Mensagem, de Fernando Pessoa
Primeira Parte - Brasão
II - Os Castelos
Odisseu e seus marinheiros em um mosaico romano |
Primeiro
ULISSES
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s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa:
Parceria António Maria Pereira, 1934
Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1274
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1 O termo “lenda” surge no poema com o sentido de “mito”.
Leitura orientada do poema “Ulisses”, de Fernando
Pessoa:
Ulisses,
protagonista da Odisseia de Homero, não é um herói histórico. A sua
única ligação a Portugal está na lenda que o promove a fundador de Lisboa e ao
primitivo nome desta cidade. Vejam-se os versos de Camões em Os Lusíadas
(III, 57, 1-4):
E tu, nobre Lisboa, que no mundo Facilmente das outras és princesa, Que edificada foste do facundo Por cujo engano foi Dardânia acesa; |
Tu, nobre Lisboa, que foste edificada pelo facundo (Ulisses) por cujo engano (=cavalo de Tróia) Dardânia (Tróia) foi acesa (=queimada). |
«Ulisses
é uma referência clássica, humanista, colocada aqui nas insígnias históricas de
Portugal. Evocando Ulisses para o primeiro castelo e sendo que a sucessão dos
castelos é uma sucessão de figuras carismáticas da nossa História, Fernando
Pessoa não deixa dúvidas sobre o seu pensamento universalista sobre Portugal.
Portugal é algo que já está no caminho dos deuses antigos. […] Daí a Europa,
daí Ulisses, antes dos poemas sobre figuras definidoras do país.» (Soares:2000,34)
O
desenvolvimento do texto faz-se em três momentos:
1.º momento:
A
primeira estrofe, em que se apresenta a definição de mito numa pequenina frase
que viria a ficar axiomática e até emblemática: «O mito é o nada que é tudo».
Como tentativa de definição, as formas verbais encontram-se, naturalmente, no
presente do indicativo. Este juízo contraditório (oxímoro) é, ao mesmo tempo, o
começo do poema e a síntese da sua mensagem. O mito é nada porque não pertence
ao mundo visível, mas sim ao mundo oculto; é tudo porque manifesta as suas
capacidades criadoras quando desvendado (é tudo porque dele brotam as forças
ocultas que projectam os povos para as grandes façanhas). (“Tudo” – a partir do
momento em que inspira os povos).
Esta
definição é confirmada, ou melhor, concretizada por meio de duas metáforas –
imagens: «O mesmo sol […] É um mito
brilhante e mudo» e «O corpo morto de Deus vivo e desnudo». O mito é um sol
brilhante que «abre» (v. 2), isto é, revela os céus, mas é «mudo». É o «corpo
morto de Deus» tornado vivo e revelado (perífrase de Cristo crucificado – mito
que liberta energia redentora). O mito é luz que abre caminho para o Todo, mas
é ao homem que compete a caminhada.
O
mito surge assim como um sol brilhante que nos abre os céus, v.2, (atente-se no
sentido conotativo de «céus» que aponta para perspectivas brilhantes, ideias
de heroicidade) e como um Deus que, parecendo morto, se revela às vezes aos
homens como vivo. Nas duas expressões metafóricas citadas manifestam-se os dois
elementos fundamentais e contraditórios do mito: a sua irrealidade («mudo»,
«corpo morto») e o seu dinamismo («vivo e desnudo», «abre os céus»).
(Borregana:1995, 20-21; Cabral:[1997], 89)
Note-se
que «mito brilhante e mudo» é apresentado como equivalente a «O corpo morto de
Deus / Vivo e desnudo» (perífrase de Cristo crucificado). Assim, a Paixão de
Cristo é aqui apresentada não como um evento histórico, mas como um mito que,
tal como o anterior, liberta energia redentora. Uma ideia que o Sol também
simboliza, sendo mesmo, nalgumas correntes esotéricas símbolo de Cristo.
O
que «Ulisses» significa é que a redenção (salvação) patriótica só se fará na
vivência do mito e na energia criadora que ele liberta. (Veríssimo:2000,
140-141) (ie, se acreditarmos em certas crenças/lendas/mitos que servirão de
inspiração para agirmos).
Na
gradação esotérica, como reza a Tábua de Esmeralda, "o que está em
cima é como o que está em baixo." Em baixo está o "corpo morto de
Deus", a realidade. Em cima está o mito, o Sol, o corpo de Deus vivo e
desnudo, a lenda. (Soares: 2000, 33).
2.º momento:
A
segunda parte do poema (2ª estrofe) inicia-se por um deíctico -Este -
que se refere a Ulisses, presente no título; ao iniciar-se por um deíctico, a
estrofe passa a ser uma tentativa de concretização da definição da 1ªestrofe.
Ulisses, figura do passado ( verbos no pretérito - aportou- foi-nos bastou- foi
vindo- criou), não existiu, de facto - mas bastou-nos como lenda («Sem
existir nos bastou - e nos criou», 8, 10) – lenda portadora de força
vivificante (criadora). (Pais: 2001, 123)
As
formas perifrásticas «foi existindo» e «foi vindo» caracterizam o processo
gradual da criação dos mitos e da sua acção.
