: vv. 9-12
A 3.ª quadra representa um momento de síntese[3]
e reflexão. Retoma-se a trilogia: «quem [Deus] te [o homem] sagrou criou-te português» para reflectir
sobre ela e o seu significado histórico: «Do mar e nós em ti nos deu sinal.» –
e aqui retoma-se a ideia de sinal, signo, bandeira – «Cumpriu-se[4]
o Mar» (resultado do sonho do Infante e da vontade divina).
Transpõe-se
para o povo português a glória do Infante («Quem te sagrou criou-te português»,
v. 9). O povo português foi, pois, o eleito por Deus para esta façanha.
Bruscamente,
em corte abrupto, o poeta assinala o desmoronar-se do império dos mares – «e o
Império se desfez» – é a tristeza, o «nevoeiro» a ensombrar os nossos dias.
O que falta, então, no futuro?
«Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (a “obra”).
Como? É lícito, desde já, apontar a fórmula
redentora: Que Deus volte a querer, que os homens (portugueses) voltem a sonhar
– daí nascerá, certamente, a obra necessária a um novo ciclo histórico de
grandeza.
Portanto, no último verso repete-se a dinâmica do
primeiro:
Deus –> homem –> acção = vontade de Deus –> sonho do homem –> epopeia.
O percurso do poema é do geral para o particular e do particular para o coletivo:
O assunto evoluciona primeiro do geral (universal) para o particular: o «homem» e a «obra» do 1.º verso têm aplicação universal, ao passo que, na 2.ª parte, o «homem» se particulariza no Infante e a «obra» na epopeia marítima. Dá-se, depois, na passagem da 2.ª para a última parte do poema, uma mudança de sentido oposto: transição de um plano particular (Infante) para um plano geral/colectivo (Portugueses).
Este é um poema onde se verifica a economia de linguagem e uma densidade de sentidos:
- o vocabulário próprio da Revelação, acima referido;
- a utilização das maiúsculas, que vem do Paulismo (Mar, Português) e procura chamar a atenção para a riqueza significativa das palavras;
- a rima, sempre cruzada, valoriza certas palavras que, aparecendo em fim de verso, vêem o seu significado alargado: «nasce» (v.1), «uma» (v. 2), «mundo» (v. 6), «português» (v. 9), «sinal» (v. 10), «Portugal» (v. 12).
O último verso só indiretamente formula uma
súplica a Deus. Apenas se enuncia perante Ele um facto: «falta cumprir-se
Portugal». Segundo a técnica simbolista, é mais belo sugerir do que afirmar por
claro. Além disso, esta enunciação da súplica, não em forma imperativa, mas em
forma informativa, relaciona-se com as características messiânicas do texto: o
povo português é o eleito de Deus; basta que Deus veja o que falta a Portugal
para na hora certa desencadear as acções necessárias para restabelecer a glória
do seu povo.
As frases são curtas: seis frases correspondem
cada uma a um verso. Isto está também dentro da técnica simbolista: exprimir
muito em poucas palavras. Note-se, por exemplo, que o último verso do poema
sugere mais do que claramente afirma. É uma frase aberta a muitos cambiantes de
sentidos: não afirma claramente, sugere.
Aula Viva Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999.
Para Compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais, Porto, Areal Editores, 2001, pp. 131-132.
[1] Sob o signo de Carneiro: Carneiro (21 de março
a 20 de abril) é o signo da impulsão criadora, sob os desígnios de Deus, a
«força genésica que desperta o homem e o mundo (Chevalier e Gheerbrant; Dicionário
de Símbolos, p. 160): «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.» Corresponde
«à elevação do Sol, à passagem do frio para o calor, da sombra para a luz; o
que não deixa de estar relacionado com as buscas do Velo de Ouro»
(ibid.), isto é, com as Descobertas:
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo
[2] O
Infante D. Henrique surge anteriormente na Primeira Parte (Brasão), em O
Timbre, como «A Cabeça do Grifo», onde é visto como criador de civilização e
como mentor espiritual da ideia de navegar.
