Olha,
Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes1!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros2 brincar por entre as flores?
Vê como ali, beijando-se, os Amores3
Incitam nossos ósculos4 ardentes;
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores;
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares, sussurrando, gira.
Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira
Mais tristeza que a noite me causara.
Bocage, Obra Completa –
Volume I, edição de Daniel Pires, 2.ª ed., Porto, Caixotim, 2008, p. 37
__________
1 cadentes
(verso 2) – harmoniosas.
2 Zéfiros
(verso 4) – divindades gregas que correspondem aos ventos do ocidente; ventos
suaves e agradáveis.
3 Amores
(verso 5) – divindades subordinadas a Vénus e a Cupido.
4 ósculos
(verso 6) – beijos.
I - Apresente,
de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Identifique
quatro dos traços caracterizadores da paisagem descrita no poema.
2. Refira
dois dos sentidos através dos quais Marília perceciona o espaço físico
envolvente, justificando a resposta com citações do texto.
3. Explicite
dois dos valores expressivos produzidos pelo uso da personificação no terceiro
verso.
4. Analise
o efeito que a presença de Marília causa no estado de espírito do sujeito
poético.
Explicitação de cenários de resposta:
1. Identifica,
adequadamente, quatro dos traços caracterizadores da paisagem descrita no poema.
A paisagem, perfeita e
idealizada, descrita no poema caracteriza-se, nomeadamente, como:
− bucólica («as flautas
dos pastores» – v. 1);
− harmoniosa («Que bem que
soam, como estão cadentes!» – v. 2);
− ribeirinha («o Tejo» –
v. 3);
− florida («flores» – v.
4);
− colorida («borboletas de
mil cores» – v. 8);
− animada pelo movimento
dos seres da natureza («Ei-las de planta em planta as inocentes, / As vagas borboletas
de mil cores» – vv. 7-8; «a abelhinha para, […] gira» – vv. 10-11) e pelos
comportamentos quer das entidades mitológicas («Os Zéfiros brincar por entre as
flores» – v. 4; «beijando-se, os Amores» – v. 5), quer do «rouxinol» que
«suspira» (v. 9);
− campestre («campo» – v.
12);
− luminosa («Que manhã tão
clara!» – v. 12);
− «alegre», refletindo a
felicidade do «eu» («Que alegre campo!» – v. 12).
2. Refere dois dos
sentidos através dos quais Marília perceciona o espaço físico envolvente, justificando,
adequadamente, a resposta com citações do texto.
Os sentidos através dos
quais a figura feminina perceciona o espaço físico envolvente são os seguintes:
− a visão, que se revela o
modo de perceção predominante, permitindo a Marília captar a diversidade do «alegre
campo» (v. 12): «Olha» (vv. 1 e 3); «Vê» (v. 5); «Tudo o que vês» (v. 13);
− a audição, tornando
percetível a beleza e a variedade dos sons campestres: «as flautas dos pastores
/Que bem que soam» (vv. 1-2); «o rouxinol suspira» (v. 9); «a abelhinha […] /
sussurrando» (vv. 10-11);
− o tato, implícito na
referência à brisa suave que sopra: «não sentes / Os Zéfiros brincar» (vv.
3-4).
3. Explicita,
adequadamente, dois dos valores expressivos produzidos pelo uso da personificação
no terceiro verso.
Os valores expressivos da
personificação presente no verso 3 («o Tejo a sorrir-se») são, entre outros, os
seguintes:
− atribuir a um elemento
da natureza uma emoção própria do ser humano;
− conferir ao rio Tejo o
sentimento do «eu» enamorado, alegre pela presença da sua amada;
− representar a natureza
como reflexo do estado de alma do sujeito poético, de acordo com os princípios do
locus amoenus.
4. Analisa,
adequadamente, o efeito que a presença de Marília causa no estado de espírito do
sujeito poético.
O efeito que Marília causa
no sujeito poético é muito intenso, dado que a presença dela determina o sentimento
eufórico do «eu» e, consequentemente, o modo como ele visualiza a natureza. Na
verdade, a beleza e a harmonia da paisagem descrita são valorizadas apenas
quando o sujeito poético contempla a amada e se sente, por isso, feliz («Que
alegre campo!» – v. 12). Ele, de resto, considera que na ausência dela tudo se
desvaneceria, dando lugar à dor («Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira /
Mais tristeza que a noite me causara.» – vv. 13-14). A presença da figura
feminina tem, pois, o poder de transformar o estado emocional do «eu».