A
sintaxe é inovadora, ao serviço de significações originais: «Foi por não se
existindo»; «Por não ter vindo foi vindo». O jogo é feito com verbos e
sobretudo extraindo novas potencialidades de infinitivos e gerúndios para
construir novas funcionalidades e sentidos originais. FP joga com os verbos
para gerar a universalidade, a intemporalidade, neste caso, do mito.
É
do jogo da afirmativa/negativa, do sim e do não, do movimento dos diferentes,
que tudo nasce:
nada/tudo (1)
morto/vivo (4-5)
não ser/existindo (7)
sem/bastou (8)
não ter vindo/foi vindo (9)
É
do sacrifício, da negação, da abdicação que salvificamente nasce a vida.
(Soares: 2000, 33-34).
3.º momento:
A
terceira parte (3ª estrofe), como revela a conclusiva «assim», constitui a
conclusão de toda a mensagem poética, ocorrendo a passagem do nada
ao tudo: a lenda (o mito), sendo uma força obscura
(oculta), vem («escorre», v.11) de cima, dos confins dos tempos; ao «entrar
na realidade» (v. 12) presente, fecunda-a (enriquece-a) – fazendo o milagre
de tornar irrelevante a vida cá de baixo, dita do mundo real objectivo: «Em
baixo, a vida, metade / De nada, morre», 14-15. Só readquire vida aquilo
que o mito/nada fecunda e o processo não é do passado, agora, mas intemporal –
de onde os tempos verbais de presente (cf. Pais: 2001, 123) (as formas verbais
«escorre», «decorre», no seu aspecto durativo, traduzem a acção duradoura e
persistente do mito).
A
expressão adverbial «Em baixo» estabelece uma contraposição com o que o poeta,
servindo-se de uma personificação, afirma atrás a respeito da dinâmica do mito:
«O mito abre os céus, é um deus vivo», isto é, vem do alto. Mas a expressão «Em
baixo» refere-se à vida desligada do mito, que, sendo «menos que nada», morre.
(Borregana: 1995, 21)
A
lenda morre na realidade. A insistência no jogo verbal para exprimir esta ideia
torna-se preciosa na figura: «metade de nada», que, no entanto, acrescenta
alguma ideia à expressão poética: o sim no não; o ser no não ser; o fermento e
a incompletude do real sem mito, a procura da perfeição criadora, o vazio que a
lenda vai preencher, a vida latente que o mito vai fecundar. Há aqui uma
concepção transcendental em que o corpo e a vida de Portugal são inseridos. […] Um Portugal
predestinado. Portugal, uma terra à espera do toque divino de Ulisses para se
tornar uma nação com sentido. Portugal uma metade de nada à espera da seiva dos
deuses para se tornar um tudo, uma transcendência, uma presença divina que tem
de continuar a dar testemunho, que deve inverter o sentido de um «Portugal a
entristecer».
[A lenda é
essencial à realidade, é o cerne da continuidade. Toda a grandeza vem do nada
que é tudo, do mito.]
«E
nos criou.»
Este
é o nosso génesis; este é, na Mensagem, o poema genesíaco de Portugal em
que o real se separou do nada por virtude do mito.
«a
lenda se escorre»
A
importância do «se» reflexo: a lenda se faz escorrer a si mesma, se faz manar,
se vaza sobre a vida, sobre a terra, sobre o real, como se a lenda fosse uma
entidade que assiste e preside e às vezes confirma o nada em tudo. A lenda, ou
Deus, ou o Sol, tudo é criador, é genesíaco e se funde numa visão
transcendental da vida e do homem. (Soares: 2000, 34-35)
Vejamos
de que forma a caracterização do herói acompanha, paradoxalmente, o mito como
«o nada que é tudo»:
o nada |
que é |
tudo |
[Em cima]
Este que aqui
aportou |
→ |
e
nos criou |
Foi por não ser |
→ |
existindo |
Sem existir |
→ |
nos
bastou |
Por não ter
vindo |
→ |
foi
vindo |
O mito
↓
fecunda a realidade
↓
[Em baixo]
A vida metade de
nada |
→ |
morre |
Do
esquema se depreende que a «morte» tem, no texto, uma figuração positiva, pois
se trata da morte iniciática, com tudo o que ela significa de libertação de
energia redentora. (Lembremo-nos que Fernando Pessoa dizia que estávamos «tão
desnacionalizados que só podíamos estar a renascer») (Veríssimo: 2000, 140)
É
irrelevante, parece dizer Pessoa desde este poema, que as figuras de que vai
ocupar-se, os heróis fundadores, tenham tido ou não existência histórica - o
que importa é que todos eles tenham funcionado com a força do mito, que, não
existindo, é tudo. Por isso, todos os heróis que se seguem são heróis
mitificados, ainda que com existência histórica, feita de sucessos ou
fracassos, não importa.
Poderá também gostar de:
- Visualizar o Módulo de Português do 12.º Ano que inicia com a explicitação do conceito de “mito”, na Mensagem de Fernando Pessoa:
In: Projeto #ESTUDOEMCASA,.
Mensagem, de Fernando Pessoa: os poemas "D. Tareja" e "D.
Dinis".| Aula 20| 29 min| 27 Jan. 2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e520354/portugues-12-ano
Poderá também gostar de:
Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html
“Ulisses: O mito é o
nada que é tudo (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 10-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/ulisses-o-mito-e-o-nada-que-e-tudo.html
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