[3] Na 3ª
estrofe, verifica-se a dinâmica da tese, antítese e síntese.
Tese = epopeia marítima foi realizada por vontade de Deus e dos
portugueses: «cumpriu-se o mar»; antítese: «o Império se desfez»
(decadência); síntese: «falta cumprir-se Portugal» (nova acção Deus e do
homem português para uma nova tese: uma nova epopeia, a última fase de
Portugal, o Quinto Império).
Deus quer |
o homem sonha |
a obra nasce |
quem |
te |
cumpriu-se o
Mar |
Senhor |
|
falta
cumprir-se Portugal |
[4] A “obra”.
Questionário sobre o poema “O Infante”, de Fernando
Pessoa:
1. O primeiro verso enuncia o sopro criador
do sonho.
1.1. Identifique o sonho e o detentor desse
poder.
1.2. Explicite o significado da sequência,
nesse primeiro verso.
1.3. Identifique a construção sintáctica e
refira a sua expressividade.
2. O vocabulário da segunda quadra é
sugestivo de um caminho da perfeição. Mostre como, semanticamente, é possível
essa leitura.
Identifique
o recurso estilístico presente no verso 8 e refira a sua expressividade.
3. Em que medida o poeta considera a missão
cumprida, se há um desejo presente que não se consumou?
4. Que análise faz o autor da importância de
ser "português"?
Chave de correção:
1.1.
O sonho: desvendar novos mares e continentes e ir "até ao fim do
mundo".
Deus
é o detentor do poder criador, enquanto o homem consegue sonhar.
1.2. A obra é
fruto do sonho, graças ao poder e vontade de Deus.
1.3. Coordenação
assindética a sugerir gradação e ação.
2. O branco
da orla e a claridade sugerem pureza; o azul é símbolo do amor e da harmonia; a
terra inteira e redonda remetem para a imagem do círculo, representativo da
perfeição e da plenitude; os verbos ir (no pretérito perfeito) e correr (no gerúndio)
lembram a existência de um caminho a percorrer para que no fim possa participar
do conhecimento; o verbo ver (v. 3 da 2.a quadra) significa conhecer,
compreender, saber.
Há uma metonímia ao substituir o horizonte
pela sua cor de "azul profundo". Esta associação por contiguidade
permite salientar a beleza e a harmonia sugerida pela cor do horizonte.
(A nível fónico é possível encontrar uma
aliteração da dental d, que, associada às nasais e à vogal fechada u, remete
para o misterioso e recôndito; também as sibilantes s, z evocam a ideia de
continuidade, enquanto as líquidas r, l, sugerem o deslizar ou o aparecer da
terra redonda.)
3. Cumpriu-se
a missão marítima; mas, após a queda do Império, não houve a sua renovação;
faltava "cumprir-se Portugal", ou seja, realizar-se e engrandecer-se
num novo império civilizacional (a que chamou de "Quinto Império").
4. O
"português" apresenta-se como o escolhido, o homem que sonha, que se
lança à aventura e que conquista os mares.
(Nota informativa: o aluno, para responder ao questionário, não tem, obrigatoriamente, de conhecer toda a obra de Pessoa. Como apoio para uma melhor compreensão da mensagem deste texto, elucida-se que o poeta afirma, em alguns textos, que a raça portuguesa buscará uma nova Índia em naus construídas "daquilo de que os sonhos são feitos" e considera que a futura civilização europeia será portuguesa.)
Disponível em: http://www.esa.esaportugues.com/programa/Mensagem/textoMensagem.htm
(Consultado em 04-02-2003)
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa
- Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da
obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“O Infante: Deus quer,
o homem sonha, a obra nasce (Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José
Carreiro. Portugal, 19-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/o-infante-deus-quer-o-homem-sonha-obra.html
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