quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Padrão, Fernando Pessoa


 

PADRÃO1

 






O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão2, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

5




A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.


10



E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas3, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.



15

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

13-9-1918

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 60.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2384

 

__________

1 Padrão: monumento de pedra que os navegadores portugueses erguiam nas terras que iam descobrindo, tendo como emblemas a cruz e as quinas (vide nota 3).

2 Diogo Cão: navegador português que, em 1485, descobriu a foz do rio Zaire, a norte de Angola.

3 Quinas: grupo de cinco escudos que figura nos símbolos nacionais de Portugal.

 

 

Texto de apoio – Dicionário da Mensagem

Febre - Motivo recorrente na Mensagem, o termo liga-se à ideia de conquista da «Distância» e à inquietação que faz do Português, no dizer de Gilberto de Melo Kujavsky, um ser-para-o-mar. Surge na «febre de navegar» (M,61), que possui Diogo Cão, ou na «febre de ânsia» (M, 99) que arde no peito desse terceiro nauta do poema «Noite» que quer partir à procura dos outros dois perdidos. Em causa está, em qualquer dos casos, «a busca de quem somos, na distância, / De nós» (M, ibid).

Curioso é, também, notar que essa febre participa, como o gesto a que conduz, da predestinação divina do herói. É algo que lhe é dado, que faz parte da sua própria condição, como ser depositário de um destino que se cumpre através dele, como acontece com D. Fernando:

[Deus]

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me

A fronte com o olhar;

E esta febre de Além, que me consome,

E este querer grandeza são seu nome

Dentro de mim a vibrar.

(M,38)

Mesmo nos casos onde o grande empreendimento a que se propuseram falhou, os heróis na Mensagem mantêm viva a chama do desejo e do sonho, impulsionados por essa febre de fazer, de descobrir, de criar, a que juntam o seu destemor confiante por se sentirem cheios de Deus.

Dir-se-ia, em suma, que nessa «febre de Além», nessa ânsia de Absoluto, reside um dos aspetos mais importantes da exemplaridade do herói na Mensagem.

(Complete este estudo, vendo os verbetes Distância e Horizonte.)



Padrão é, como se sabe, o monumento de pedra que os navegadores portugueses erigiam em cada nova terra descoberta. Veio substituir a cruz de madeira, usada para o mesmo fim, o que, naturalmente, permitia uma maior resistência à erosão do tempo, marcando de forma indelével a posse da nova terra.

Mas, simbolicamente, o que da sua fixação ressalta é a consumação da etapa penúltima desse «porto sempre por achar». Por isso, se atribui a Diogo Cão, provavelmente um dos navegadores que mais padrões ergueu e um dos mais importantes no estudo da navegação da costa ocidental africana, a exemplaridade irredutível deste gesto heroico:

Eu, Diogo Cão, navegador, deixei

Este padrão ao pé do areal moreno

E para diante naveguei.

(M,60)

Muito para além do que historicamente a obra de Diogo Cão representa, em termos de abertura às navegações seguintes, importa salientar a insatisfação de alma que anima o herói e o leva a aceitar a imperfeição da obra feita, não obstante a ousadia e o grande esforço despendido, como estímulo dessa eterna procura, que é nele a febre de navegar.

Recorrente, na Mensagem, é a pouca importância conferida à obra feita, materialmente considerada, em detrimento da atitude do herói. Recorde-se que Diogo Cão caiu em desgraça por ter, erradamente, julgado atingir o limite meridional do continente africano, facto a que o poema faz alusão:

O esforço é grande e o homem é pequeno

[…]

A alma é divina e a obra é imperfeita.

(ibid.)

O esforço é grande e o homem é pequeno

[…]

A alma é divina e a obra é imperfeita.

(ibid.)

Trata-se de um herói, como os que integram as «Quinas», sagrado por Deus «em honra e em desgraça», facto de que o navegador tem plena consciência:

Este padrão sinala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita:

O por-fazer é só com Deus.

(ibid.)

