sábado, 17 de dezembro de 2022

Nun' Álvares Pereira (Mensagem, Fernando Pessoa)

Mensagem, Fernando Pessoa

Primeira Parte – Brasão

IV - A Coroa

 

Gravura da crónica do condestável


 

NUN' ÁLVARES PEREIRA

 






5





10

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o rei Artur te deu.

'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!

8-12-1928
Fernando Pessoa, Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/190



 

 

Linhas de leitura do poema “Nun' Álvares Pereira”, de Fernando Pessoa: 

  • Nota histórica sobre D. Nuno Álvares Pereira (1360-1431):

Oriundo de família nobre, era filho ilegítimo do prior da Ordem Militar do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira. Foi armado cavaleiro por D. Leonor Teles, o que não o impediu de tomar partido pelo mestre de Avis na crise de Estado que se seguiu à morte de D. Fernando.

Nomeado condestável dos exércitos do rei português, foi então nos campos de batalha que se tornou notada a sua bravura e o conhecimento que possuía da tática militar.

A paz com Castela trouxe-lhe imenso poderio e desmedidas riquezas, mas, depois de dotar largamente os netos, professou na Ordem do Carmo. A sua figura tornou-se mítica e, de Fernão Lopes a Oliveira Martins, assunto literário capaz de simbolizar a ideia de Pátria. Foi beatificado em 1918, mas já em vida era conhecido como o Santo Condestável. (Artur Veríssimo, Ler a Mensagem de Fernando Pessoa – curso n.º 21/2001 do Centro de Formação de Associação de Escolas de S. Miguel e Santa Maria).


  • Estruturalmente o poema constrói-se do seguinte modo:

1.º: o herói envolvido em mistério e no divino (v.1);

2.º: atenção centrada na espada (vv.2-8);

3.º: o herói com essa espada ilumina o caminho a seguir (vv. 9-12).


  • Marcas textuais que reenviam para o herói:

- o título;

- as marcas de 2ª pessoa do singular («te», vv. 1, 8; «tua», v. 11);

- a gesta guerreira do herói: «espada» (2); «volteando» (2); «erguida» (5); «Excalibur» (7); «Rei Artur» (8)

- a santidade: «auréola» (1), «halo do céu» (6), «Excalibur» (7), «ungida» (7), «'Sperança» (9) «S. Portugal em ser» (10), «luz» (11).


  • O herói representa o ideal de ser português: «S. Portugal em ser», v. 10.


  • Herói como um exemplo a seguir: «Que auréola te cerca?», v. 1; «'Sperança consumada, / S. Portugal em ser, / Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!», vv. 9-12.


  • A palavra chave do poema é “Espada” (v. 2).


  • A espada a voltear no ar forma uma “auréola” (v. 1), que remete tanto para a ideia de santidade como para um objeto concreto - a coroa.


  • À espada confere-se um valor profético, ao qual se liga o poder da luminosidade que ela detém, tornando claro o caminho a seguir: «Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!» (11-12).


  • Excalibur - Espada oferecida pelo Rei Artur a Galaaz para este ir em demanda do Santo Graal. Mas o que é o Graal? Joia perdida caída do alto? Luz espiritual? Recipiente celta? Cálice da Última Ceia e da Paixão de Cristo? Vaso de Buda?, etc. É na tradição medieval cavaleiresca que a obra de Pessoa bebe a sua inspiração. À margem de todas as variantes, a simbologia do Graal reenvia-nos para a ideia de universalidade e de procura da plenitude, aspetos indispensáveis, na Mensagem, à construção do Quinto Império. A demanda do Santo Graal é, sobretudo, uma aventura espiritual, porque empreendida como peregrinação interior, porque realizada como aventura de autodescoberta no cadinho da alma. Daí que encontrar a verdade perdida e o poder de iluminação que o Graal confere a quem com ele contacta seja uma obra apenas destinada aos eleitos como Galaaz, coração sincero e valoroso. Na Mensagem, o escolhido para ser portador dessa verdade perdida é o «Desejado», investido da condição de «Galaaz com pátria» (in «O desejado», Mensagem), encarregado de, com a sua Luz, revelar «ao mundo dividido» o «Santo Graal» (idem) ou, se quisermos, o Ser português. (Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem. Porto, Areal Editores, 2000, pp. 51-52)


  • “É Excalibur, a ungida, / Que o rei Artur te deu” (vv, 7-8) - Trata-se de um gesto legitimador, isto é, a passagem de testemunho de cavaleiro para cavaleiro.


  • Há uma aproximação de Nuno Álvares Pereira a Galaaz com missão e destino que os transcende. Porquê Galaaz? Não se explicita o nome do herói lendário, mas tudo faz pensar nele. No texto há a ausência das conquistas materiais a golpe de espada, a espiritualidade que a sua figura difunde e o facto de ter sido escolhido pelo Rei Artur para empunhar a Excalibur para essa interpretação nos encaminham. Galaaz é o herói da demanda do Santo Graal, o cavaleiro perfeito, indiferente aos bens terrenos, eleito entre os melhores, predestinado a vencer. Tem a honra de ser o primeiro a aceder ao Santo Graal, fonte da vida e do conhecimento, símbolo da plenitude interior que os homens sempre procuraram. (Veríssimo: 2000, 23-24)


  • Do exposto, resulta claro que a espada se prende à defesa de valores espirituais. É de «S. Portugal em ser» que se trata e não de um território, espartilhado dentro de fronteiras físicas. Não é esta a ideia de Pátria na Mensagem, nem o herói de carne e osso é o que Pessoa, de preferência, celebra.


  • O Condestável é a imagem sem mácula do cavaleiro do Santo Graal, cuja gesta irrepreensível, coroada de sucessos, lhe concede a distinção máxima de receber das mãos do Rei Artur a Excalibur. 




“Nun' Álvares Pereira (Mensagem, Fernando Pessoa)” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 17-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/nun-alvares-pereira-mensagem-fernando.html



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