quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

A Europa jaz, posta nos cotovelos (Primeiro Castelo do Brasão, na Mensagem, de Fernando Pessoa)


Mensagem, de Fernando Pessoa

Primeira Parte – Brasão[1]

I – Os Campos[2]

 



 

Primeiro

O DOS CASTELOS

 






5





10



A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

 

8-12-1928

Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

O título do poema:

  • alusão aos oito castelos que passaram a proteger Portugal a leste e a sul após a conquista do Algarve aos mouros, levada a cabo por D. Afonso III.


  • símbolo de proteção, os castelos eram também baluartes de defesa e residência de reis. Significa também as conquistas dos heróis. Os heróis dos castelos surgem associados a desígnios ocultos que necessitam de ser desvendados.

 

A Europa é personificada numa figura feminina. Uma rede de metáforas humanas, corpóreas, desdobra-se: «cotovelos», «cabelos», «olhos», «rosto», desenhando o grande símbolo, a grande visão esfíngica: a Europa.

 

Olhando para o mapa da Europa é possível imaginá-la como mulher reclinada, correspondendo os «cotovelos» à Itália e Inglaterra. Portugal, extremo ocidental da Europa, é o seu rosto.

 

Este poema da Mensagem intertextualiza-se com Os Lusíadas: «Eis aqui, quase cume da cabeça/ Da Europa toda, o Reino Lusitano,/ Onde a terra se acaba e o mar começa/ E onde Febo repousa no Oceano...» (III, 20).

 

Mas esta intertextualidade acentua a diferença:

 

No queem Camões de:

...em Pessoa é:

afirmativo

misterioso

Vertical: «cume da cabeça»

Horizontal: «as linhas prolongadas dos braços, dos cabelos; a linha horizontal de Oriente a Ocidente – a serenidade.

Surgimento: «eis aqui», o emergir e o imergir, movimentos verticais.

Toda a postura é lânguida, parada.

A linguagem poética avança, através do impulso fónico-semântico dos deícticos («Eis aqui...») e do jogo da antonímia: «acaba»/«começa», cheios de energia, de euforia, épicos.

Tudo é contemplativo e a energia está concentrada no olhar.

exterioridade

interioridade

Canta tempos de expansão, toca clarins de vitória.

Está em tempos de espera, de nevoeiro.

Febo[3]

Esfinge[4]

 

O traço privilegiado dessa figura é o rosto, tal como em Camões.

 

O motivo do olhar é insistente: «fitando», 2; «olhos», 4; «fita», 10; «olhar», 10; fita», 12, projetando a horizontalidade como uma flecha. O desenho verbal de uma Europa cansada de em si se ter cumprido, deitada, jacente, mas de força concentrada no olhar.

 

A repetição do verbo «fitar» e sobretudo a forma do seu gerúndio sugerem a tendência para a introspeção.

 

Portugal surge predestinado para a missão salvífica de restaurar a grandeza europeia. O «olhar esfíngico e fatal» indicia predestinação para o desvendamento do mistério. (A adjectivação que refere o rosto sugere alguns traços da idiossincrasia portuguesa.)

 

Os dois «cotovelos» evocam as raízes culturais da identidade europeia: a cultura gregaolhos gregos») e a cultura romântica («românticos cabelos»).

 

Será o espírito civilizador lusíada que reporá a pureza da cultura grega[5], toldada pelo Romantismo[6].

 

A construção poética passa também pelo jogo no espaço e no tempo: Oriente/Ocidente; Futuro/Passado.

 

A rima esbate-se na sua simplicidade e doçura: cumpre o seu papel sem se fazer notada. À maneira tradicional, o poema tem finda. O verso é decassílabo. Há um afunilamento na extensão da estrofe, como que acompanhando a procura de agudeza da síntese. E, assim, o simbolismo emerge:

 

A Europa está no centro, entre o Oriente com que se universalizou no passado e o Ocidente que fita e com que se universalizou a seguir. A Europa é a fonte, uma origem, um ponto de partida em que a raiz da memória está no olhar grego. Um olhar que se transforma em enigma, promessa, distância, em cisma do futuro, e que é Portugal.

 

A missão de Portugal:

  • fitar o futuro e o mistério;
  • ligar espiritualmente o Ocidente ao Oriente.

 

«O rosto com que fita é Portugal» – sete palavrasnúmero místico – que encerram o destino da Europa e da Civilização: a grandiosidade de Portugal.

 

 

Bibliografia:

Acesso ao Ensino Superior. Português 12º Ano – A e B, Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Porto Ed., 2000.

Aula Viva Português 12.º Ano, João Guerra e José Vieira, Porto Ed., 1999.

Para Compreender Fernando Pessoa, Amélia Pinto Pais, Porto, Areal Editores, 2001.

Para uma leitura de MENSAGEM de Fernando Pessoa, Mª Almira Soares, Lisboa, Editorial Presença, 2000.



[1] Primeira parte – Brasão: termo heráldico, símbolo da formação do reino e do reino e do passado hereditário dos governantes régios. Marca dos serviços relevantes.

Heróis do Brasão

[2] I – Os campos: símbolo do espaço da vida e da consolidação do reino.

[3] O mesmo que Apolo, deus do sol; o próprio sol.

[4] Esfinge –  monstro fabuloso com cabeça humana e corpo de leão, que propunha enigmas, devorando todos aqueles que os não decifrassem (nesta acepção, grafa-se com inicial maiúscula); estátua desse monstro, existente no Egipto;  (fig.) mistério; enigma; pessoa calada, secreta, impenetrável. (Do gr. sphígx, monstro que estrangulava, pelo lat. sphinge-, «esfinge»)

[5] Fernando Pessoa, in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, pp. 134 e 240, afirma: « duas nações – a Grécia e Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não elas mas também todas as outras. []

Tristes de nós se faltarmos à missão que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa, e tais nos fez quais somos, nos pôs quando nos deu este nosso aceso e transcendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas».

[6] Fernando Pessoa num texto manuscrito de 1935, encontrado no espólio e depois reproduzido in Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lx, Ed. Ática, 1966, afirma: «Um leitor atento de Mensagem, qualquer que fosse o conceito que formasse da valia do livro, não estranharia o anti romantismo, constante, embora negativamente, emergente nele.» (apud Fernando Pessoa, Mensagem e outros poemas afins, Introdução, organização e biobibliografia de António Quadros, Ed. Europa-América, p. 171)




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A Europa jaz, posta nos cotovelos (Primeiro Castelo do Brasão, na Mensagem, de Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 08-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/primeiro-castelo-do-brasao-na-mensagem.html



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