Fonte: Exame Final Nacional do
Ensino Secundário n.º 734 - 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012,
de 5 de julho). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação
Educacional, 2015, 2.ª Fase
II - Comentário
de texto
Elabore um comentário do poema
«Olha, Marília, as flautas dos pastores», de Bocage, que integre o tratamento
dos seguintes tópicos:
- partes lógicas constitutivas
do texto;
- processos usados na
descrição da paisagem;
- relação entre a
representação da natureza e o estado emocional do sujeito;
- marcas da estética arcádica.
Explicitação de cenários
de resposta:
Partes lógicas constitutivas do texto
O poema divide-se em duas
partes, correspondendo a primeira aos vv. 1 -12 e a segunda aos vv. 13-14,
separadas pela conjunção adversativa «Mas», que introduz uma mudança no
discurso.
Na primeira parte, o
sujeito poético convida Marília a deleitar-se com os encantos da paisagem, que
lhe descreve. Na segunda parte, ao imaginar a natureza na ausência hipotética
de Marília, o sujeito é levado a desvalorizar a beleza do cenário: sem a
presença da mulher amada, a visão da natureza causar-lhe-ia «mais tristeza que
a morte».
Processos usados na descrição da paisagem
A descrição da paisagem é,
toda ela, uma oferenda a Marília, chamada, por meio de imperativos («Olha», «Vê»)
e do vocativo inicial, a comprazer-se na sua contemplação.
Nos vv. 1-11, a descrição
realiza-se pelo processo de enumeração dos elementos que compõem o cenário («flautas»,
«Tejo», «Zéfiros», «Amores», «borboletas», «rouxinol», «abelhinha»), caracterizados
por verbos («soam», «sorrir-se», «brincar»... ) e por adjetivos («cadentes», «inocentes»,
«vagas»). Essa enumeração analítica dá lugar, no v. 12, à síntese («campo», «manhã»)
que contém, resumindo-os, os elementos antes especificados. A dupla conclusiva
que encerra a descrição põe em evidência os atributos gerais da natureza:
alegria e claridade.
Os elementos paisagísticos
surgem quase todos dotados de vida. Para isso contribuem as prosopopeias («o
Tejo a sorrir-se», «beijando-se, os Amores», «o rouxinol suspira»... ) e as
sugestões luminosas («Que manhã tão clara!»), cromáticas («flores», «borboletas
de mil cores»... ), sonoras («as flautas dos pastores», o sussurrar da «abelhinha»...)
e de movimento (as borboletas «de planta em planta», a «abelhinha» que ora pára,
ora gira…).
Relação entre a representação da natureza e
o estado emocional do sujeito
A paisagem é descrita como
locus amoenus, um ambiente bucólico, pastoril, em que tudo se combina de
modo a criar um cenário propício ao deleite e à contemplação. Dos processos descritivos
acima mencionados, resulta a evocação de uma natureza alegre e cheia de vida,
que apela à fruição através dos sentidos: visão («Olha o Tejo a sorrir-se»...
), audição («as flautas», «o rouxinol», o sussurrar da «abelhinha»), tato («não
sentes/ os Zéfiros brincar por entre as fl0res?»).
Os elementos naturais, plenos
de força anímica e simbolicamente carregados de sensualidade, manifestam-se em
toda a sua exuberância primaveril; a natureza enamorada torna-se alegoria do
idílio amoroso. A euforia ambiente harmoniza-se com o estado emocional do
sujeito, feliz graças à presença de Marília.
Na segunda parte do poema,
sobre a felicidade do sujeito apaixonado perpassa, trazida pela imaginação, uma
nuvem de adversidade que o leva a conceber a paisagem na ausência da mulher amada.
Todavia, sendo essa ausência puramente retórica, a sombra da morte não é suficiente
para obscurecer a luz clara da manhã nem a alegria do sujeito poético.
Marcas da estética arcádica
- temáticas
- locus amoenus
- idealização da mulher
- …
- formais
- soneto
- personificação alegórica da natureza
- léxico greco-latino
- …
Fonte: Exame Nacional do Ensino
Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de
Português (Índole Literária). Portugal, 1998, 1.ª Fase, 2.ª Chamada
Sem comentários:
Enviar um comentário