Note-se, ainda, a semelhança do último verso transcrito com o que termina o poema consagrado a D. Pedro («Tudo mais é com Deus!» - M, 40), compare-se a «febre de Além» de D. Fernando com a «febre de navegar» de Diogo Cão ou a sua grandeza de alma insatisfeita, que procura «o porto sempre por achar» com a inquietação de um D. João diante da impossibilidade de atingir «o inteiro mar», e, facilmente, se poderá concluir que o malogrado marinheiro é, igualmente, uma das quinas do padrão por ele plantado, já que também foi colhido pela sorte adversa na procura do «inteiro mar»:

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português.

(ibid.)

O que interessa, porém, ao Portugal futuro é a alma do herói, que o texto pessoano reabilita, e o que nela existe da face divina das coisas, i. e., o que da sua figura perdura como arquétipo, sintetizável nos primeiros versos que transcrevemos.

A reter é, pois, a ideia de navegar, metáfora de toda a procura, ou o valor simbólico do padrão (também metáfora da Mensagem) como marco sempre penúltimo da viagem começada.

Fonte: Dicionário da Mensagem, Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2000

 




 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Indique as funções atribuídas ao «padrão» neste poema.

2. Explicite as relações de sentido que o primeiro e o quinto versos estabelecem entre si.

3. Analise a importância que os vocábulos e expressões referentes à navegação assumem no texto.

4. Comente o significado dos versos: «Que o mar com fim será grego ou romano:/ O mar sem fim é português» (vv. 11-12).

5. Descreva o retrato que o sujeito poético faz de si mesmo.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Ao «padrão» (marco de pedra com emblemas simbólicos, que assinalava a posse de Portugal sobre as terras descobertas) são atribuídas, neste poema, as seguintes funções:

- assinalar a passagem de «Eu, Diogo Cão» pelo «areal moreno», ou seja, o cumprimento da parte que lhe cabe na realização da «obra ousada»;

- testemunhar, pelas «Quinas» gravadas no monumento, o domínio português do oceano;

- manifestar, através da «Cruz» que encima o «padrão», a transcendência do objetivo último da navegação do «eu», isto é, a demanda de Deus.

2. O paralelismo de construção dos versos 1 e 5 - resultante da estrutura em forma de máximas, assentes em antíteses - gera relações de sentido entre os seus elementos que evidenciam:

- as limitações do «homem» e as imperfeições da obra humana;

- o impulso humano de autossuperação e de procura da perfeição «divina»;

- a grandeza do «esforço» do «homem» no confronto com os seus limites.

3. O campo lexical referente à navegação («navegador», «padrão», «areal», «naveguei», «vento», «céus», «oceano», «mar com fim», «mar sem fim», «navegar», «calma», «porto [...] por achar») torna-se o mais importante do texto, pela quantidade e diversidade dos seus elementos, produzindo um discurso poético centrado no ato de navegar, que é canto da viagem marítima e de exaltação da descoberta, e também metáfora da demanda do transcendente.

4. Contrapondo o «mar com fim», «grego ou romano», ao «mar sem fim», «português», o poema enaltece as viagens marítimas dos Portugueses, afirmando a sua superioridade relativamente às dos povos da Antiguidade Clássica: estes dominaram apenas o conhecido, o «mar com fim»; os Portugueses, pelo contrário, apropriaram-se do desconhecido, do «mar sem fim» que desvendaram, acentuando-se, assim, a sua dimensão épico-heroica.

5. São traços do autorretrato do sujeito do poema:

- a ânsia e a exaltação de navegar, impelindo-o sem cessar «para diante», na busca do «porto sempre por achar»;

- o sentimento de insatisfação, de desejo de perfeição, a par da consciência dos limites humanos e do orgulho pela obra realizada;

- a determinação, a capacidade de esforço, de autossuperação;

- a consciência de realizar uma obra que tem uma dimensão transcendente e coletiva;

- o sentimento de respeito e de fascínio pelo oceano;

- …

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais – Agrupamentos 1, 2 e 3 e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2000, 2.ª fase

 

 

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“Padrão, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 21-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/padrao-fernando-pessoa.html



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